Lenira Carvalho, pensamento vivo e em movimento

Depois do filme sobre Lenira Carvalho ter circulado em diversas cidades do Brasil e em capitais de países na Europa, convidamos Sophia Branco, uma das diretoras do filme, para contar sobre a recepção dessas exibições e as reflexões trazidas pelo público depois de assistirem o documentário. Sophia traz neste texto as considerações de muitas mulheres que são ou foram trabalhadoras domésticas, de filhas e filhos de trabalhadoras e ex-trabalhadoras, assim como de mulheres migrantes que viajam para Europa em busca de melhores condições de vida, mas acabam precisando viver nas casas onde trabalham. O filme provoca emoções fortes, porque revela nas palavras pedagógicas da nossa companheira Lenira as feridas sociais que persistem desde a invasão colonial.

Imagem mostra um titulo em vermelho com os dizeres: “Lenira Carvalho no mundo”, o mapa do Brasil e de parte da Europa com alguns países e estados pinçados, e à esquerda se vê o cartaz do filme: uma imagem em preto e branco onde se vê Lenira jovem, escorada num muro em frente a sua casa, e o título do documentário: “Digo às companheiras que aqui estão”

Por Sophia Branco*, artigo especial para o SOS Corpo

Nos últimos meses, o pensamento e a história de Lenira Carvalho têm viajado através das sessões que temos organizado do filme Digo às companheiras que aqui estão, onde a gente tem também divulgado o livro A luta que me fez crescer e outras reflexões. Depois das sessões sempre surgem muitas conversas entre nós que trabalhamos no filme, que vem da vontade de dividir com quem não esteve presente, as impressões e aprendizados dos debates e compartilhar uma emoção muito bonita que vem de ver como o pensamento de Lenira promove tantas discussões diferentes e toca as pessoas de formas tão profundas. 

A partir dessas conversas, surgiu a ideia de escrever um texto que registrasse as experiências das sessões. Quando comecei a pensar sobre o que escrever, fiquei tentando encontrar uma forma de falar desse sentimento de entusiasmo que Lenira desperta em tanta gente. Quando a gente conversa com pessoas que conheceram Lenira Carvalho, a gente percebe que existe um fio que costura algo incomum nas memórias que elas guardam dos encontros e da vida compartilhada com ela, é um sentimento de aprendizado vivo e em movimento. Lenira foi uma mestra, uma mentora para muita gente. Essa sabedoria que ela carregava e compartilhava é uma das características mais fortes nas memórias das pessoas com quem ela conviveu. E uma das coisas que mais me emocionam nas sessões é perceber que, de alguma forma, através do filme esses encontros com Lenira seguem sendo possíveis.

A voz de Lenira conecta gerações

Digo às companheiras que aqui estão foi mudando ao longo do caminho em que foi sendo feito. Mas algo permaneceu do início ao fim, que além da nossa admiração, era o desejo de fazer com que mais pessoas pudessem conhecer a história e o pensamento de Lenira. E ainda que esse propósito continue o mesmo em cada sessão que a gente faz do filme, foi só pouco a pouco que eu fui entendendo que o próprio significado de fazer com que mais pessoas conheçam a história e o pensamento de Lenira também ia mudando, no encontro do seu pensamento com a história e com o pensamento de outras pessoas.

O primeiro momento em que senti isso foi ainda durante a montagem do filme. Caioz, amigo e montador do filme, trouxe uma proposta. A ideia era transformar o processo de montagem numa experiência de formação do Coque Vídeo, coletivo de audiovisual do Bairro do Coque, no Recife. Aceitamos a proposta, que fazia todo o sentido com o que Lenira construiu ao longo da sua vida. A equipe nesse momento ganhou mais três integrantes, Dandara Canuto, Maroca Cavalcante Silva e Medusa, bem mais jovens que o resto de nós. Elas participaram de toda a discussão sobre o roteiro do filme e assinaram a montagem com Caioz. Entre uma reunião e outra, foram aprimorando os conhecimentos técnicos e narrativos de montagem, e construindo o filme junto com a gente. E foram, também, conhecendo Lenira melhor.

O entusiasmo das reuniões, que vinha desse entusiasmo de ouvir Lenira falando, de pensar junto e a partir do que Lenira falava, fez a gente conversar várias vezes sobre como era bonito e importante ver uma nova geração conhecendo uma liderança tão importante como Lenira Carvalho. Me lembro do entusiasmo compartilhado por elas, depois de ver as gravações de uma mulher de quase noventa anos, muito religiosa, falando sobre a legalização do aborto. Me lembro, também, do dia em que pensamos em inserir no filme uma narração com parte do discurso de Lenira na Constituinte. Maroca leu o discurso na reunião, depois Dandara gravou um áudio no celular com a leitura do discurso, para que a gente pudesse experimentar no processo de montagem. Naquele momento, fui percebendo que o filme era uma forma de conectar as e os mais jovens com a luta de Lenira e com o nosso passado de resistência. E que isso emocionava e fazia sentido não apenas para nós que achávamos importante que as gerações mais jovens conhecessem essa história, mas também para as gerações mais jovens, porque Lenira também dialogava com muitas inquietações que estão colocadas para essas gerações.

