Você veio de uma mulher. E é em defesa delas que eu canto. De livrar suas filhas do pranto. Entre morte e vida, sangra a ferida. Não defenda a vida abstrata. O teu voto condena e mata. Canto pela Teresa, Joana e tantas Marias… Ter ou não ter. A escolha é só delas – Em Defesa Delas, Juliana Strassacapa (Ep – Ventre Laico, Mente Livre)
Dia 28 de setembro é o Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e no Caribe. E na semana em que Oaxaca se tornou a segunda cidade do México a legalizar o aborto, sendo mais uma entre tantas pelo mundo a ser vanguarda na luta em defesa dos direitos reprodutivos das mulheres e das pessoas com útero, a conquista do movimento feminista mexicano reacende o debate e a esperança de que outros países do Caribe e da América Latina possam tratar da pauta da interrupção de uma gestação como uma questão estrutural e política, e não como uma pauta moral.
No Brasil o aborto é ilegal, mas existem casos previstos em lei onde a interrupção da gestação é permitida: quando as mulheres são vítimas de estupro, quando há a confirmação de anencefalia do feto e se a gestação oferece risco à vida da mulher. Contudo, mesmo dentro dessas exceções, o estigma, o preconceito, o medo e a violência contra as mulheres que buscam ajuda às jogam na clandestinidade. E aqui mora uma questão profunda. Com a falta de acolhimento e de políticas públicas que possibilitem o atendimento humanizado, elas se arriscam ao procurar soluções alternativas para interromper a gravidez. O aborto inseguro é a quarta causa de morte materna no país.
Segundo o DataSus, sistema de informação do Sistema Único de Saúde, só em 2018 o país gastou R$ 36 milhões em procedimentos de curetagem, realizados quando o aborto não é realizado de forma adequada, de acordo com o previsto pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Mas mesmo com uma lei penal severa, a cada minuto uma mulher aborta no país. Por ano, 250 mil mulheres dão entrada nos leitos do SUS por conta de complicações por abortos inseguros, como revelaram os dados apresentados na Audiência Pública da ADPF 442 em 2018, no STF.
A questão ganha uma perspectiva estrutural quando se entende que mulheres negras, periféricas, ribeirinhas, do campo, indígenas, de baixa renda, da classe trabalhadora e que têm pouca informação são as que mais morrem com aborto inseguro ao se sujeitarem, por conta principalmente de sua situação de classe, a procedimentos com pessoas não preparadas, em lugares de condições insalubres e métodos que são perigosos e invasivos. É preciso entender que em um Estado que é regido por sistemas que juntos, capitalismo, racismo e o patriarcado, geram desigualdades de diferentes proporções para as pessoas, e nesse caso, a criminalização se torna um agravante, pois, ela vem aliada ao racismo e à pobreza.
Em entrevista, Silvia Camurça, integrante do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia e militante feminista da Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, avalia o atual contexto do tema no Brasil.
Pergunta – Por que o SOS Corpo defende que o aborto seja legalizado no Brasil?
Resposta – Somente com aborto legalizado teremos superado os preconceitos contra o planejamento reprodutivo, avançando no reconhecimento público da autonomia das mulheres, garantindo assim, transformações sociais que colocam as mulheres no plano da liberdade e responsáveis por suas decisões éticas. É uma luta que no processo de conquista produz transformações fundamentais. Ao mesmo tempo que protege a vida de sofrimentos desnecessários para milhões de mulheres, em especial, as mulheres negras de classe trabalhadora, as que são mais violentadas pela criminalização.
P – Qual a situação que as mulheres encontram hoje no país quando buscam fazer um procedimento de aborto?
R – Em primeiro lugar elas não acham onde procurar. Estamos num contexto de interdição de falar sobre isso. Uma interdição política. Não está na lei, não está em canto nenhum, mas as pessoas tem medo de falar sobre o assunto e ficarem mal vistas. Voltou o tempo do silêncio. Então essa é a primeira dificuldade: “com quem será que eu posso falar em confiança sobre como fazer um aborto?”. A segunda questão é que as mulheres com os balconistas de farmácia descobriram há alguns anos o misoprostol dentro do cytotec, e ele foi proibido de vender. Você não pode comprar no balcão o método mais seguro, segundo a Organização Mundial de Saúde, de fazer um aborto. Inclusive o método usado no Sistema Único de Saúde e recomendado pelo SUS, quando precisa fazer uma aborto dentro da lei. E ele só pode ser comprado pelo SUS. Então as mulheres já não sabem que no SUS elas encontrariam uma alternativa, e elas não podem comprar na farmácia. Se não é na farmácia que essas mulheres podem encontrar e confiar no farmacêutico, que podem conversar com ele sem ser criminalizada, essas mulheres são empurradas para a clandestinidade.
