Realizado em março deste ano, o Colóquio Trabalhadoras por Direitos e Justiça Climática, reuniu mulheres de 20 organizações e movimentos do Norte e Nordeste para intercambiar experiências e fortalecer a ação das mulheres na luta por direitos do trabalho e por justiça climática
| Texto e fotos: Fran Ribeiro | Comunicação SOS Corpo |

O SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia realizou nos dias 21 e 22 de março, em Recife, o Colóquio “Trabalhadoras por Direitos e Justiça Climática”. Coordenado pelas educadoras e pesquisadoras do Instituto, Betânia Ávila, Mércia Alves e Rivane Arantes, com apoio de secretaria de Verônica Pedro, o encontro reuniu 25 mulheres representantes de movimentos e organizações do Norte e Nordeste, para refletir criticamente sobre a situação e trabalho das mulheres nos territórios, o impacto da crise climática sobre suas vidas e a ação feminista organizada para enfrentar esses problemas.
De acordo com Mércia Alves, o objetivo da atividade foi fomentar o debate, intercambiar experiências e fortalecer a ação das mulheres na luta por direitos do trabalho e por justiça climática, articulando o contexto de precarização da vida, o modelo de desenvolvimento e os impactos da crise climática no cotidiano das mulheres e nos territórios.
“O SOS propôs um Colóquio, que é um espaço de interlocução de diferentes saberes, um intercâmbio a partir das condições de vida das mulheres, a partir de um tema central, que são as condições de trabalho das mulheres, entrelaçando o impacto do modelo de desenvolvimento e o contexto do debate da crise climática. Como é que esses três elementos estão dialogando com a vida real das mulheres”, destacou a educadora e pesquisadora do Instituto.
Foram dois dias de intensos debates e de uma riqueza de experiências compartilhadas. A programação do Colóquio foi pensada para fazer transparecer a realidade de cada território, com foco na experiência das mulheres, onde as participantes pudessem apresentar os impactos, as dificuldade e desafios, mas também, as possíveis soluções que os movimentos e organizações feministas estão desenvolvendo como estratégias de enfrentamento às desigualdades provocadas pela de crise social, econômica e climática.
“Acho que o Colóquio está sendo bem interessante, principalmente essa troca de experiências, é muito importante essa troca entre territórios, entre comunidades, entre organizações. Porque assim também vamos vendo que essa luta, ela não está sendo batalhada sozinha. Então, essa partilha, ela se torna importante para a continuidade dos nossos trabalhos e a continuidade também dessas articulações que são muito importantes para esse momento”, avaliou Ana Beatriz Vidal, cearense que atua como educadora no Instituto Terramar.
A situação das comunidades tradicionais da zona costeira do Ceará, mais precisamente comunidades pesqueiras que vivem na beira do Rio Jaguaribe, vem há alguns anos sofrendo as consequências da implantação dos parques eólicos e, mais recentemente, das mudanças climáticas. De acordo com Ana Vidal, as mudanças climáticas têm impactado os modos de vida das mulheres da pesca artesanal.
“Nós, do Instituto Terramar, trabalhamos com a comunidade da zona costeira, que trabalha, majoritariamente, com a pesca, com o marisco e aí pensando nas mulheres, muitas são pescadoras que tiram essa sobrevivência do mar. E esse modo de vida está sendo impactado com o avanço do mar, que tem relação direta com as mudanças climáticas. Cada vez mais o mar vai avançando e muitas dessas comunidades ficam próximas ao mar. Há a preocupação de que esse avanço possa prejudicar a sobrevivência das pescadoras e também a permanência no território”, explicou a educadora.
Mesmo não sendo as causadoras das mudanças, são as comunidades que têm feito o trabalho de proteger o meio ambiente, preservar os manguezais e tentar mitigar, sem apoio do Estado, os efeitos da crise. Contudo, o avanço das falsas soluções que os mega empreendimentos energéticos têm proposto, tem ameaçado a permanência de pescadoras e pescadores dos territórios.

“São as pescadoras e pescadores que protegem esse meio ambiente, protegem o manguezal, fazem de tudo para que esse meio ambiente seja preservado e aí quando vem essas falsas soluções com mais empreendimentos de energias renováveis, eólicas, fotovoltaicas, que se instalam nesses territórios que estão sendo ali protegidos pelas comunidades, privatizam e acabam provocando que essas comunidades sejam expropriadas do seu local, uma comunidade que faz tudo para conservar o meio ambiente. Essas comunidades são as mais prejudicadas por essas soluções, que na verdade não são soluções, já que a energia que se diz limpa, acaba, na verdade, provocando todos esses malefícios para aquela população que tá no território e também para aquele ambiente”, enfatizou Ana.
A situação das mulheres das comunidades da zona costeira no Ceará são semelhantes às das pescadoras artesanais da cidade de Cabo de Santo Agostinho, aqui em Pernambuco. Em Suape, as pescadoras vem sentindo no cotidiano e os impactos no modo de vida desde a instalação do Porto de Suape, em 1983. Muitas tiveram seus territórios expropriados e com a recente expansão do Porto, a produção do trabalho e a geração de renda têm sido diminuídos.