Quando Maroca leu o discurso na reunião, o filme ainda não tinha esse nome, que só chegou quando ele já estava quase pronto, por sugestão de Isabella Alves, artista e designer que fez as artes do filme. Digo às companheiras que aqui estão é um trecho desse discurso. É uma conexão entre o momento em que ela se apresenta e o argumento que ela desenvolve para reivindicar os direitos e a cidadania das trabalhadoras domésticas. É um conectivo que enfatiza a força da enunciação de uma trabalhadora doméstica para outras trabalhadoras domésticas num momento muito importante de transição na história do país. A cada sessão, a gente também foi entendendo melhor o próprio nome que a gente escolheu pro filme. Cada sessão é uma enunciação e uma convocação, um chamado, um convite para ouvir e pensar juntas.

O filme revela emoções fortes

Depois da estréia, no Teatro do Parque (Recife), o filme circulou pelo interior de Pernambuco, em sessões organizadas pelo IF Sertão Pernambucano de Floresta, Ouricuri e Petrolina, pelo Fórum de Mulheres do Araripe, pela Universidade Federal Rural de Pernambuco em Serra Talhada e no Festival Sertão Alternativo, em Afogados da Ingazeira. Foi exibido pelo Instituto Moreira Salles em São Paulo e no Rio de Janeiro em sessões em homenagem a Laudelina de Campos Melo. Foi exibido em festivais de cinema em Coimbra (Caminhos do Cinema Português) e Buenos Aires (Semana por la soberania Audiovisual). Foram organizadas sessões em Paris, em parceria com a Associação de Pesquisadoras e Estudantes Brasileiros na França (APEB-FR), em Lisboa, com o Museu do Aljube, no Porto, com o grupo de pesquisa Identidades, da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, e em Barcelona, em parceria com o Sindicato de Trabalhadoras Domésticas e de Cuidados (Sindillar) e com o Centro de Cultura de Mulheres Francesca Bonnemaison – LaBonne

O filme abriu várias conversas sobre o Brasil de ontem e de hoje, as desigualdades sociais, a experiência histórica da escravidão que se mantém viva no trabalho doméstico hoje, o abismo entre os direitos trabalhistas conquistados e o acesso a esses direitos, evidenciando os desafios que a categoria segue enfrentando no dia a dia do trabalho e na organização coletiva, mas também levantou conversas sobre resistência, esperança e a luta pela transformação do mundo.

Nos IFs e na UFRPE, tivemos debates muito ricos, que se conectaram com as disciplinas e as leituras que as e os estudantes têm discutido nesses espaços. O filme abriu várias conversas sobre o Brasil de ontem e de hoje, as desigualdades sociais, a experiência histórica da escravidão que se mantém viva no trabalho doméstico hoje, o abismo entre os direitos trabalhistas conquistados e o acesso a esses direitos, evidenciando os desafios que a categoria segue enfrentando no dia a dia do trabalho e na organização coletiva, mas também levantou conversas sobre resistência, esperança e a luta pela transformação do mundo. Nessas sessões, a gente encontrou com mulheres que são ou foram trabalhadoras domésticas, e também com filhas e filhos de mulheres que são ou foram trabalhadoras domésticas. Cada encontro parece uma nova janela aberta a partir do pensamento de Lenira, com a troca de experiências vividas e revoltas sentidas, que sempre trazem novos elementos pra gente seguir pensando ao mesmo tempo em que se encaixam como peças de um quebra-cabeças nas reflexões trazidas em outras sessões. Foram encontros que também não podem deixar de fazer a gente pensar no tamanho da luta e no quanto foi conquistado para que trabalhadoras domésticas, filhas e filhos de trabalhadoras domésticas, estejam hoje nas salas de aula das Universidades e Institutos Federais. Conquistas ameaçadas e incompletas, mas que devem ser sempre celebradas. 

A escala do trabalho doméstico no Brasil revela como a experiência colonial se perpetua no presente

A relação do público das sessões em Pernambuco com as questões trazidas por Lenira no filme foi muito diferente da relação do público das sessões que aconteceram fora do Brasil. Uma série de dúvidas e discussões sobre a natureza e a escala do trabalho doméstico no Brasil foram levantadas nas sessões em Paris, Lisboa, Porto e Barcelona. E não dá pra conversar sobre a escala do trabalho doméstico no Brasil sem refletir sobre o que foi a experiência colonial e como ela se perpetua no presente. As reflexões que Lenira compartilha com a gente no filme ganharam outra amplitude histórica nas sessões que aconteceram fora do Brasil. Algumas coisas que a gente discutiu nas sessões em Pernambuco como questões que falam sobre a história do Brasil foram discutidas como temas da história da América Latina e do Caribe. O pensamento de Lenira conectou experiências de diferentes países, e também como um pouco de partida para pensarmos as relações entre Sul e Norte globais. Conversamos muito sobre as cicatrizes abertas pela experiência de invasão colonial, sobre como ela moldou nossos territórios e as relações que se construíram neles, e como a transformação das desigualdades sociais que nasceram dessa experiência é um desafio permanente. 

