Tribunal Popular das Mulheres das Águas declara culpados os violadores dos direitos das pescadoras de Pernambuco

Com a presença de mais de 150 pescadoras artesanais de territórios pesqueiros do estado, as juradas apresentaram a sentença que condenou governos federal, estadual e municipais, ministérios, secretarias, além de empresas privadas, fazendeiros e usineiros em Tribunal que teve caráter ético e simbólico

|Texto e Fotos: Fran Ribeiro – Comunicação SOS Corpo |

Gerusa Alexandre, da Articulação Nacional das Pescadoras, ao lado das juradas Laurineide Santana (CPP), Luiza De Marilac (FASE), Rivane Arantes (SOS Corpo). Foto: Fran Ribeiro.

No dia 24 de abril, mais de 150 pescadoras artesanais de municípios do litoral sul, litoral norte, da região metropolitana de Recife e do Sertão, estiveram reunidas no primeiro Tribunal Popular das Mulheres da Águas, ação de caráter ético, político e simbólico convocada pela Articulação Nacional das Pescadoras, para julgar crimes que violam os direitos humanos das mulheres e crimes socioambientais sobre os territórios pesqueiros em Pernambuco. 

Realizado no auditório Dom Hélder Câmara, na Universidade Católica de Pernambuco, nove pescadoras apresentaram testemunhos com graves denúncias contra os violadores dos direitos das pescadoras: o Estado brasileiro, nas instâncias federal, estadual e municipal, através de ministérios, secretarias, parlamentares e agentes judiciários, projetos e empreendimentos privados, fazendeiros, usineiros e empresas privadas. 

Os relatos foram condensados de experiências compartilhadas em cinco processos de escuta, que reuniram mais de 450 pescadoras artesanais, marisqueiras, catadoras de sururu e ostra que tem o mar, os mangues, praias, rios, açudes, lagoas e marés como locais de trabalho. Elas compartilharam histórias de violência, racismo, ameaças, violações de direitos sociais, adoecimentos físicos e mentais que foram agravados por situações que ocorrem ao tentarem acessar serviços públicos, pelo avanço da especulação imobiliária e industrial de territórios de preservação ambiental que estão sendo privatizados.

A partir dessa escuta, as pescadoras denunciaram problemas de saúde, de acesso à previdência social e ao INSS, dificuldades ao tentarem atualizar informações ou tirarem o Registro Geral da Pesca, que garante acesso a benefícios como a aposentadoria e o seguro-defeso, além do agravamento da violência e ameaças de morte por conflitos com megaempreendimentos, fazendeiros e até milícias nos territórios.  

“Nós, mulheres pescadoras artesanais, sofremos muito em relação à saúde. Primeiro, nós temos várias espécies de doenças, que não são reconhecidas como doenças ocupacionais. Nós não temos uma Política Pública direcionada para a nossa saúde. Os médicos não conhecem nossos problemas e os tratam como se fossem doenças comuns, descontextualizadas da nossa relação com o trabalho e com os territórios em que trabalhamos”, relatou a primeira testemunha. Por motivos de segurança delas, foram proibidos registros de suas imagens e nomes. 

“Acrescenta-se a isso os impactos na saúde mental das pescadoras e suas famílias, causados pela falta de cuidado, humanização e racismo institucional nas relações e no atendimento dos serviços públicos, quer sejam na saúde e/ou no INSS, interditando nosso acesso às políticas públicas e aos direitos. Retirar as pessoas de seus territórios, impedir que elas exerçam seu trabalho e a liberdade de locomoção, e constrangê-las por conta da cor da pele instalam problemas de ansiedade e depressão, que podem chegar a situação limite do suicídio e morte”, destacou em outro trecho da denúncia. 

“Eu não tenho vivido, eu tenho vegetado”

A denúncia apresentada pela testemunha que relatou casos de violações de direitos das pescadoras à liberdade de acessar o território pesqueiro, foi um dos momentos mais marcantes do Tribunal Popular. A pescadora que está com medida protetiva por conta do seu enfrentamento ao fazendeiro detentor de 80% do território da Praia de Maracaípe, no município de Ipojuca, no litoral sul, e que tem ganhado destaque na mídia, trouxe o caso da privatização das praias como mais um problema que as pescadoras artesanais tem lidado. O caso do conflito em Maracaípe já foi federalizado. 