Se o racismo e o patriarcado historicamente precarizam e subjugam o lugar das mulheres no trabalho, o modelo de desenvolvimento neoliberal intensifica, a precarização da vida das mulheres naquele território, segundo afirmou Simone Lourenço, moradora de Cabo de Santo Agostinho, pedagoga de formação e que atua na coordenação do Fórum de Suape. Desde o início dos anos 2000, o Fórum articula a mobilização local com moradores, lideranças e movimentos para denunciar as violações de direitos que ocorrem no entorno de Suape, com o modelo de desenvolvimento que tem sido instalado por lá.
“Lá no território, com essa lógica do desenvolvimento, com a ampliação do Porto de Suape e essa a falsa ideia do desenvolvimento, precarizou ainda mais a condição de trabalho das mulheres. Tanto das mulheres que já atuam no território, com as suas formas alternativas de trabalho, como é o caso das mulheres pescadoras, das mulheres marisqueiras, mulheres agricultoras, quanto daquelas que estavam na informalidade e essa informalidade é uma forma de precarização também. E aquelas que conseguiram empregos, dentro dessa lógica da abertura do mercado de trabalho a partir da ampliação do Porto, as mulheres que foram trabalhar nesse projeto, foram assumir funções subalternas, funções precarizadas também”, reforçou Simone.
Além da falta de investimento dos poderes públicos para fortalecer a autonomia produtiva de pescadoras e agricultoras locais, elas ainda se deparam com a escassez de oportunidades de trabalho, seja no setor público ou no setor privado. O modelo de desenvolvimento que trouxe grandes empresas não se traduziu em qualidade de vida, muito menos melhores condições de trabalho para elas. Ainda de acordo com Simone Lourenço, a precarização do trabalho das mulheres em Suape está diretamente ligada ao enfraquecimento dos modos de vida e à degradação do meio ambiente.
“Essas mulheres estão perdendo o seu modo de vida, estão perdendo o seu lugar de pesca, estão perdendo as suas condições de trabalho na agricultura, porque o processo de espoliação do território é tão grande e de expulsão dessas famílias, que elas estão perdendo condição mesmo de trabalho. E essa situação se dá por uma lógica do racismo ambiental, a instalação de empresas em detrimento da manutenção das famílias nos seus territórios tradicionais e esse racismo ambiental vem impregnado de muita violência, de muita misoginia, de violência doméstica. É um desenvolvimento que chega, mas que chega de uma forma muito excludente, muito predatória tanto para a vida das mulheres quanto para o meio ambiente em si, porque o ecossistema é completamente degradado naquele território”, destacou a educadora do Fórum Suape.
Se é desse ecossistema que envolve a vida marinha, a vida terrestre, se é dos territórios que as mulheres constroem suas vidas e garantem a sua sobrevivência, é possível analisar o contexto das mudanças climáticas ou pensar soluções que garantam a justiça climática sem pensar nas pessoas que compõem esse cenário?

Para Raquel Lindoso, militante do Fórum de Mulheres do Agreste de Pernambuco e moradora da cidade de Caruaru, o desafio hoje é as pessoas e os poderes públicos compreenderem que a crise ambiental é indissociável de uma crise econômica e social. Logo, é preciso entender que marcadores sociais como gênero, raça e classe social precisam estar na hora de pensar as soluções e políticas públicas que de fato possam mitigar os efeitos das crises e proporcionar melhores condições de vida para todas as pessoas. Ou seja, não dá pra pensar a mudança sem considerar tudo que envolve os ecossistemas.
“Colocar as pessoas nessa paisagem significa ter a compreensão dessa indissociabilidade. Afinal, são as pessoas que estão tendo suas casas invadidas pelas águas, nas enchentes, nas inundações, são as pessoas que estão enfrentando as secas, são as pessoas que estão enfrentando a alta dos alimentos, por causa das secas e por causa das enchentes. Inclusive, muitas vezes as mesmas pessoas que sofrem com o calor no transporte público são as que também sofrem com as inundações. Então, quando a gente tá falando de meio ambiente, a gente tá falando de natureza, está falando das pessoas como parte dessa natureza. E eu acho que essa é uma chave importante para a gente compreender e desvelar as falsas saídas, porque essas saídas ignoram essa crise social e econômica”, analisou Raquel.
As falsas soluções propostas pela chamada economia verde desconsideram os impactos nas comunidades e no meio ambiente, com a prerrogativa de que vão produzir mais energia e de maneira limpa. Territórios onde as usinas de energia eólica são instaladas vem denunciando cada vez mais os impactos sociais, econômicos e na saúde dos moradores e moradoras, já que o adoecimento mental tem sido um mal recorrente nesses locais.