Ou elas vão comprar no tráfico, o que é um risco por várias questões, você pode entrar na rede da clandestinidade em troca desse favor, você pode comprar remédio falsificado, é um risco em todas as circunstâncias, ou você vai para as clínicas clandestinas. E as de qualidade estão desaparecendo, ou então estejam muito escondidas, mas elas só são acessíveis para mulheres de renda alta. As mulheres de média e baixa renda vão para as piores clínicas. Então o que as mulheres encontram é um cenário de medo e de desinformação. Medo de morrer, de ser presa, de quem confiar. Porque o ambiente de criminalização faz com que vizinhos e até familiares delatem. Você agora tem até medo de conversar com a sua médica, porque cresce o número de médicos que delatam, ferindo o Código de Ética médico. É um cenário de muito medo, insegurança e solidão, especialmente para as mulheres mais jovens e as mulheres da classe trabalhadora mais empobrecida ou desempregada.
Se essa mulher tem acesso ao serviço de aborto legal, se ela tem acesso à informação e que sabe que o caso dela se enquadra nas três possibilidades onde o aborto é permitido por lei sem ser presa, ela enfrentam preconceito. E muitas vezes, algumas mulheres chegam e saem do serviço, desistem. E vão procurar uma forma clandestina de tanto questionamento que elas enfrentam.
P – Segundo dados divulgados no início do mês pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, só no ano passado foram registrados no Brasil 66 mil casos de estupro, sendo 180 mulheres estupradas por dia. Um dos casos previstos em lei para a realização de aborto é quando somos vítimas de violência sexual. Como esses casos são tratados hoje no país?
R – Aumentou muito os casos de estupro e mesmo assim os profissionais do serviço, e não é uma questão de classe, mesmo médicos e médicas dizem que as mulheres que chegam relatando estupro estão mentindo, que essas mulheres estão inventando. Então há uma recriação de uma verdade sobre a história das mulheres, que não é a verdade delas. Ao invés de acolher, do ponto de vista da saúde, eles ficam buscando formas de dizer que elas estão mentindo. Atrasam o tempo de diagnóstico, porque tem todo um procedimento de checagem de informação para ter certeza que se enquadra na lei, exames de ultrassom para saber o número de semanas e tudo isso, mas atrasa muito. No caso de aborto por estupro elas encontram essa situação, de não ser acreditada. E de muitas vezes requererem o boletim de ocorrência, algo que pela norma técnica do SUS não é necessário. A checagem da conversa da mulher e a ultrassom é suficiente, ainda mais porque ela passa por três profissionais por uma psicóloga, uma assistente social e pelo médico. E diante desse contexto muitas delas desistem e recorrem à clandestinidade.
P – E quando a gravidez é de risco, o que as mulheres enfrentam?
R – Quando as mulheres procuram um procedimento de aborto por risco de morte, porque está com câncer e a gestação pode prejudicar sua saúde ou ela tem pressão alta e tem um risco de ter um caso de eclâmpsia, só para citar exemplos, elas também enfrentam preconceito. Há profissionais que dizem que o risco não é tanto e não avisam as mulheres que elas estão em uma gestação de risco e nem dão a opção delas decidirem se interrompem ou não a gestação. A gente teve o ano passado em Recife três casos de morte de mulheres, que segundo os profissionais de saúde, elas nem poderiam ter engravidado. Contudo, elas não foram avisadas que corriam esse risco e que tinham o direito de interromper a gravidez. Então elas esbarram no poder médico que decide por elas se elas vão seguir correndo risco de morrer com a gravidez ou não. Esbarram também, agora, numa nova resolução do Conselho Federal de Medicina, que diz coisas esdrúxulas como que é preciso ter cuidado com o excesso de direitos da parte das mulheres, um “abuso de direitos”. Como se as mulheres ao decidirem por sua própria vida, elas estão exercendo os direitos de decidir em excesso. Cabendo mais ao médico dar a palavra final se, afinal, a mulher poderá interromper ou não a gravidez de risco. Essa resolução tira a autonomia da mulher sobre a sua própria vida.
P – E qual alternativa se coloca para as mulheres, já que nem respaldadas pela lei elas têm o direito de decidir sobre a própria gestação?
