Parem de nos matar!

Parem de nos matar!

No Brasil pandêmico, junto à alarmante quantidade de mortes pela Covid-19, tivemos outra estatística trágica: o aumento de feminicídios

TEXTO LUCIANA VERAS | OBRAS LÍVIA AQUINO | REVISTA CONTINENTE

Obra ‘Gritemos’. Foto: Aline Canassa (MAP/FAAP)/ Divulgação

Mirella não compareceu ao trabalho na manhã de uma segunda-feira de março de 2004 e isso alertou a empresa onde ela trabalhava, em São Paulo, que então ligou para sua família, no Recife, para indagar: alguma notícia da funcionária dedicada que até então nunca faltara a um único compromisso profissional? Ângela estava em Búzios, no litoral do Rio de Janeiro, para as festividades de fim de ano, mas, no penúltimo dia de 1976, decidiu terminar seu namoro, que durava poucos meses. Daniella havia saído das gravações no estúdio da emissora onde atuava, na capital carioca, em uma noite de dezembro de 1992, mas nunca chegou em casa. Isabel pediu à amiga Socorro para acompanhá-la em uma conversa com o ex-marido, com quem precisava discutir os pormenores do desenlace a respeito de um empreendimento comercial, no final de 2019, no interior de um estado do sudeste brasileiro.

Mirella Bezerra de Melo Martins morreu em 22 de março; Ângela Maria Fernandes Diniz, em 30 de dezembro. Causa das mortes: disparos por arma de fogo perpetrados por homens com quem haviam se relacionado – respectivamente, Rogério Gomes de Faria e Raul Fernando do Amaral Street. Daniella Ferrante Perez Gazolla foi apunhalada várias vezes por Guilherme de Pádua Thomaz, ator com quem contracenava na novela De corpo e alma, e pela esposa dele, Paula Nogueira de Almeida Thomaz. Isabel e Socorro, nomes fictícios, hoje vivem nas lembranças de quem as conheceu e nos autos processuais de uma vara criminal: faleceram em decorrência de severas queimaduras, ocasionadas após o ex-marido de Isabel atear fogo a um colchão e colocá-lo em frente à porta do banheiro onde as amigas haviam se refugiado tão logo o homem, violento, começou a espancar a ex-mulher.

De acordo com um transeunte que as socorreu quando as duas fugiram do incêndio, testemunha ouvida na primeira audiência deste caso, transcorrida em outubro de 2020, como o colchão era composto por um material de alta inflamabilidade, a pele das vítimas parecia “estar cozida”, desprendendo-se dos ossos. Ângela levou quatro balas no rosto. Daniella foi atingida com 18 perfurações no pescoço, no pulmão e no coração – primeiro, acreditou-se que por uma tesoura, mas depois constatou-se que por um punhal. E Mirella teve seu corpo achado dias depois. O criminoso, que chegara a rezar junto aos pais da pernambucana, foi preso em junho de 2004, acusado não apenas de homicídio, como atestam os termos do processo, mas também de furto: “subtraiu, para si, documentos e telefone celular da vítima, tentando ainda subtrair valores que estavam depositados em seu nome”.

As mulheres não apenas morrem no Brasil: elas são assassinadas, trucidadas, aniquiladas, massacradas. Na maioria desses casos, com crueldade, como se o corpo fosse um alvo a ser conspurcado com ódio. São esfaqueadas em uma praça de alimentação, como Vytória Motta, atacada em Niterói, no início de junho, por um colega; em um estacionamento, como Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, morta na Barra da Tijuca, em dezembro de 2020, pelo ex-marido e diante das três filhas do casal; ou durante uma partida de jogo online, como Ingrid Bueno, em Pirituba, na capital paulista, cuja morte foi propagada pelo próprio assassino em vídeo compartilhado em fóruns de mensagens.

Elas não apenas falecem, mas têm sua existência abreviada com fúria. São asfixiadas e descartadas, como Patrícia Roberta Gomes, que saiu de Caruaru até João Pessoa para conhecer um rapaz com quem conversava via aplicativo, em abril, cujo corpo foi encontrado em um saco plástico; Emelly Nayane da Silva, esganada em Paulista, na região metropolitana do Recife, em fevereiro, pelo ex-marido, com quem tinha um filho; e Tatiane Spitzner, que o marido jurou ter despencado da sacada do apartamento, em julho de 2018, em Guarapuava, no Paraná, mas que foi por ele assassinada – como apontou o laudo da autópsia, por “asfixia mecânica”, e como evidenciam imagens em vídeo de agressões que sofreu no elevador. Luis Felipe Manvailer foi condenado a 31 anos, 9 meses e 18 dias de prisão por um tribunal do júri em maio.

Elas são atravessadas por tiros, como Luciene Garra, em Caçapava do Sul, no Rio Grande do Sul, em outubro de 2020; Marley Dias, que tombou na sua própria casa, em janeiro deste ano, em Sobradinho, no Distrito Federal; e Eliane Siolim, alvejada com pelo menos 17 projéteis, em janeiro de 2021, em Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul. Em comum, esses três casos possuem dois fatores entristecedores, porém comuns no Brasil: quem matou foram os maridos, ou ex-companheiros, que se suicidaram em seguida.

Na Constituição Federal do Brasil, promulgada em 1988, o artigo 5º do capítulo I – Dos direitos e deveres individuais e coletivos – define: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Na prática, o cotidiano de uma nação da qual machismo e misoginia são componentes ontológicos nos leva a crer que os brasileiros, sim, esses com o “O” no final para demarcar bem o gênero, têm mais direitos, pois a eles caberia a prática, muitas vezes impune, de uma violência descomunal contra as mulheres.

A julgar pelas estatísticas, pode-se estender o raciocínio aos homens da América Latina. Dados disponibilizados pela plataforma EVA – Evidências sobre violências e alternativas para mulheres e meninas, lançada pelo Instituto Igarapé em 25 de novembro – Dia Internacional para a eliminação da violência contra a mulher – de 2019, constatam: matar mulheres é endêmico.

