A mais recente publicação das Edições SOS Corpo está disponível para download. Mulheres e Cidades: Injustiças territoriais, sexismo e racismo na mobilidade urbana, de autoria de Mércia Alves, é resultado de sua pesquisa de doutorado, refletindo a experiência de mulheres negras na vivência das cidades. Clique e baixe agora!
Está disponível para download a publicação digital do livro Mulheres e Cidades: Injustiças territoriais, sexismo e racismo na mobilidade urbana, de autoria da pesquisadora e educadora do SOS Corpo, Mércia Alves. A obra é resultante da sua pesquisa de doutorado defendida em 2023 no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (PPGSS-UFPE). A publicação é um mergulho investigativo sobre a centralidade das desigualdades de gênero, raça e classe no espaço urbano, sobretudo, as interdições vivenciadas por mulheres negras em suas mobilidades cotidianas na cidade.
O livro evidencia as relações entre a organização territorial, as tensões provocadas pelos interesses capitalistas com as lutas por reforma urbana, bem como as mudanças na geografia das cidades ocasionadas pela especulação imobiliária, pelos interesses políticos que resultam no engendramento e a expulsão da população mais vulneráveis para territórios marginalizados e sem acesso às políticas públicas e direitos sociais como educação, saúde, assistência social, habitação, energia elétrica, água encanada, além do direito básico de ir e vir.
Mércia Alves é assistente social e desde sua pesquisa na graduação vem investigando os processos de desenvolvimento urbano. O ano era 1995 e o foco da análise se deu em torno da criação do Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social (PREZEIS), em Recife em 1987, e que influenciou nacionalmente a forma como se aplicavam as políticas públicas de desenvolvimento urbano e habitacional no país. O projeto de Lei que criou o PREZEIS focava na regularização urbanística e fundiária com objetivo de garantir o direito à moradia para a população mais vulnerável e que estava escanteada para as áreas periféricas da cidade do Recife. Na pesquisa do doutorado, que resultou no livro aqui lançado, o foco é na mobilidade urbana e as questões que giram em torno dos projetos de desenvolvimento da cidade.
Militante da luta urbana há mais de 20 anos, a pesquisadora comentou alguns pontos do livro que você pode baixar ao final desta publicação.
Qual foi a motivação de pesquisar mobilidade urbana?
Mércia Alves – Na verdade eu sempre tive muita preocupação com essa questão do direito à cidade, só que eu não entendia o que era o direito à cidade. Eu sempre fiquei muito preocupada com essa coisa da precariedade habitacional, com essa dimensão da trajetória da história do Recife de uma cidade polarizada entre centro e periferia. Quem me ajudou a ter esse olhar sobre o sujeito que habita a cidade foi o feminismo. Eu venho de uma militância de longa data no movimento urbano, mas só o feminismo me ajudou a perceber que as mulheres vivenciavam essa desigualdade urbana de forma diferente. E a mobilidade veio muito sobre aquilo que eu comecei a perceber as dificuldades das mulheres de participar da vida política. Isso foi o que me motivou, fora a minha vida concreta. Eu sempre fui usuária de ônibus e o cotidiano do acesso ao transporte público é muito naturalizado e eu queria entender porque que era assim. Porque em determinado momento do dia havia uma redução da frota? Porque à noite as mulheres se recolhiam e não vivenciavam a cultura, a política da cidade e ficavam muito concentradas naquilo que era do cuidar da casa, que se estendia em resolver tudo no entorno da moradia? Supermercado, frigorífico, farmácia creche… Isso foi uma coisa que me motivou: entender o porquê que isso acontecia.
Na introdução você fala de um reposicionamento na sua trajetória política, militante e acadêmica, ao mergulhar na produção de autoras e autores negros decoloniais. Qual o resultado desse reposicionamento para essa publicação?
Mércia Alves – Eu vivenciei um movimento no urbano em que a gente falava do direito à moradia, do direito ao saneamento, do direito à terra sem situar quem eram os sujeitos que viviam nessa desigualdade social urbana. E eu penso que minhas referências eram referências muito eurocentradas. Não estou desmerecendo aquilo que eu aprendi, me ajudaram muito a ler sobre essa desigualdade estrutural urbana, o processo de industrialização das cidades, a particularidade da Europa, do Brasil e da América Latina. Tinha uma lente que ajudava a perceber isso como uma dimensão estrutural da conformação do capitalismo. Mas eu não conseguia fronteiras, por mais que eu visse isso na prática, que o racismo estava posto, esses autores não tinham como centralidade o racismo ou o racismo urbano ou racismo ambiental.
