Resolução nº 258 do CONANDA e o enfrentamento ao aumento de partos de crianças no Brasil

Na mira de fundamentalistas e políticos conservadores no Brasil, a Resolução desmascara a estratégia natalista deste grupo ao garantir atendimento humanizado para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e daquelas que venham a engravidar por conta de estupro.

| Texto e fotos: Fran Ribeiro | Comunicação SOS Corpo |

Foto: Fran Ribeiro

Segundo dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Ipea no Atlas da Violência 2025, o Brasil vive uma epidemia de violência contra as mulheres, que atinge também crianças e adolescentes, vítimas vulneráveis de violência sexual cometida na grande maioria das vezes, dentro de casa. De acordo com os dados, são registrados no país cinco estupros por hora.  

De acordo com o Ministério dos Direitos Humanos, o Disque 100 registrou um aumento de 195% de denúncias de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes. Em 2020 foram registrados 6.380 casos. Já em 2024, o número foi para 18.826 denúncias. 

Em dezembro de 2024, o Conselho Nacional de Direitos das Crianças e Adolescentes – CONANDA, aprovou a Resolução nº 258, que determina diretrizes para o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de estupro, incluindo o direito legal à interrupção de uma gravidez resultante da violência. Desde a sua aprovação, a Resolução do CONANDA vem sofrendo sistemáticos ataques de fundamentalistas na política, que tentam romantizar a gravidez infantil, tirando do foco a responsabilidade social e do Estado em proteger as crianças e adolescentes vítimas deste tipo de crime. Em março de 2025, a Câmara de Vereadores de Recife viu a força do movimento feminista, mais uma vez, quando por pressão popular, barraram a aprovação de projetos que atacam os direitos reprodutivos, como o PDL 3/2025, que queria impedir a implementação da Resolução nº 258 do CONANDA no município.

No mês de combate ao abuso e à exploração sexual infantil, que tem o dia 18 de maio como marco dessa luta no Brasil, o SOS Corpo conversou com Talita Rodrigues, educadora e pesquisadora do Instituto na área dos direitos sexuais e reprodutivos. Talita, que é especialista em Saúde da Família e mestra em Saúde Pública pela FioCruz, militante feminista da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e atua na Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, repercutiu a importância da Resolução nº 258 do Conselho Nacional de Direitos das Crianças e Adolescentes, que busca orientar profissionais dos serviços públicos na hora de acolher crianças vítimas de violência sexual e porque ela vem sendo atacada pela extrema-direita.

SOS Corpo – Do que trata a Resolução nº 258 do CONANDA?

Talita Rodrigues – O Conselho Nacional de Direitos das Crianças e Adolescentes tem como responsabilidade construir estratégias, normativas e orientações na defesa dos direitos das crianças e adolescentes. A Resolução que está dentro do arcabouço legal do CONANDA e busca orientar um fluxo para o acolhimento e atendimento nos serviços públicos, de crianças vítimas de violência sexual e que engravidam. É um fluxo para violência sexual que inclui o aborto legal que é um direito das meninas, das crianças de forma geral, que engravidem de algum estupro até os 14 anos.

SOS Corpo – A ascensão da extrema-direita no Brasil, bem como dos fundamentalistas nas instâncias políticas, têm provocado ataques sistemáticos aos direitos sexuais e reprodutivos. Por que a Resolução do CONANDA entrou na mira deles?

Talita Rodrigues – Uma primeira coisa para destacar nesse campo dos ataques a essa resolução, que é bem emblemática para a gente, é que ela não foi atacada inicialmente pela direita ou pela extrema direita. O primeiro boicote foi do próprio governo Lula. O que a gente soube é que no processo de construção da minuta, ela foi vazada para um jornal da extrema direita, que começou a fazer matéria sobre a Resolução. E depois disso, os representantes do governo que estavam construindo junto com os representantes da sociedade civil a Resolução, o CONANDA é um Conselho paritário, começaram a colocar dificuldade na aprovação dela.

E depois de um longo período, a presidência do Conselho decidiu que a Resolução ia ser votada e quando foi votada, para a surpresa pelo menos da sociedade civil, tiveram 15 votos favoráveis à aprovação, os 15 de representantes da sociedade civil, e 13 votos contrários, 13 votos de representantes do governo. Isso é bem impactante, pensando que é um governo que se elegeu com a pauta progressista, de apoio às mulheres e que recua sistematicamente no campo dos direitos humanos, até mesmo dentro de um espaço que não é um espaço de governo, o CONANDA é um órgão de estado.

Houve um processo do próprio governo, alguns Ministérios, como a Ministra de Direitos Humanos, que se posicionou dizendo que tinha problemas na escrita, usando a justificativa de que eram problemas técnicos. O governo usou o mesmo argumento da Damares. E a Damares Alves acionou um mandado de segurança para que, mesmo sendo aprovada, a Resolução não fosse publicada, alegando questões regimentais. Mas o Tribunal de Justiça garantiu que a Resolução fosse aprovada e publicada. Depois desse movimento do governo, da Damares, começou essa estratégia da extrema direita, que é uma estratégia comum nos últimos anos que é de territorializar. Daí eles manipulam o debate, atacam pelas redes sociais e esse ataque é uma forma de mobilizarem também o público deles. 