“Com frequência, mulheres representam as principais vítimas de todos os tipos de violência, com exceção do homicídio. Adicionalmente, assassinatos de mulheres costumam ser a fase final de uma sucessão de agressões. EVA é uma plataforma de visualização que inclui conteúdo relevante para informar políticas públicas voltadas para a prevenção, redução e eliminação da violência contra mulheres na América Latina. A ferramenta mapeia casos de diversos tipos, inicialmente, em três países: Brasil, Colômbia e México”, informa o site do Igarapé, “uma instituição sem fins lucrativos, independente e apartidária, com sede no Rio de Janeiro”.

Mais de 25 mil mulheres foram assassinadas no México entre 2010 e 2018; na Colômbia, foram 10,8 mil, das quais, em 2018, 43% tinham entre 15 e 29 anos. No Brasil, foram 42 mil – um número quase quatro vezes maior do que o país vizinho e 65% maior do que o país da América Central. É certo que nossa população é maior – temos quase 212 milhões de habitantes, em cotejo aos 126 milhões e aos 50 milhões, respectivamente, que moram em solos mexicano e colombiano. Porém, os números assustam. São as Mulheres empilhadas, como explicita o título do livro mais recente da escritora Patrícia Melo, lançado em 2019 pela editora Leya, ou as Garotas mortas, para aludir à obra de não ficção concebida pela portenha Selva Almada em 2014 (publicada no Brasil pela Todavia em 2018).

“Eu tinha 13 anos e, naquela manhã, a notícia da garota morta me chegou como uma revelação. Minha casa, a casa de qualquer adolescente, não era o lugar mais seguro do mundo. Você podia ser morta dentro da sua própria casa. O horror podia viver sob o mesmo teto”, recorda Selva em Garotas mortas, a propósito do caso de Andrea Danne, que ocorreu em uma cidade próxima à da família da autora. “Eu não sabia que uma mulher podia ser morta pelo simples fato de ser mulher, mas tinha escutado histórias que, com o tempo, fui ligando umas às outras. Casos que não terminavam com a morte da mulher, mas em que ela era objeto da misoginia, do abuso, do desprezo”, complementa.

“Matar mulheres é um crime democrático, pode-se dizer”, atesta a narradora de Mulheres empilhadas. “Eles matam porque gostam de matar mulheres. Da mesma forma que gostam de pescar ou jogar futebol. É claro que eles não nascem, assim, com desejo de matar mulheres. Alguns até nascem, os psicopatas. Mas os psicopatas são a elite dos assassinos. Já nascem prontos. A grande massa operária de assassinos, digo, a maioria, tem que aprender o ódio, antes de sair matando por aí”, delineia a personagem sem nome, uma advogada que, na trama, após ser agredida pelo namorado em uma festa, vai até o Acre para participar de um mutirão jurídico para acelerar o julgamento de casos de feminicídio. “Nada mais fácil do que aprender a odiar as mulheres. O que não falta é professor”, compreende. A propaganda, a cultura, o mercado, a pornografia… “O pai ensina. O Estado ensina. O sistema legal ensina”.


Vermelho como palavra ainda é uma cor fantasma. Foto: Lívia Aquino

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Em 1603, Felipe II era rei da Espanha e de Portugal – em terras lusas, reinava como Felipe I – e normatizou seu código de conduta por meio das Ordenações Filipinas. Durante dois séculos, o Livro V de tais ordenações era a lei no então Brasil colônia, pelo Brasil império e nos primeiros anos após o Brasil declarar sua independência. Só caducou com a Constituição de 1824, que determinava a elaboração de um código civil e criminal. O Código Criminal surgiu em 1830; o Civil, apenas em 1916. De acordo com José Henrique Pierangeli em Códigos penais do Brasil: evolução histórica (Javoli, 1980), o veredicto das Ordenações Filipinas com relação às mulheres era peremptório:

“E toda mulher, que fazer adultério a seu marido, morra por isso. E se ella para fazer o adultério por sua vontade se fôr com alguém de caza de seu marido, ou donde a seu marido tiver, se o marido della querelar, ou a accusar, morra morte natural”.

A morte natural era o enforcamento. Mais adiante, as Ordenações Filipinas cristalizam os direitos masculinos, se a mulher ousar cometer adultério:

“(…) não somente poderá o marido matar sua mulher e o adultero, que achar com ella em adultério, mas ainda os póde licitamente matar, sendo certo que lhe cometterão adultério; e entendendo assi provar, e provando depois o adultério per prova licita e bastante conforme á Direito, será livre sem pena alguma, salvo nos casos sobreditos, onde serão punidos segundo acima dito he”.

Ou seja, macho, fique à vontade para imaginar sua esposa como posse e chacina-la à vontade, do jeito que lhe apetecer melhor – no século XVII, quando isso lhe era permitido pela legislação vigente, ou no século XXI, quando a sociedade sustenta que a infidelidade masculina é praxe e que mulheres que traem merecem punição.

“Até hoje, quando falamos do corpo feminino, parece que os homens andam com um controle remoto na mão para controlar a sexualidade da sua mulher”, observa a antropóloga Analba Brazão, da equipe do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia e integrante do Fórum de Mulheres de Pernambuco e da Articulação de Mulheres Brasileiras. “Não mudou muita coisa, talvez a forma como as mulheres vêm sendo mortas. Com muito mais crueldade agora. Teve um momento em que era ácido que estava se jogando no rosto das mulheres, para desfigurar. ‘Você não é minha, então vai morrer, porque aí não vai ser de mais ninguém’. Escrevi um livro sobre isso, propondo uma discussão sobre a construção do amor romântico”, acrescenta.