A partir das experiências da América Latina, fomos costurando entendimentos sobre como o trabalho doméstico e os trabalhos de cuidados estão distribuídos mundialmente, sobre a existência de uma rede internacional invisível de trabalho de cuidados que sustenta o mundo, e sobre a relação desses trabalhos com a migração de mulheres dos países mais pobres para os países mais ricos. Principalmente na sessão de Barcelona, que reuniu muitas trabalhadoras domésticas, na sua totalidade imigrantes, surgiram muitos paralelos entre a exploração e o isolamento da vida das trabalhadoras domésticas que, no Brasil, saem do interior para trabalhar nas capitais, vivendo na casa dos patrões e vivendo a vida dos patrões, com as experiências vividas pelas mulheres imigrantes que viajam para Europa em busca de melhores condições de vida, que conhecem poucas pessoas quando chegam nesses novos lugares e vivem nas casas onde trabalham. São trabalhadoras que, assim como no Brasil, na grande maioria dos casos, não têm seus direitos trabalhistas garantidos. Apesar das diferenças entre as sessões, elas evidenciaram como a desvalorização, o estigma social e as injustiças que atravessam o trabalho doméstico nos mais diferentes contextos estão muito próximas. Na sessão em Barcelona, que contou com a presença de muitas mulheres militantes, os desafios da organização política de uma categoria tão vulnerável socialmente também foi trazido como algo que conecta as experiências do trabalho doméstico remunerado no mundo.

Lenira Carvalho dedicou a sua vida à luta pela dignidade das trabalhadoras domésticas, à luta contra preconceitos, injustiças e contra a exploração, construiu com suas mãos e coração, junto com tantas e tantos companheiros, um horizonte mais democrático para o Brasil. Uma das coisas que sempre me marca nas sessões é o sentimento de encantamento e convite para a caminhada da luta, que fica entre o público. Apesar dos debates mais duros e difíceis que o filme levanta, esse é um sentimento que se mantém aceso ao fim das sessões, o sentimento de que faz sentido lutar, de que vale a pena lutar. Essas experiências têm me ensinado muito e continuam gerando uma empolgação muito grande com as muitas coisas que aprendi no contato com Lenira, seja lendo o que ela tinha escrito ou dito, escutando ela falar em debates, nas conversas que a gente teve na casa dela, antes, durante e depois das gravações do filme ou, agora, quando assisto ao filme junto com outras pessoas.

Assista o filme

No filme Digo às companheiras que aqui estão (35min), Lenira Maria de Carvalho narra sua trajetória na organização da luta das trabalhadoras domésticas no Brasil. Uma história pessoal que se entrelaça com a luta por direitos e pela democracia nas últimas 6 décadas no país.
Legendas disponíveis em Português, Espanhol e Francês, diretamente no Youtube.
Versão com acessibilidade: https://youtu.be/q19Stptn8rM

DIREÇÃO Sophia Branco e Luís Henrique Leal
PRODUÇÃO Sophia Branco, Luís Henrique Leal e Caioz
IMAGEM Luís Henrique Leal e Victor Giovanni
PESQUISA E ROTEIRO Camila Teixeira Lima, Carmen Silva, Luís Henrique Leal, Sophia Branco
MONTAGEM CAioz, Dandara CAnuto, Maroca Cavalcante Silva e Medusa
COR Germana Glasner
SOM Victor Giovanni, Caioz e Marila Cantuária
EDIÇÃO DE SOM E MIXAGEM Nicolau Domingues
NARRAÇÃO Uana Mahin
CARTAZ Isabella Alves
REALIZAÇÃO SOS Corpo e Parabelo Filmes
Apoio Brot für die Welt, Fondo de Mujeres del Sur

Contato para exibições: SOS Corpo – comunicacao@soscorpo.org.br


* Sophia Branco é socióloga, feminista e militante do Fórum de Mulheres de Pernambuco-AMB. Dirigiu “Digo às companheiras que aqui estão” com Luís Henrique Leal e editou “A luta que me fez crescer e outras reflexões” com Carmen Silva.

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Next Post

Evento feminista debate desafios democráticos na América Latina

qui maio 11 , 2023
O SOS Corpo propõe um debate público para discutir sobre participação social, partindo de uma análise de conjuntura do Brasil e da América Latina, considerando as diferenças de sistemas políticos, e o crescimento da extrema direita e as resistências impulsionadas pelos movimentos soc