E a partir da minha militância na Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, sobretudo, e no Fórum de Mulheres de Pernambuco, eu comecei a perceber que essa era uma área que tinha pouca elaboração sobre a questão racial. Essa descoberta também teve a ver com meu auto reconhecimento enquanto mulher negra de pele clara que, socialmente falando, eu não sou reconhecida como uma mulher negra. E isso também distancia a gente das referências afrocentradas, porque a universidade não aporta neste sentido. E aí eu encontrei Lélia Gonzalez, eu acho que ela é minha inspiração maior. Eu diria até que minha lente, porque coisas que Lélia escreveu em 1970, quando ela disse que a realidade do povo preto de morar na periferia e nos centros era uma divisão racial do espaço, esse conceito que ela cunhou traduz um processo histórico de como o período da escravização e o pós-abolição também foi uma forma de apagamento. O fato da população negra estar fora do enfoque das políticas públicas, que ainda hoje é a mesma coisa, as pessoas ocuparam as periferias urbanas, os alagados próximo de rios, lagoas, como forma de vivência, trazendo consigo toda uma ancestralidade que advinha dos quilombos. Por isso que fala hoje das formas de aquilombamento urbano. Não é a mesma experiência, mas é uma experiência reposicionada na história.
O que eu escrevi em 1995 na minha monografia e o que eu escrevi hoje, tem uma mudança significativa com esses aprendizados. E é claro que a experiência com as companheiras, mulheres populares feministas, que estão atuando em coletivos nos territórios, mulheres pretas que vivenciam diariamente o racismo urbano, ambiental e são verdadeiros espaços de aquilombamento negros, de aquilombamento urbano, isso para mim foi o real que dialogou com as elaborações que esses autores, sobretudo, as mulheres me trouxeram.
No terceiro capítulo você vai falar de cidades não-sexistas para pensar uma nova forma de desenvolvimento de cidade. Que cidade é essa?
Mércia Alves – É uma cidade que não é essa que a gente vive, certamente. Porque a cidade quando ela surge como, antigamente as pessoas chamavam, de burgo, o comércio era o centro de tudo. E é o comércio e a economia que estruturam a cidade. Por isso que se cria a ideia de que a cidade surge e vive do centro para periferia, como se a periferia não tivesse vida orgânica, não tivesse um pensar, não tivesse uma forma de cultura, não tivesse uma convivência. Essa cidade é uma cidade masculinizada. Porque ela vai gerar a movimentação da política e da economia e é o não-lugar da mulher. A própria estrutura da cidade ou dos territórios, pensando a cidade não só como centro, mas o que está no entorno da vida das pessoas, ela é estruturada para que as mulheres fiquem confinadas naquele território. É bom a gente ter nos territórios, no bairro, na comunidade, na periferia a padaria, a farmácia, o supermercado, o frigorífico, porque isso ajuda a dinâmica local. Mas também isso foi pensado para facilitar o acesso das mulheres a esses serviços para que ela possa dar conta da obrigatoriedade doméstica. É uma forma de você estruturar urbano como fosse o patriarcado de concreto. E uma cidade feminista na sua concepção, ela permite que essa cidade ela possa trazer na sua materialidade e nos seus símbolos, parte do sujeito que também a constrói, que são as mulheres, que são mais de 50% da população. Se eu estou no comércio, se eu estou nos serviços, se eu sou a maior força, o maior corpo político feminino racializado na sala de aula, porque essa escola tem nome de homem?
Em alguns momentos se lembra que as mulheres também construíram essa cidade. Mas é o movimento social que, ao provocar essa história, permite uma recomposição do urbano, inclusive na estrutura física. Então, pensar uma cidade feminista antirracista é perceber que se a maioria da população da cidade é feminina e negra, essa cidade precisa reconhecer nas suas políticas esse sujeito, porque trazem demandas diferenciadas daquilo que historicamente normatizou a política pública urbana. [FIM]
Com prefácio da Mônica Costa, produção editorial de Fran Ribeiro, ilustrações de Isabella Alves e revisão de Cristina Lima, o livro está disponível para download de maneira gratuita. Sugerimos e estimulamos a reprodução total ou parcial dos conteúdos desta publicação, desde que a fonte seja citada.
Autora: Mércia Maria Alves da Silva
Produção Editorial: Fran Ribeiro
Revisão: Cristina Lima
Projeto Gráfico, Ilustrações e Diagramação: Isabella Alves
Impressão: Provisual
Edição: SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia
Apoio: Pão Para o Mundo e Fondo Mujeres Del Sur