Nunca você sem mim Homicidas-suicidas nas relações afetivo-conjugais (Annablume, 2009), fruto da sua dissertação de mestrado defendida da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, analisa casos em que os homens tomam a decisão de interromper suas próprias vidas tão logo exterminem aquelas que decidiram se separar. “O feminismo coloca o tempo inteiro: lutamos pela autonomia da mulher. Com a construção de um amor romântico, muitas vezes as mulheres sofrem um ciclo de violência, porque o homem é violento e bate, mas depois se arrepende, aí fazem as pazes, eles voltam e a mulher fica presa àquele relacionamento. Quando as mulheres conseguem dizer ‘não, não quero mais’, vem essa rebordosa do feminicídio. Porque, ao se separar, os homens não podem nem imaginar que você vai estar na cama com outro homem. Ele se sente desonrado. E o homem tem honra. Mas a mulher não: ela não tem honra. Ela macula a honra do outro. E aí temos as teses da ‘legítima defesa da honra’ ou da ‘violenta emoção’. Que nem no caso de Ângela Diniz, que o Brasil todo acompanhou, inclusive nós, militantes, no Rio Grande do Norte, pois foi muito importante para o movimento feminista”, pontua Analba.

Em setembro de 2020, o podcast Praia dos Ossos, produzido pela Rádio Novelo, narrou em oito episódios a história de Ângela Diniz, a pantera de Minas Gerais, assim descrita por colunistas sociais, e contextualizou sua morte no enclave entre a herança medieval das Ordenações Filipinas e a ascensão do movimento feminista, espelhado na frase que tomou o Brasil: “Quem ama não mata”. Morta por Raul “Doca” Street numa casa em Búzios, instantes depois de comunicá-lo da sua decisão de encerrar o relacionamento, Ângela seguiu sob intenso escrutínio público por três anos até o primeiro julgamento, em outubro de 1979. “Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras”, sentenciou o poeta Carlos Drummond de Andrade.

“Não era o crime que mais nos interessava, era a defesa do Evandro Lins e Silva, da legítima defesa da honra. Isso nos intrigou e deu vontade de contar melhor a história dessa mulher, que sempre foi apontada de forma sensacionalista e machista na época. Sentimos essa responsabilidade”, situa Flora Thomson-DeVeaux, pesquisadora e coordenadora de produção do Praia dos Ossos e diretora de pesquisa da Rádio Novelo. No episódio 2, a apresentadora Branca Vianna descortina o advogado de defesa contratado pela família Street: “O Evandro fez fama como criminalista e defendeu mais de mil presos políticos durante o Estado Novo. Foi nomeado ministro do Supremo pelo presidente João Goulart, e foi cassado pelo regime militar em 1969. Depois disso, ele ficou um tempo sumido, o que só aumentou a expectativa pela volta da ‘lenda’ aos tribunais.”

Praia dos Ossos foi idealizado ainda no final de 2018, por Branca, que também é a presidente da Rádio Novelo. Norte-americana de nascença, Flora não conhecia a história. “Gostei da perspectiva do longo prazo, de ter tempo para a apuração cuidadosa e para contar a história no formato de uma grande reportagem”, comentou à Continente em uma conversa por telefone em junho. Se não “tudo”, porque “tudo” é, afinal, uma quimera, ela leu “quase tudo” que existe nas hemerotecas e nos arquivos dos jornais mineiros, paulistanos e cariocas a respeito de Ângela, do crime e dos julgamentos. Em cada episódio, percebe-se a atenção para com os fatos e, em especial, o zelo com a representação da vítima.

No capítulo de estreia, o podcast introduz a figura de Gabrielle Dyer, uma alemã que estava em Búzios e que, segundo o noticiário de janeiro de 1977, nos primeiros dias do pós-crime, era apontada como um elemento do crime, pois Ângela teria flertado com ela na manhã de 30 de dezembro de 1976, na praia, na frente de Doca. “Isso pegou muito para mim quando estava fazendo a pesquisa, o quão pesada era essa acusação. Pois, se eles conseguissem provar que ela tinha dado em cima da Gabrielle, era um crime de execução sumária. Sendo uma mulher casada com outra mulher, achei muito triste. Ao mesmo tempo, era fascinante essa busca por um pivô imaginário – a Gabrielle, depois Pierre, o francês, que nunca existiu. Eram as tentativas de justificar, de alguma forma, o que tinha acontecido”, comenta Flora. A própria Gabrielle, assediada de todas as formas pela imprensa, teve um fim trágico: caiu no mar durante uma trilha. Seu corpo nunca foi encontrado.

De volta à tese da “legítima defesa da honra”, eis alguns trechos da argumentação proferida por Evandro Lins e Silva no tribunal do júri, em outubro de 1979. Sobre Doca: “Hoje é um farrapo, um homem que se arrasta lambendo os restos da vida, aos frangalhos. Humilhado às últimas consequências, mas um candidato a morrer; se sobreviver viverá sempre povoado de fantasmas. (…) Ele é neto de um dos homens que tiveram a maior influência no Brasil, na legislação social do Brasil, porque inclusive participou da legislação trabalhista, no seu início”.

Sobre Ângela: “Ângela era uma mulher sedutora, belíssima. A Pantera de Minas. Mas, desgraçadamente, ela seguiu um caminho diferente daquele que nós, homens menos avançados nesse tema, procuramos seguir. É uma realidade. Ela não podia admitir certos princípios. Ela queria a vida livre, libertina, depravada. Desgraçadamente, fez uma opção, fez uma escolha naquele instante, deixou os filhos, veio para o Rio de Janeiro. Eu pergunto às senhoras do conselho, não sei se são mães, mas abandonariam três crianças, uma pequenina de quatro anos? (…) Ela própria construiu as condições para não ter a simpatia da Justiça, quando arrancou sua filha de Belo Horizonte para vir para o Rio de Janeiro”.

Parecia que era a vítima, e não o réu confesso, que estava em julgamento. “Essa era a estratégia do Evandro. O comportamento da Ângela era uma ameaça pra honra do Doca. Lembra: ela teria dado em cima de uma mulher na frente de todo mundo, depois terminado com ele e ainda chamado ele de corno. A reputação dela de ‘pantera’ era mais do que conhecida. E, por isso, a culpa não era dele de ter feito o que fez”, narra Branca Vianna. “Reportagens da época diziam que o Evandro Lins e Silva tinha inventado a tese da ‘legítima defesa da honra’, como se fosse uma grande novidade jurídica, mas é possível rastrear a genealogia dessa ideia já nas Ordenações Filipinas, que justificavam a pena de morte para a mulher que sai da linha em termos de fidelidade conjugal. Daí a importância da Gabrielle e da vida de Ângela, ou melhor, do ataque à sua reputação”, ratifica Flora.