R – Esses quadros nos mostram um contexto onde o domínio do patriarcado se expressa de forma violenta sobre as mulheres. De total cerceamento e de busca da manutenção de uma gestação de forma forçada. Há, inclusive, projetos de lei colocando como parte do procedimento de pré-natal que, se a mulher chega e descobre que está grávida e expressa que não quer, imediatamente ela deve ser orientada dos benefícios sociais que uma adoção pode trazer e que é estimulada a manter a gravidez mesmo assim e depois doar. O que é algo de extrema perversidade, para a mulher e para a vida que está sendo gestada. Porque a mulher fica na posição de um tubo, através do qual o divino envia as novas vidas à sociedade, então ela em si é só um canal, e a nova vida não tem emoção. A partir dos sete meses, há relação emocional entre o corpo da mãe e do bebê, porque com sete meses é um bebê. E ao nascer há relações emocionais, e a emoção é do corpo. Emoção não é sentimento, são reações do corpo. E é como se essa criança não fosse ter a emoção do abandono e ela tem.
Então é um desrespeito com a vida a ser gestada e com a mulher, tudo para impedir que ela possa decidir lá no início da gestação. Como é que alguém pode imaginar que uma mulher mantendo, uma jovem por exemplo, mantendo uma gestação, indo para a faculdade, volta e não tem bebê? Isso também não é visto socialmente como algo bom. Como você vai impor, fazer daquela mulher a mãe que rejeitou a criança? Para os outros, porque os outros viram a barriga, a família viu a barriga, os tios, as avós, as vizinhas. Quer dizer, de uma gravidez indesejada ela se torna uma mulher que não ama os filhos. E ela só não queria aquela gestação, podia ser que daqui a dois anos ela quisesse o filho. Coloca-se dores na vida que vai gestar e que vai sofrer dores ao nascer. Coloca-se dores na mulher que está gestando para não abrir mão do poder que exerce de domínio ao corpo das mulheres. Essa que é a questão do patriarcado, porque se ele abrir mão desse domínio sobre o corpo das mulheres ele perde metade do seu poder no mundo. Então, em diferentes modos, as mulheres são criminalizadas e a única alternativa apresentada é se tornar uma mulher que abandona os filhos diante de uma sociedade que vai julgá-la. Quando ela não queria abandonar bebê nenhum, ela só não queria engravidar e que poderia ser uma ótima mãe no dia que ela quisesse ser.
P – No dia 18 de setembro a Revista AzMina, que é uma instituição sem fins lucrativos e que faz um jornalismo investigativo com pautas voltadas à defesa dos direitos das mulheres, publicou uma reportagem mostrando como fazer um aborto seguro no Brasil, segundo dados oficiais divulgados pela OMS. Com a repercussão, logo apareceram as primeiras denúncias contra a reportagem, como a feita pela ministra Damares Alves ao Ministério Público, alegando que estavam sendo divulgados dados criminosos. Diferentes organizações e meios alternativos de comunicação saíram em defesa da liberdade de informação, já que AzMina apresentaram um conteúdo de interesse público. Como você avalia essa perseguição?
R – Eu acho que esses ataques são parte do projeto obscurantista das forças que estão hoje no poder. Essas mesmas forças precisam da ignorância e do medo para se manterem no poder. São as mesmas forças que atacam a educação crítica, pedindo uma escola sem partido, que ataca a educação sexual ou a questão da igualdade de gênero nas escolas chamando de ideologia, são as mesmas forças que impedem que as mulheres saibam dos métodos seguros para abortar nos casos previstos em lei. E que são informações públicas, que estão disponíveis nos sites, como no Ministério da Saúde, que possui orientações de como proceder em cada caso reunidas na norma técnica de atenção humanizada ao abortamento. Se uma mulher vai fazer um aborto legal ela deve ter o direito de saber disso, para poder discutir com o médico qual o método que ela quer.
Porque isso é um direito do paciente, um direito individual. Como uma mulher pode decidir qual o melhor método para abortar se ela não sabe o que a OMS ou o Ministério da Saúde recomendam para cada situação? O direito de você saber o que vai acontecer com você e se aquele procedimento é o melhor dentro das suas condições de saúde, é um direito inalienável. Eu acho que outras organizações da área do direito deveriam entrar contra essa ação, em favor dos direitos de escolha dos pacientes em geral. Mas podem ser que poucos ou nenhuma faça isso porque se trata de aborto. Mas se você olhar do ponto de vista da relação médico-paciente, o paciente tem o direito de decidir o que e como fazer. A lei de direito à informação existe no país há alguns anos, mas ela vem sendo sistematicamente violada desde o golpe de 2016 e as forças no poder atualmente no governo estão com uma visão obscurantista das coisas, desde a perseguição às universidades até a caça aos pesquisadores, e do esconder dos dados oficiais de interesse público.
SOS Corpo indica – VENTRE LAICO MENTE LIVRE: um manifesto musical pela descriminalização do aborto.