A Resolução nº 258 incomoda tanto porque ela regulamenta, garante esse fluxo que não existia no Brasil e coloca o aborto como parte desse fluxo. Segundo a Resolução, a criança vítima de violência sexual que engravida pode acessar o aborto legal sem a autorização dos pais, dando importância a autonomia gradativa da criança que foi vítima. Mas, o argumento principal dos fundamentalistas é que a família tem a responsabilidade de proteger as crianças. Mas, nos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, o que a gente tem visto registrado no Brasil, é que é dentro da família, dentro da casa onde moram que elas sofrem a violência, o estupro. Ou seja, a família não está conseguindo proteger e ainda está violando aquela criança. Então, diante desse contexto de violação, o Estado precisa garantir essa proteção. A Resolução garante que a criança tem direito a um acompanhante que pode ser uma tia, uma avó, pode ser alguém maior de idade que esteja do lado dela, mas não é necessário que seja o pai ou a mãe fazer essa autorização.

Talita Rodrigues (de verde) em ato no Recife contra o PL 1904. Foto: Fran Ribeiro

Inclusive, porque tem uma estratégia da extrema-direita, das organizações pró-vida, como em alguns casos que a gente vê acontecer aqui no Brasil, de que uma menina sofreu violência, a mãe muitas vezes queria que ela fizesse o aborto e os grupos religiosos vão atrás do pai, que é um pai que nunca foi presente e pressiona pqra ela fazer a reivindicação e impedir que a criança tenha acesso ao direito ao aborto legal, garantido por lei em casos de estupro. A Resolução nº 258 é uma resposta também a esse movimento de negativa de direitos promovida por esses grupos.

Então, avalio que o ataque é porque a Resolução mexe nesse ponto da questão e é  por isso que incomoda tanto. Ela tira da extrema-direita, dos fundamentalistas, o poder e a estratégia que eles estão construindo, de negativa desses direitos legais e reprodutivos.

SOS Corpo – O que a Resolução do CONANDA pode ajudar a enfrentar nesse cenário alarmante de casos de estupro de crianças e adolescentes no Brasil?

Talita Rodrigues – A Resolução busca reduzir o número de partos de meninas abaixo de 14 anos vítimas de violência sexual. E a gente tem um número exorbitante no Brasil de gravidez infantil, são meninas que tem o direito ao aborto legal, porque uma gravidez abaixo de 14 anos tem um risco de vida e tem o permissivo da violência. Nós temos hoje no país uma razão de mortalidade materna de meninas nessa idade importante, que não deveria estar acontecendo. A gente tem uma quantidade massiva de meninas parindo e não se sabe o tipo de morbidade, porque elas podem não morrer de causa materna, mas adquirirem uma morbidade. Quando a gente associa a razão de mortalidade infantil, que é até 1 ano de idade, os filhos dessas meninas têm mais chance de morrer no primeiro ano de vida, do que de mulheres em outras faixas etárias. Então, veja que uma violência vai causar uma série de condições, de revitimização, de sofrimento das meninas que são obrigadas a gestar e colocar a vida em risco ao parir, e bebês que têm grande chance de óbito no primeiro ano. E aí, você percebe o quanto essa extrema-direita é apenas natalista.

A Resolução enfrenta ainda a questão dos abortos tardios, os abortos acima de 22 semanas. Porque as meninas têm mais dificuldade, muitas vezes, de perceber a violência, perceber a gravidez, saber que o aborto legal é um direito e conseguir acessar o serviço. Quando você regulamenta um fluxo para orientar os profissionais da Assistência Social, para o Conselho Tutelar e para os profissionais de saúde, a criança precisa entrar dentro desse fluxo. A Resolução busca acelerar isso e é justamente onde os ataques dos últimos tempos acontecem, tem a ver com o aborto acima de 22 semanas, e as meninas são as principais que chegam em gravidez tardias para o aborto legal, o que é também o maior risco, fazer o procedimento quando ele está mais avançado e que trouxe danos para essa criança sustentar a gravidez tanto tempo.

SOS Corpo – Qual é a responsabilidade do estado, dos municípios, como é que o movimento pode pressionar para que a resolução seja de fato implementada?

Talita Rodrigues – Enquanto Resolução, ela orienta as políticas públicas, mas não é uma política em si específica. Por exemplo, ela pode orientar dentro da saúde uma linha de cuidado, que é o fluxo na saúde, em casos de violência. Ela orienta na assistência, como é que a rede de assistência pode se instrumentalizar e fazer o acolhimento a partir disso. E sobretudo para os Conselhos Tutelares, a Resolução é importante porque ela responsabiliza e enquadra os conselheiros, porque a gente sabe que os Conselhos Tutelares estão dominados pelos fundamentalistas. Então, para além de sensibilizar, a Resolução é uma normativa para criar um fluxo de atendimento humanizado para crianças e adolescentes que sofreram violência sexual.

A Resolução está colocada, as políticas públicas precisam atendê-la e precisam atender criando estratégias para fazer com que ela seja executada. E aí a gente está na fase de implementação que é fazer formação de profissionais, de gestores para garantir que ela seja implementada, porque se não ela vira uma palavra morta. O esforço é visibilizar e implementar e nós, dos movimentos, monitorar, incidir, para que ela seja implementada, para que ela de fato, se concretize na vida das meninas. Mas tem aí um desafio, que é o trabalho intersetorial. Porque a resolução vai obrigar que as políticas dialoguem. A assistência com a educação… Porque a educação, muitas vezes, é a porta de entrada para o conhecimento de casos de violência.

Aí, por exemplo, as profissionais não vão poder encaminhar mais uma menina para um pré-natal, porque tem uma Resolução que diz que não. Agora, como é que isso chega na ponta, no território é o nosso desafio, é o desafio de todas as políticas públicas. E precisa ter recurso para implementar, porque sem recurso não chega em canto nenhum.

Foto: Fran Ribeiro

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