Doca foi condenado por “excesso culposo de legítima defesa”, em uma decisão que até hoje é citada, tanto para sublinhar a força retórica do seu advogado como o malabarismo jurídico para lhe enquadrar em uma tipificação que não a de homicídio. Em 1981, contudo, voltou a ser julgado: o veredicto havia sido anulado por um tribunal superior. Saiu condenado a 15 anos de reclusão por homicídio qualificado. Em uma passagem emblemática do episódio 6, ele discorre: “Ângela dormiu, quando ela acordou, a gente teve discussão, peguei o carro pra ir embora, aí voltei pra falar que isso, aí… (…) Ela atirou minha bolsa na minha cara, a bolsa abriu, o revólver caiu… Eu já levantei atirando, nem sei por quê, nem qual era a… (…) Eu nunca tinha dado um tiro em ninguém, né. (…). Eu dei cinco tiros”.

Perto do fim da conversa com Branca, incitado a falar sobre Ângela, ele responde: “Ângela é mito. É o que eu digo, tem que respeitar. Ela é uma mulher linda, corajosa, fazia o que queria… Quem não gostasse que se danasse, né. É… mulher decidida, nunca vou deixar de ter admiração por ela”. Quem ama mata, mas não perde a admiração? No episódio seguinte, uma espécie de contraponto vem com trechos de uma carta escrita por Maria Diniz, mãe dela: “Jamais poderei dizer que estou feliz, pois a perda de um filho não permite que se desfrute mais dessa palavra maravilhosa. É um sentimento inexplicável, um vazio eterno, uma saudade que aumenta a cada dia. As calúnias e injúrias que o indivíduo que dizia amar Ângela jamais se apagarão de minha memória. Minha filha era uma mulher desquitada, portanto, livre”.

Ao todo, Praia dos Ossos teve mais de dois milhões de downloads.


Reparo. Foto: Lívia Aquino

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Quarenta anos depois, em março de 2021, “por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero”, como noticiou o site do STF. O ministro Gilmar Mendes destacou que a tese era alicerçada “por ranços machistas e patriarcais, que fomentam um ciclo de violência de gênero na sociedade” ao ser utilizada “pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil”, no frasear do STF.

A tipificação criminal do feminicídio no Brasil se deu em 2015. “O feminicídio é um homicídio qualificado. Quando uma das razões para esse crime contra a vida são as condições do sexo feminino da vítima, esse crime passa a ser hediondo. Essa qualificadora foi introduzida no Código Penal pela lei 13.104. O homicídio existiu desde sempre no nosso ordenamento jurídico, mas a partir de uma campanha do movimento feminista, em um processo que vem do surgimento da Lei 11.340, a Lei Maria da Penha, em 2006, veio o contexto de uma lei criminal mais severa quando o crime é contra a mulher. A pena de um homicídio varia de 6 a 20 anos de reclusão. Já a do feminicídio, de 12 a 30 anos”, explica Simone Nacif, que há quatro anos ocupa a magistratura na I Vara Criminal de Nova Friburgo do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Ela ensina os trâmites legais da sua comarca, que tem competência para julgar os feminicídios: “Nos ritos processuais, a primeira fase é a de admissibilidade e serve para que o Ministério Público apresente as provas. É quando ocorre a primeira audiência. Se existirem indícios de autoria e materialidade suficientes para levar ao julgamento, vamos para a segunda fase, que é o tribunal do júri. O júri é uma grande audiência, em que os jurados vão determinar se o réu cometeu ou não um crime doloso contra a vida”.

“Dia desses eu tive uma audiência, em primeira fase, na qual o réu era um marido que chegou em casa bêbado, pegou uma porta e meteu na cabeça da mulher, que sangrou pelo nariz. É violência o tempo inteiro, muitas vezes praticada da forma mais absurda que você possa imaginar. Aparece muito estrangulamento com as próprias mãos, faca, espancamento, os modos mais cruéis de violência. Tiro é o que menos aparece, pois não é cruel o suficiente. O que tenho observado é que, muitas vezes, o homem não tem nem arma, mas quer destruir por completo aquela mulher que está na sua frente. É puro ódio. E sabe o que tem aparecido muito? Mulheres incendiadas. Sim, as bruxas estão sendo queimadas. É medieval”, percebe a juíza, que integra a Associação de Juízes para a Democracia – AJD.

As magistradas Patrícia Maeda e Roselene Taveira, também da AJD, corredigiram um dos artigos do livro Sororidade em pauta (Livramento, 2019). “A objetificação do corpo feminino mata mulheres todos os dias. Ela se utiliza de estereótipos construídos socialmente para colocar a mulher como algo não humano, mas como coisa que é utilizada por homens”, ressaltam. Esta descrição se aplicaria a qualquer episódio do seriado The handmaid’s tale, adaptação de O conto da aia, distopia escrita por Margaret Atwood em 1985 sobre uma república machista e misógina que escraviza suas mulheres. “O homem não se enxerga igual à mulher. Ele precisa de alguma forma reproduzir em seu meio a opressão do sistema em que vive. Necessita de algo que se envolve em uma aparência de sua propriedade em um sistema em que as pessoas são proprietárias das coisas e nelas se transformam para o exercício do poder de dominação umas sobre as outras”, apontam as autoras, nesta compilação de textos escritos para a coluna homônima no site Justificando (hoje alocada na Carta Capital online).