Em crítica a essas falsas soluções propostas por grandes empreendimentos tecnológicos, as educadoras que coordenaram o Colóquio aportaram o debate sobre as alternativas que as mulheres, movimentos sociais, organizações e comunidades têm experimentado para contrapor as situações de injustiça socioambiental e climática. As saídas estão no cotidiano, como defende Raquel Lindoso, nas tecnologias comuns que as pessoas criam, especialmente as mulheres.
“As tecnologias comuns, populares, estão nos espaços domésticos, nos quintais produtivos, em outras formas de fazer trocas, outros saberes, outras lógicas produtivas. Eu acho que é daí que vem as saídas e especialmente porque essas saídas estão compreendendo essa relação entre crise ambiental, social econômica e portanto racial”, enfatizou a representante do Fórum de Mulheres do Agreste Pernambucano.
Pessoas na paisagem por justiça socioambiental para incidir em espaços de governança
Colocar as pessoas na paisagem por justiça socioambiental, econômica e racial é um desafio, mas pode ser também o caminho para fortalecer a ação política das mulheres em busca de incidência política e participação social para a transformação das realidades e superação da crise.
Foi com esse pano de fundo que as participantes conversaram também sobre a COP 30, a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, que vai acontecer entre os dias 10 a 21 de novembro de 2025 na cidade de Belém, capital do estado do Pará, na região Norte do Brasil. Mesmo repleto de contradições de ordens diversas, a exemplo dos impactos sociais e ambientais que estão ocorrendo na cidade para realização da Conferência, ainda assim, ela é um importante espaço de articulação não só entre os países, mas, sobretudo, dos movimentos sociais que lutam por justiça socioambiental.
Foi nessa perspectiva que as participantes do Colóquio foram convidadas à reflexão. A partir das escalas da organização e da luta, compreendendo a intersecção das causas e as desigualdades impostas pelo patriarcado, pelo capitalismo e pelo racismo em nível global, como o processo em curso da Cúpula da COP 30 no Brasil pode ser uma oportunidade para a incidência do movimento feminista.
A participação das mulheres em espaços de governança, seja local, nacional ou global, é uma questão da democracia. Porque esses espaços são os lugares onde as políticas internas e externas, a destinação dos recursos, assim como as políticas públicas, são definidas. Contudo, como salientou Rivane Arantes, educadora do SOS Corpo e uma das coordenadoras do Colóquio, a participação da diversidade das pessoas que vivem e lutam por direitos nos territórios, pode ser dificultada por uma série de questões, como a falta de recursos para garantir a participação das mulheres de movimentos e a barreira linguística.

“Há uma grande falta de compreensão sobre o que se passa nos territórios, sobre o que se passa na vida das pessoas que estão em classes mais vulnerabilizadas. Em particular, no caso do Brasil, somos nós, mulheres, mulheres negras, mulheres que moram na periferia, mulheres da classe trabalhadora, grupos LGBTQIA+ quilombolas, indígenas, pessoas que estão encarceradas, todas essas populações que estão nas piores condições de vida, que estão morando nos territórios com mais risco socioambiental. Há ainda a questão da falta de dados, da falta de informação mais fidedigna sobre a realidade social dos grupos vulnerabilizados dos territórios explorados, dos territórios que são alvo dos grandes projetos de desenvolvimento”, explicou Rivane Arantes.
Ainda de acordo com a educadora do SOS Corpo, há outro problema que ronda os espaços de governança global, que é o senso comum relacionado a visão sobre o sujeito e a visão sobre os problemas vividos pelos sujeitos, já que existe uma dificuldade desses atores globais em perceber que a situação das mulheres não é uma situação única, já que lidamos com problemas semelhantes, mas nossas vivências são delineados pelas dimensões de gênero, raça e classe que nos tornam diversas. É preciso um olhar sensível e aberto para reconhecer a diversidade das condições de vida e das situações que as mulheres vivenciam nos diferentes territórios nos diferentes lugares do mundo.
Durante o debate sobre a COP 30 no Colóquio, as participantes refletiram sobre os limites, mas também compartilharam estratégicas que os movimentos têm adotado para poder incidir nos espaços de governança global. Afinal, são os movimentos e as organizações que atuam nos territórios que têm , de fato, soluções verdadeiras para as mudanças climáticas e os impactos que elas trazem para a vida das mulheres e do meio ambiente.
“A gente sabe que a COP 30, muitas vezes, ela tá numa discussão que já está sendo feita, já está sendo planejada e trazida pelos “grandes líderes”. Mas a gente tem que pensar que precisamos nos organizar para trazer as nossas experiências. Porque muitas vezes são debatidas apenas essas soluções, de “ah, vamos implantar renováveis para mudar”, mas assim, nessa grande escala da forma como está sendo feita, não é a solução. Então é preciso dizer para esses líderes que é necessário que as comunidades sejam escutadas, que essas populações sejam ouvidas e que possam de fato ser ouvidas e consultadas”, refletiu Ana Vidal.