A situação das trabalhadoras domésticas depois de 10 anos da PEC 72

Descumprimento da lei, racismo, estigma, criminalização e fragilidade na fiscalização dos órgãos responsáveis são alguns dos entraves que as trabalhadoras domésticas enfrentam para ter seus direitos garantidos e respeitados. 

Lenira Carvalho, Creuza Oliveira, Luiza Batista e Eunice do Monte (todas de vermelho, respectivamente). Foto: Arquivo SINDOMÉSTICO PE.

| Pesquisa e reportagem: Fran Ribeiro | Fotos: Acervo SINDOMÉSTICO PE

Em abril de 2023, a Proposta de Emenda à Constituição 72 completou 10 anos. A PEC 72, conhecida como PEC das Domésticas, garante a regulamentação dos direitos das trabalhadoras e trabalhadores domésticos, igualando direitos com as demais categorias de trabalhadores urbanos e rurais. O texto sancionado em 2013 determinou o cumprimento de direitos trabalhistas como a jornada de trabalho de 44h semanais (8h diárias), o vínculo empregatício por mais de dois trabalhados por semana, o recolhimento do FGTS por parte dos empregadores, hora extra, férias, 13º salário, licença-maternidade, auxílio-transporte, seguro-desemprego entre outros direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Contudo, após uma década e mesmo com a Lei Complementar 150 (2015), que obriga o cumprimento dos direitos das trabalhadoras domésticas, um pouco mais de 25% da categoria tem seus direitos respeitados pelos empregadores. Num universo de mais de 6 milhões de trabalhadoras domésticas, cerca de 75% da categoria vive na informalidade.

O contexto pós-golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e os governos golpistas e anti-direitos de Temer e Bolsonaro tornaram mais grave a precarização das condições de trabalho da classe trabalhadora, mas o peso maior fica sobre as domésticas. Em uma categoria onde mais de 90% é composta por mulheres negras em situação de empobrecimento, as desigualdades e o não cumprimento da Lei não só as empurra para a informalidade, como as marginaliza e criminaliza.

Para Luiza Batista, Coordenadora-geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), o contexto social e econômico, especialmente acentuado pela pandemia de covid-19, contribuiu para o aumento de trabalhadoras em situação de informalidade e precarização da vida, mas a caça aos direitos trabalhistas nos últimos governos impediu a garantia dos direitos das trabalhadoras.

“Nós não temos a efetivação da PEC 72. Até porque logo após a Lei Complementar 150 ter sido regulamentada em outubro de 2015, no ano seguinte, fomos surpreendidas com o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e de lá pra cá, a gente só vinha colecionando retrocessos. A pandemia afetou a vida econômica do país, que já não estava tão bem. Foi um período de desgaste, de desmonte de retrocessos, de destruição geral. Nós temos uma lei de meio século e não temos sequer 30% das mais de 6 milhões de trabalhadoras com carteira assinada, formalizadas. Nós temos uma PEC que completou 10 anos, temos uma Convenção da OIT, que foi ratificada em dezembro de 2018 e que não foi implementada da forma que está no seu texto original”, explicou Luiza.

A lei de meio século a qual Luiza Batista se refere é a Lei 5.859/1972, sancionada ainda no período da Ditadura Civil-Militar brasileira, que dispõe, entre outras providências, o emprego doméstico com carteira assinada e o direito à Previdência Social. Segundo a sindicalista, além do descumprimento da lei, a discriminação sobre a profissão e o tipo de trabalho contribuiu para a desvalorização da categoria, isso porque o trabalho doméstico não é visto como um trabalho e que recai, majoritariamente, sobre as mulheres.

“O trabalho doméstico não é valorizado. E quando eu falo de trabalho doméstico, não estou me referindo só ao trabalho remunerado, estou me referindo também ao trabalho das donas de casa. Tanto é que quando uma mulher abre mão de estar no mercado de trabalho para ficar em casa, ser aquela dona de casa que cuida dos filhos, do marido, da casa, organizando, administrando o recurso que o companheiro recebe, para que ela tenha como alimentar os filhos o mês todinho, o que as pessoas dizem? Que essa mulher não trabalha. Isso é revoltante porque isso é trabalho e essa mulher trabalha muito. Quando se trata do trabalho doméstico remunerado, as pessoas olham para nós, trabalhadoras domésticas, na sua grande maioria mulheres negras, sem escolaridade ou com muito pouca, nos veem como uma pessoa inferior, que temos mesmo que fazer esse serviço pois é a único trabalho diante das nossas condições de vida, que podemos exercer,” ressaltou Luiza.

Herança escravocrata ainda marca o trabalho doméstico remunerado no Brasil

A herança escravocrata colonial persiste sobre o trabalho doméstico remunerado. A sucessão de absurdos que as trabalhadoras em contexto de informalidade são submetidas pode ser narrada na experiência de Maria de Lourdes, 64, natural de Alagoas e que mora desde os 20 anos em Recife. De um contexto de violência doméstica, Lourdes precisou fugir de casa após ser espancada pelo pai. Abrigada na casa de familiares em Maceió, ela conseguiu um emprego de doméstica na casa de um parente do empregador de uma de suas primas, que também era trabalhadora doméstica e na época já trabalhava em Recife.