Simone, uma das autoras de Sororidade em pauta, acredita que a violência de gênero está no DNA do Brasil. “Pela subalternização da mulher no sistema capitalista, pelas relações de opressão que existem na nossa sociedade, que se reproduzem dentro do ambiente familiar, pelo patriarcado arraigado, pela violência que se aproxima de problemas sociais, como a fome, a miséria, o alcoolismo, a drogadição, que são fatores que também influenciam as agressões domésticas. Não estou justificando nada, apenas constatando, da mesma forma que acredito que a violência contra as mulheres também está ligada aos direitos que nos são negados. O direito ao aborto legal e seguro, que existe desde os anos 1940, está ameaçado, por exemplo. Com a ascensão de Jair Bolsonaro ao poder, todos nós tínhamos a impressão de que isso aconteceria: o aumento da violência contra as mulheres, contra o público LGBTQIA+, contra os indígenas e movimentos negros. É o patriarcado se aprofundando”, condensa.

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Na edição dominical de 6 de junho, a Folha de S.Paulo divulgou uma pesquisa sobre os feminicídios registrados no país em 2020: 1.338 mulheres mortas “por sua condição de gênero, assassinatos praticados em sua maioria por companheiros, ex-companheiros ou pretensos companheiros”. “Os dados consolidados do ano passado, que tiveram 10 de seus 12 meses sob o efeito da pandemia da Covid-19, foram colhidos pela Folha nas secretarias de Segurança Pública dos 26 estados e do Distrito Federal. Em relação a 2019, houve uma alta de 2%, mas a violência contra as mulheres cresceu em níveis mais alarmantes no Centro-Oeste (14%) e no Norte (37%). Nordeste (+3) e Sudeste (-3) apresentaram pequenas variações. No Sul, houve queda de 14%”, detalhou o repórter Ranier Bragon.

A investigação, feita pelo Instituto Datafolha em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP, era a terceira rodada da pesquisa Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, feita anteriormente em 2017 e 2018. “Pegamos os dados referentes ao ano da pandemia, de maio de 2020 a maio de 2021, e observamos que a violência de gênero não vem diminuindo no Brasil, muito pelo contrário: só vemos um aumento. A pesquisa traz que essa violência acontece especialmente dentro de casa, o local onde as mulheres estão mais vulneráveis, geralmente por um companheiro, ou ex-companheiro, alguém com quem ela tem um vínculo afetivo, de confiança, então isso para nós é um desafio enorme. Como prevenir e enfrentar essa violência dentro de casa? Mas, ao mesmo tempo, a pesquisa mostra que, apesar da pandemia e das restrições de circulação, as mulheres continuam sofrendo assédios nos espaços públicos, no transporte público, no trabalho. Não há um só lugar seguro para as mulheres. Elas estão vulneráveis em todos os espaços”, lamenta Juliana Martins, coordenadora institucional do FBSP, que existe desde 2006 e congrega policiais, pesquisadores, acadêmicos e membros da sociedade civil.

Em A potência feminista ou o desejo de transformar tudo (Elefante, 2020), a cientista social Verónica Gago, professora da Universidade de Buenos Aires, pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas – Conicet e integrante do Coletivo #NiUnaMenos, articulador fundamental na luta cotidiana contra o feminicídio, discorre sobre o simbolismo dos crimes que saem da esfera privada: “Na América Latina, a realidade do feminicídio exige voltar à pergunta sobre seu significado: que mensagem é transmitida por esses crimes que, agora, parecem não mais se restringir ao âmbito doméstico, podendo acontecer no meio de um bar, em um jardim de infância ou na própria rua? O feminicídio desencadeia essa ‘pedagogia da crueldade’, indissociável da intensificação de uma ‘violência midiática’, que opera espalhando as agressões contra as mulheres ao mesmo tempo que difunde a mensagem do assassino e confirma um código de cumplicidade relativo a um modo de exercício da masculinidade. A isso se refere Rita Segato, quando encara o feminicídio como portador de uma ‘violência expressiva’, já não instrumental”.

Às conclusões de Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, somam-se os dados do Anuário brasileiro de segurança pública 2020, outra publicação do FBSP. São aterrorizantes: um estupro a cada 8 minutos, 66.123 vítimas de estupro e estupro de vulnerável, das quais 85,7% eram do sexo feminino e 57,9% tinham no máximo 13 anos. Foram 1.326 vítimas de feminicídio em 2019, com um crescimento de 7,1% em relação ao ano anterior: 66,6% eram negras, 56,2% tinham entre 20 e 39 anos e 89,9% foram mortas pelo companheiro ou ex-companheiro. A prevalência de mulheres negras entre as vítimas se denota nos dois compêndios de dados. “Em Visível e invisível, percebemos que as mulheres mais jovens, de 16 a 24 anos, pobres e negras, estão ainda mais vulneráveis nesse contexto de pandemia”, aponta Juliana.

Ela enxerga um padrão na violência de gênero praticada no país: “Quando a mulher rompe com os papéis sociais – a da esposa submetida ao marido, que fica em casa, que cuida dos filhos e do lar, que não trabalha fora –, é o momento em que mais sofre violência. E esse tipo de violência não conseguiremos combater apenas com políticas públicas de enfrentamento, mas, sim, com uma mudança de cultura sobre a percepção dos papéis de gênero. Infelizmente, hoje, no Brasil, o debate sobre gênero está interditado, mas é preciso desnaturalizar os preconceitos e os estereótipos que, muitas vezes, ameaçam a mulher apenas pela ruptura com os papéis que são esperados dela”.

Assassinada a tiros em março de 2018, a vereadora carioca Marielle Franco era uma das mulheres que colocavam as convenções em xeque. Se Ângela Diniz é a vítima de feminicídio que marca o Brasil na segunda metade do século XX, Marielle é a ausência que escancara a profundidade do abismo a nos mirar no século XXI.

“Ela rompeu com várias barreiras, como a participação das mulheres na política, onde normalmente são vítimas de silenciamento e violências de gênero no cotidiano. Marielle se colocou em um lugar de enfrentamento que, de certa forma, era permitido somente aos homens, através da sua atuação política. E era uma mulher negra, vinda do Complexo da Maré, quebrando padrões e estereótipos, casada com uma outra mulher. O caso da Marielle, assim como o que aconteceu nessa semana, torna evidente para mim que as mulheres não estão seguras, nem dentro de casa, nem no espaço físico da rua”, lamenta Juliana Martins, aludindo, na entrevista à Continente, à morte de Kathlen Romeu, grávida de 24 semanas, baleada durante operação policial também no Rio.