“Temos presenciado territórios doentes, ambientalmente, socialmente e psicologicamente. Estamos lidando com homens que se dizem donos das pescadoras, porque tirar o mangue das mulheres, de onde a gente tira o nosso sustento e que crescemos indo nele pra pescar é querer ser nosso dono. As pescadoras estão com medo de ir pro mangue, porque sempre tem um segurança rondando. Esse medo, esse racismo tem matado a comunidade. Eu não tenho vivido, eu tenho vegetado. Porque tirar a minha liberdade é praticamente tirar a minha vida”, relatou a testemunha. 

Vale salientar que a maior parte da população que vive em territórios tradicionais pesqueiros é formada por pessoas negras. Logo, os conflitos e as violações de direitos recaem, mais uma vez no Brasil, sobre uma população historicamente marginalizada, que tem suas tradições e modos de vida precarizados diante do avanço do desenvolvimento e de uma política predatória sobre áreas que ou são da União ou de preservação ambiental. Além do caso de Maracaípe, conflitos em territórios são problemas comuns enfrentados por pescadoras em diferentes regiões do estado, onde empreendimentos chegam destruindo o meio ambiente, construindo cercas e agravando o adoecimento e empobrecimento das comunidades. 

São empreendimentos energéticos, como é o caso da instalação de usinas de energia eólica, como vem acontecendo no Sertão ou projetos como o que está em curso na Praia de Pitimbu, na Paraíba e que visa a construção de um porto flutuante para a carga e descarga de derivados de petróleo e álcool. O empreendimento é o Terminal Portuário Tabulog, que deverá fazer a movimentação, armazenamento e distribuição de combustíveis e possibilitar o embarque de etanol para exportação. O empreendimento, que tem aval do governo federal, prevê o investimento de R$ 879,64 milhões para a sua construção e implementação. A instalação do porto deve impactar comunidades pesqueiras de Pernambuco e da Paraíba, nas praias de Ponta de Pedras, Carne Vaca, Pitimbu, Pontinhas e Ponta de Coqueiro. 

“Eles dizem que são energias renováveis, limpas, energias do futuro. Mas o futuro de quem, se elas não beneficiam as comunidades? Conviver com o barulho da eólica não é fácil, é enlouquecedor”, relatou outra testemunha. 

“Além do imenso impacto ambiental que as tubulações que vão ser construídas dentro do mar vão causar, o acesso à praia e a atividade da pesca artesanal serão proibidas. São territórios ricos em espécies de lagosta, pitimbu… além de fazer aumentar a presença do peixe-leão e de tubarão na área”, denunciou uma outra testemunha ao afirmar ainda que a instalação do tal porto pode representar danos também ao turismo nos locais. 

Ao final das denúncias apresentadas pelas testemunhas, o júri formado por Laurineide Santana, membro do Conselho Pastoral das Pescadoras e Pescadores (CPP); Luiza De Marilac, da FASE; e Rivane Arantes, do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia, se reuniu para deliberar e definir a sentença.  

As juradas concluíram que as violações relatadas configuram violência institucional, socioambiental, de gênero, racista, territorial e estrutural e responsabilizou o Estado brasileiro, bem como suas esferas por ação, omissão, negligência e perpetuação de desigualdades que tem afetado cotidianamente as pescadoras artesanais e as comunidades. 

Mesmo sendo uma sentença simbólica, as juradas reivindicaram políticas públicas eficazes, acesso à justiça e reconhecimento das mulheres das águas como guardiãs dos territórios, dos saberes e das resistências. 

O documento síntese com as denúncias e a sentença do Tribunal Popular foi encaminhado para parlamentares na Assembleia Legislativa de Pernambuco, que realizaram na tarde do mesmo dia 24 de abril, uma Audiência Pública para discutir a situação e tirar encaminhamentos junto ao Executivo estadual e federal. 

Clique aqui e baixe a sentença do Tribunal Popular das Mulheres das Águas.

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