O ano era 1979 e Lourdes conseguiu esse emprego, mas era um trabalho em condições análogas a escravidão. Dos 20 aos 28 anos ela viveu trancada num cômodo no quintal da casa de seu empregador, em condições insalubres. Em uma das poucas saídas que ela conseguia fazer, para resolver coisas na rua, conheceu outra trabalhadora doméstica que a alertou sobre a sua situação. Depois disso, conseguiu arquitetar uma fuga, improvisando uma escada para pular o muro. Após essa experiência traumática que lhe causaram sequelas físicas, ela conseguiu seu primeiro trabalho de carteira assinada, mas descobriu, anos depois, que a empregadora não fazia a contribuição no INSS.

Seis anos depois ela conseguiu um outro emprego, dessa vez não apenas com a assinatura da carteira, mas com todos os direitos que eram possíveis na época, o ano era 1988. Depois de 24 anos trabalhando nessa mesma casa, com a promulgação da PEC 72 em 2013, ela firmou um novo acordo com a mesma empregadora, que lhe garantiu seus direitos trabalhistas. Atualmente aposentada, Maria de Lourdes destaca a importância do conhecimento adquirido no Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Pernambuco para que ela lutasse para ter seus direitos respeitados.

“Eu comecei participando das reuniões no sindicato das domésticas e a cada reunião eu gostava mais, pois eu sabia que dali eu ia conquistar a minha liberdade”, nos contou, abrindo um sorriso.

Foto: SOS Corpo.

Casos como o de Maria de Lourdes são mais comuns do que a gente consegue ver e saber, pois um dos desafios para a luta das trabalhadoras domésticas, além da garantia do cumprimento da lei, é a falta de fiscalização e a burocracia para que os auditores fiscais do Ministério do Trabalho consigam checar uma denúncia com celeridade. Casos de trabalhadoras e trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão tem sido recorrentes e é um dos grandes problemas sociais que temos enfrentado, consequência do racismo e da impunidade contra crimes como este.

“As pessoas que cometem esse tipo de crime roubam a vida dessa trabalhadora, porque isso é um roubo, uma violência tremenda, os anos não voltam. Muitas vezes essa trabalhadora perdeu a infância, a adolescência, a juventude, todo o período que ela poderia construir uma vida própria, uma família própria, e ela ficou ali cuidando daquela família o tempo todo, sem uma jornada de trabalho, que já é lei desde 2013, com a PEC 72 que não é respeitada, sem receber um salário digno. E quando essa trabalhadora é resgatada, o que a gente vê? Essa trabalhadora vai receber três parcelas de salário-mínimo, que são as três parcelas do seguro-desemprego, previstas na Lei Complementar 150, que já é injusta, que deveriam ser cinco como qualquer outra categoria regulamentada. Quando casos desse tipo acontecem, os rostos dos patrões não são divulgados, mas o da trabalhadora é”, analisou Luiza Batista

Desafios da luta das trabalhadoras domésticas

O contexto de uberização do trabalho atingiu também as trabalhadoras domésticas. Hoje, grande parte da categoria é formada por diaristas, que não estão cobertas pela PEC 72. O contexto de dificuldade econômica do país agrava a situação da informalidade. Isso porque, ao perder um emprego com vínculo empregatício e se deparar com a perda da renda, as trabalhadoras aceitam ir duas vezes na semana para um trabalho como diarista e tem que lidar com empregadores que querem que essa trabalhadora dê conta do acumulado da semana em dois dias. Elas acabam se submetendo a esse regime de trabalho para ter uma renda mínima que garanta a sua subsistência e de seus filhos. Para Luiza Batista, essa é uma situação muito complexa.

“A gente tem essa chamada revolução 4.0, do contexto dos MEIs (Microempreendedor Individual), de um discurso de empreendedorismo que é muito difundido, mas que não tem nenhuma perspectiva de segurança para classe trabalhadora. E para as trabalhadoras domésticas isso é péssimo, porque o trabalho doméstico não é algo que se faz rápido, a trabalhadora não tem como limpar uma casa em pouco tempo, isso não permite que ela preste serviço em mais de uma casa por dia. Sem contar que há inúmeros casos de trabalhadoras que caem na má-fé dos empregadores. Já recebemos aqui no Sindicato caso de trabalhadora que se viu obrigada a abrir um MEI para trabalhar numa residência. Ela vinha do interior, não sabia ler, mal sabia assinar o nome e o empregador fez um MEI pra ela. Ela trabalhou na casa dele por 2 anos, e uma trabalhadora do apartamento vizinho perguntou se ela não tirava férias. Quando a moça alertou que ela tinha direito a férias, ela falou com o patrão e ele alegou que não tinha obrigação, pois ela não tinha vínculo, já que era MEI. Ele não pagava 13º, férias, não pagava hora extra, nem recolhia FGTS ou INSS. O caso dela foi para a justiça”, relatou.