Impossível pensar no feminicídio, como de resto tudo, no Brasil sem o recorte de raça. Analba Brazão considera de extrema relevância a atuação do movimento feminista no caso Ângela Diniz, mas lança um questionamento pertinente: “Se fosse uma mulher negra da periferia, morta nas mesmas condições e naquela mesma época, teria essa repercussão? A sociedade se mobilizaria da mesma forma se aquele caso tivesse acontecido em Natal, em João Pessoa, no Piauí ou em Manaus? Não estou desqualificando, em hipótese alguma, um momento que acho muito importante na história do movimento feminista no Brasil, só estou fazendo uma reflexão”. E se Marielle fosse branca, seus assassinos já teriam sido julgados? Ou já saberíamos quem deu a ordem para sua execução?

A violência contra as mulheres é um denominador comum para quem nasce no Brasil. Embora a generalização seja sempre delicada e, por vezes, exagerada, é difícil pensar o nosso país a partir de uma perspectiva de alguém do sexo feminino que nunca tenha passado por situações de assédio, abuso e/ou violência sexual. Há as histórias enterradas sob a égide da vergonha – a cunhada assassinada pelo marido, da qual todos lembram, mas ninguém fala, a sobrinha assediada pelo tio, a filha lésbica que se suicida por causa da opressão paterna – e há, por outro lado, a avalanche de relatos desencadeada por campanhas como #MeuPrimeiroAssédio, em 2015, ou o movimento #MeToo, em 2017. Se “atribuir linguagem a uma coisa para a qual você não tem linguagem não é uma tarefa fácil”, como implica Carmen Maria Machado em Na casa dos sonhos (Companhia das Letras, 2021), estamos a navegar, entre luto e luta, na complexidade da enunciação. Porque falar é preciso, disso sabemos.

Em sua tese Como morre uma mulher? Configurações da violência letal contra mulheres em Pernambuco, apresentada no programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco, em 2014, a socióloga Ana Paula Portella explica que “o termo femicide foi utilizado pela primeira vez por Diane Russel, em 1976, para sugerir que o fato mesmo de ser mulher é um fator determinante para o homicídio de mulheres”. Uma palavra de apenas 45 anos de idade, portanto.

“No campo acadêmico, é a própria Russel, junto com Jane Caputi, quem primeiro utiliza o conceito, no livro Femicide: The politics of woman killing, de 1992, definindo-o como o assassinato misógino de mulheres”, completa Ana Paula, que foi coordenadora, entre 2005 e 2009, do Observatório da Violência contra as Mulheres em Pernambuco, desenvolvido no SOS Corpo. “Essa interpretação representa uma nova compreensão política do problema da violência contra as mulheres e, por isso, requer a construção de um novo conceito, capaz de refletir a nova abordagem. Esse conceito é femicídio”. Dicionarizada pelo Houaiss em 2012, e tipificada como crime em 2015, a palavra foi popularizada como feminicídio.

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É o caso, então, de explorar novos conceitos, novas abordagens, novos signos… “A linguagem também é um lugar de luta”, escreve bell hooks em Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra (Elefante, 2019). A arte é um caminho profícuo para expandir a linguagem, burilando-a em vários suportes, erigindo uma teia para reverberar – rememorando todas as vítimas que já não estão mais aqui – e para não mais calar.

Gritemos: este é o convite que a obra da artista visual Lívia Aquino nos faz. Pensada para a exposição Palavras somam, ocorrida no Museu da Arte Brasileira, em São Paulo, em 2019, a obra usa “a expressão em 1ª pessoa do plural do imperativo afirmativo” e “sugere uma ação coletiva diante das estatísticas presentes no mapa da violência de 2018, produzido pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher”.

No ano anterior, Lívia havia concebido três trabalhos a partir da leitura do relatório da Comissão Nacional da Verdade, instaurada em 2011 pela presidenta Dilma Rousseff para apurar os crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar de 1964 a 1985. “Eu já tinha começado uma pesquisa em que me propus a ler toda a parte dos crimes sexuais do relatório quando fui chamada para uma exposição que aconteceria em Berlim. O convite era para estabelecer um diálogo com um escritor de língua portuguesa e eu quis apostar no diálogo com uma autora contemporânea jovem, mulher como eu, e que estivesse olhando para o mundo na perspectiva do feminismo e com o desejo de revisão sobre a presença das mulheres no mundo. Então, chamei a Adelaide Ivánova, pernambucana que mora na Alemanha, pois eu tinha lido O martelo e pensei que olharia para esse relatório com a atualidade e o diálogo com a obra dela”, recorda.

Para Água da palavra: quando mais dentro aflora, montada na HilbertRaum Gallery, em Berlim, e depois no Instituto Adelina (SP), a artista idealizou Vermelho como palavra ainda é uma cor fantasma, um neon com a frase “Menina, nós queremos saber a verdade, pelo amor de Deus, o que esse homem fez com você?”.

“É a pergunta cretina de um general para Lázara, uma mulher, muito provavelmente uma noviça, que apenas passa na rua no momento da sua prisão. A história dela é narrada por outras pessoas no relatório que a Comissão da Verdade divulgou em 2014. Ela foi presa, depois solta, mas quando o militar encarregado de soltá-la volta às instalações, hesita ao responder se havia ou não ‘comido a menina’. Os militares então resolvem voltar lá e prender Lázara de novo, para que ela ouça essa pergunta e se torne uma jovem vítima de um estupro coletivo. É uma pergunta ambígua, que pode ser tomada como uma preocupação sincera, como se eu perguntasse a você, por exemplo, mas que naquele contexto diz muito de como o Brasil não está livre de algumas ditaduras – as da política e as que incidem sobre o corpo feminino”, diz.

Ainda em Berlim, na ação Entre duas linhas há sangue e lágrima, ela e Adelaide caminharam 10 km da galeria até a estação Charlottenburg, onde Maria Auxiliadora Barcellos, a Dorinha, tirou sua própria vida em 1976, após ser impedida de retornar ao país onde havia sido presa e torturada pela repressão militar. Portanto, a gênese de Gritemos remete à leitura do relatório, ao desejo de alargar o trabalho com documentos e desdobrá-lo em potência artística.

“Queria construir uma obra que tivesse uma percepção corporal distinta entre o longe e o perto. Que você visse algo ao chegar mas, ao se aproximar, observasse outras camadas. Tinha acontecido o assassinato da Marielle Franco e havia uma movimentação em torno de ter sido um feminicídio. Fiz os trabalhos em Berlim e entrei em contato com o mapa da violência produzido pela Câmera dos Deputados com os dados de 2018, mesmo ano em que a Marielle morreu. Fiquei atenta a esse diálogo e pensei em Gritemos. Um grupo de luta, de indagação: o que é que a gente faz com tanta informação sobre a violência praticada contra as mulheres?”.

Carimbada na parede, Gritemos é, na verdade, composta pelo amontoado de várias outras frases assinaladas com a prosaica tinta da almofada de carimbo – “Quem matou Marielle?” é uma delas. A obra amplifica estatísticas horrendas.  “A cada 17 minutos, uma mulher é agredida, a cada três horas uma mulher relata um caso de cárcere privado, a cada semana 33 mulheres são assassinadas por parceiros e, naquele ano de 2018, houve 3.349 casos de estupro. Como lidar com isso? As informações por si só já eram um susto. O que restava era gritar”, resume a artista.

Um grito, em outro timbre, mas decerto impactante é o que também se depreende da leitura de Garotas mortas, de Selva Almada. Uma inquirição jornalística, um ensaio pessoal, um livro de memórias, tanto da própria Selva, que se recorda das mortes de Andrea Danne, Maria Luísa Quevedo e Sarita Mundin na Argentina dos anos 1980, como de tantas outras vítimas.

“Gosto da não ficção, sou leitora do gênero. Conhecia o caso de Andrea, porque havia ocorrido perto da minha cidade. O que tinha acontecido? Por que a mataram? Os casos de feminicídio começaram a se suceder nas notícias todos os dias e cada vez que aparecia um novo, pensava nela. Pois aquilo que havia acontecido a Andrea tinha sido, também, um feminicídio, ainda que na época não tivéssemos uma palavra específica para nomeá-lo. Quando comecei a dar forma à ideia de escrever, pensei que nunca poderia ser um romance, pois queria que os leitores soubessem, desde a primeira página, que aquilo que estavam lendo havia acontecido, de fato, àquelas mulheres e que seus assassinos tinham decidido apagá-las do mapa propositalmente e seguiram livres com suas vidas, nunca pagando por essas mortes”, comentou Selva, em entrevista por e-mail à Continente.

A escritora reflete sobre a necessidade de criar uma memória coletiva: “Há pouco saiu o livro El invencible verano de Liliana, da mexicana Cristina Rivera Garza. Ela conta o feminicídio da sua irmã, em 1990, e fala justamente dessa memória coletiva, fazer um pacto coletivo para pôr em palavras essas mortes, que às vezes nem sabemos como nomear, e a falta de justiça – o caso da irmã dela permanece impune. Creio que um livro pode ajudar a pensar sobre certos temas que são tabus na nossa sociedade, onde a misoginia é cultural e onde é difícil desmontar o aparato machista”.

“Quase todos os âmbitos das nossas vidas estão atravessados pelo machismo, pelo patriarcado”, continua Selva. “Os meninos são criados com a ideia de que as mulheres são objetos de sua propriedade, que podem nos matar se não fizermos o que eles esperam – e sempre se buscará, na vida das vítimas, argumentos ou desculpas para que tenha morrido. Quando publiquei o livro, em 2014, nem sequer existia o movimento #NiUnaMenos. Não sabia o que aconteceria – se alguém se interessaria, o que as feministas pensariam… E hoje acredito que Garotas mortas contribuiu e segue trazendo muito para o tema. É um livro que as professoras dividem com seus alunos e que lhes abre a porta para discutir o tema com os adolescentes”.

Mulheres empilhadas, de Patrícia Melo, bem que poderia ser adotado também nas escolas brasileiras. Porque, apesar de ficcional, é uma história amalgamada na brutal realidade. Provocada pela editora Leya a inventar um romance com protagonismo feminino, a escritora tomou um susto na hora. “Pensei que minha literatura, que sempre fez uma cartografia da violência no Brasil, até por acreditar que a violência é uma característica estrutural da nossa sociedade, de uma certa forma tinha uma dicção masculina. Aquilo era um fato. Então aceitei o convite e comecei a pensar que a violência não tem nacionalidade, nem classe social, nem raça, mas tem gênero e é masculino”, contou, em uma conversa pelo Google Meet, em junho.

Conforme a autora de O matador (Companhia das Letras, 1995) e Fogo-fátuo (Rocco, 2014) foi avançando na pesquisa, vislumbrou que o resultado seria mais encorpado: “Queria trazer a dimensão da realidade, então fui colhendo os crimes que me chamavam a atenção na leitura dos jornais brasileiros, que me davam essa consciência do que acontecia. São os textos que abrem cada capítulo, quase como uma espécie de poesia, crimes colhidos da realidade que viram exemplos da narrativa que se alinhava a partir da jovem advogada, que foge de uma situação de violência e vai parar no Acre. São como ilustrações dos casos que ela vê no tribunal”.

“Ao mesmo tempo”, pontua a escritora, “queria trazer o mito fundador do estado do Amazonas, uma tribo de mulheres guerreiras que, teoricamente, foram responsáveis pelo batismo da região. Andavam nuas, carregando no corpo as flechas e o arco, lutavam pelo poderio e contra a opressão masculina. Consta que o rei Carlos, da Espanha, quando ficou sabendo dessa narrativa, decidiu dar o nome desse lugar de Amazonas. No livro, as guerreiras entram através do ritual do ayahuasca, numa dimensão onírica. Uso o mito da criação para fazer justiça – esses homens que escapam do tribunal pela porta da frente, tendo cometido crimes horrorosos, vão ser capturados pelas guerreiras, num acerto de contas”.