Foto: Arquivo SINDOMÉSTICO PE.

O contexto de pejotização é complexa para a categoria, especialmente por empurrar as trabalhadoras para uma condição de desproteção social e trabalhista. Além dos riscos de dever algo ao governo com o não cumprimento das regras para esse tipo de modalidade de trabalho, como as obrigações burocráticas de envio de relatórios para a Receita Federal e pagamentos de impostos sobre os serviços.

“A gente combate essa ideia de empreendedorismo nesse contexto de uberização do trabalho, porque isso gera a precarização do trabalho. É muito trabalho sem nenhum tipo de proteção social”, destacou Luiza.

Fragilidade na fiscalização contribui para a permanência da informalidade

A fiscalização para o cumprimento das Leis e das denúncias de violação de direitos é um dos principais entraves para a garantia de proteção social e da luta das trabalhadoras. Diferentemente de outras categorias de trabalhadores, as trabalhadoras domésticas têm dificuldade de ter seus casos investigados quando denúncias são feitas, uma vez que o local de trabalho é uma residência e a Constituição Federal, em seu artigo 5º inciso XI, garante a inviolabilidade. As denúncias então não podem ser feitas em flagrante, mas apenas com determinação judicial, algo que pode levar muito tempo para ser concedido.

“A gente sabe que essa condição (inviolabilidade da residência) só existe para pessoas com pele branca, com uma boa conta bancária, cabelos lisos, olhos claros. Porque na periferia onde eu moro é permitido, basta qualquer tipo de denúncia, da mais simples, a polícia chega com o pé na porta, batendo, revirando tudo. Então, são coisas assim que já são de um racismo estruturante”, destacou Luiza Batista.

Para a auditora fiscal do Ministério do Trabalho em Pernambuco, Teresinha de Lisieux, é preciso instrumentalizar a auditoria fiscal do trabalho para garantir os direitos que hoje as trabalhadoras domésticas têm. “A auditoria fiscal ainda é muito desaparelhada, principalmente na parte de pessoal. Nós hoje estamos com déficit de 40% do nosso quadro de auditores fiscais, muito aquém do que era quando eu entrei, há 25 anos”, destacou.

Mesmo diante de circunstâncias institucionais que impedem uma melhor execução dos trabalhos da auditoria, a inspeção do trabalho criou em 2021 a Coordenação Nacional de Combate à Discriminação e Promoção de Igualdade de Direito de Trabalho, que estabeleceu um operativo nacional, que em 2023 tem como foco o combate à informalidade do contrato de trabalho das trabalhadoras domésticas.

“O operativo nacional de combate à informalidade do contrato de trabalho doméstico vai acontecer numa fiscalização direta, uma força tarefa, para fiscalizar condomínios de casas e de apartamentos, buscando encontrar a trabalhadora na chegada ao trabalho e pegando esses dados dela, nome, CPF, nome do empregador, para que a gente possa notificar esse empregador a vir regularizar esse vínculo da trabalhadora. O operativo já começou a acontecer, já teve condomínio notificado e as trabalhadoras foram ouvidas. Esses empregadores serão chamados a prestar esclarecimentos sobre esses contratos e só a partir da vinda desses documentos é que a gente vai saber se essa trabalhadora estava clandestina ou se ela estava registrada”, explicou Teresinha de Lisieux.

Ainda de acordo com a auditora, o operativo aqui em Recife já teve seu pontapé agora no mês de abril e nas próximas semanas deve intensificar as forças. O principal objetivo é tentar chegar ao maior número de trabalhadoras e a partir dessas informações colhidas, atingir o maior número de empregadores. A perspectiva é positiva, mesmo tendo um efetivo muito aquém para o tamanho da população da cidade.

“O momento que a gente está na porta de um condomínio é muito mais fácil de você atingir um número maior de empregadores do que você ter uma única ordem de serviço para atingir um único empregador. E eu tenho certeza que esse movimento da fiscalização indiretamente vai regularizar muita coisa, porque a impunidade tem esse poder de guardar quem não cumpre a lei e de resguardar quem não está direito, de quem não atua conforme o que o Direito disciplina. Então eu acho que no momento que existe uma fiscalização efetiva acontecendo, as pessoas, os maus empregadores domésticos vão sair dessa zona de conforto e vão se regularizar”, destacou a auditora fiscal.

A expectativa das trabalhadoras domésticas para esse operativo é de esperança de que seus direitos comecem a ter respaldo institucional que obrigue os empregadores a cumprir a lei. Mas a luta não para. “A gente sabe que tem muito trabalho a ser feito e a categoria precisa se manter organizada para seguir na luta pelos nossos direitos. Isso é muito positivo, mas também não é por conta disso que vamos cruzar os braços, nem eu nem as companheiras, nós não cruzamos os braços. Seguimos na luta”, finalizou Luiza Batista.

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