Questionada sobre se é possível tecer um comparativo entre a Suíça, onde mora, e o país onde nasceu, Patrícia vaticina: “A Suíça não tem nem 9 milhões de habitantes, que é um terço da população de São Paulo. A violência de gênero existe, sim, mas as estatísticas são outras”. O que nos distingue é um horizonte de soturnas variáveis.

“O que faz do Brasil o quinto país no ranking dos feminicídios é a assimetria entre os gêneros que existe na nossa cultura patrimonialista e de estrutura patriarcal. De um lado, temos os muitos avanços obtidos no plano jurídico, como a Lei Maria da Penha, a implementação das delegacias da mulher e a legislação tipificada do feminicídio; mas, do outro, temos a questão da emancipação da mulher. Quanto mais ela se emancipa, mas é vítima de violência. Um presidente de discurso machista e misógino, que acha que a mulher não é merecedora de igualdade, não ajuda em nada. É preciso continuar as conquistas, e fazer com que a lei funcione, garantindo que os feminicídios sejam investigados dentro de uma perspectiva de gênero dentro da polícia, por exemplo. Ainda temos um longo caminho a andar”, opina.


Sussuro. Foto: Lívia Aquino

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Brasil, junho de 2021: a Secretaria da Mulher da Prefeitura do Recife informa à Continente que o Centro de Referência Clarice Lispector, que desde 2002 acolhe mulheres vítimas de violência, vai passar a funcionar por 24h, com estrutura para que as mulheres possam pernoitar. “Temos um WhatsApp que funciona o tempo inteiro, que é o 99488.6138, e já tivemos casos em que a mulher nos contactou e a polícia chegou a tempo de salvá-la do agressor. Temos também o Liga Mulher – 0800.2810107 – e agora teremos o Clarice aberto dia e noite, para garantir que qualquer mulher que precise tenha como recorrer. Cada passo dado é uma vida que podemos salvar”, sintetiza Glauce Medeiros.

A Secretaria de Defesa Social do Governo de Pernambuco nos envia os dados mais recentes relativos a feminicídio no estado: nos quatro primeiros meses deste ano, foram 38 vítimas, “10 a mais do que no mesmo período de 2020”. Entre janeiro e dezembro do ano passado, 75 mulheres, ao todo, perderam suas vidas em feminicídios; em 2019 e 2018, respectivamente, haviam sido 57 e 74 vítimas. “Em 2017, quando o crime de feminicídio começou a ser notificado em Pernambuco, computaram-se 76 mulheres mortas por essa motivação no Estado. No primeiro ano de registro desse tipo de crime, o governador Paulo Câmara assinou decreto que determinou a retirada do termo ‘crime passional’ dos boletins de ocorrência”, reitera a nota assinada pelo Centro Integrado de Comunicação.

Quando a jornalista e documentarista Mariana Lacerda era criança, na década de 1980, ainda não existia o Centro de Referência Clarice Lispector e, mesmo que existisse, talvez não fizesse diferença para os crimes passionais que lhe tocaram. “Foram duas tragédias e o fato de serem duas mulheres mortas não parecia ser um ponto tão assustador nelas. Uma foi um assassinato muito violento: o pai da minha melhor amiga matou a esposa e depois tirou sua vida. A outra, um suicídio. Porém, na minha cabeça, consigo pensar que aquela que se suicidou simplesmente não aguentou os parâmetros sociais masculinos que lhe eram impostos”, relembra.

Em março, mês em que Mariana completou 45 anos, surgiu o Levante Feminista contra o Feminicídio. Segundo Analba Brazão, do Fórum de Mulheres de Pernambuco, SOS Corpo e da Articulação de Mulheres Brasileiras, a ideia é de insurreição: “É uma campanha pelo fim do feminicídio, em uma grande articulação com todos os movimentos e com as mulheres dos partidos de esquerda contra um governo genocida que gastou apenas 4,4% do orçamento destinado às políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres. Pensamos o Levante para dois anos – em março de 2023, onde é que vamos estar?”. Para agora, o Levante (@levantefeminista) quer “pressionar o Executivo, o Legislativo e o Judiciário para darem um basta à matança e sensibilizar a sociedade para rever a cultura feminicida”, como diz o seu manifesto. #NemPenseEmMeMatar, esse é o mote.

Para as mulheres ouvidas nesta reportagem, dar um basta à matança e rever a cultura feminicida convergem para várias revoluções cotidianas. Para não sermos reduzidas à condição de “mais uma mulher de fulano” ou “nenhuma a menos”… Para que a fala não nos desumanize. “Tem uma passagem da Grada Kilomba em Memórias da plantação em ela que diz: bell hooks usa estes dois conceitos de ‘sujeito’ e ‘objeto’, argumentando que sujeitos são aqueles que ‘têm o direito de definir suas próprias realidades, estabelecer suas próprias identidades, nomear suas histórias’. Como objetos, no entanto, nossa realidade é definida por outros, nossas identidades são criadas por outros, e nossa ‘história designada somente de maneiras que definem (nossa) relação com aqueles que são sujeitos’”, expõe Mariana.

Março também marcou os 17 anos da morte de Mirella Bezerra de Melo Martins. Sua irmã caçula, Manuela, hoje mora em Portugal. Quando a irmã, sete anos mais velha, foi assassinada pelo ex-noivo, Manu e ela estavam começando a firmar uma relação de maior proximidade. “Mirella era aquela mulher muito alta, bonita e cheia de si que eu admirava muito. Uma mulher totalmente à frente do tempo. A gente dividiu o quarto a vida toda, até ela sair do Recife, mas como havia essa diferença de idade, tinha muita briga também na infância e na adolescência. Quando ela foi morta, a marca que ficou para mim foi que me tiraram a possibilidade de ter uma irmã. De poder dividir a vida com ela, sabe? É curioso porque, inevitavelmente, às vezes eu estou falando e abro a boca de um jeito e esse jeito me lembra Mirella”, testemunha.

Em 2018, Manu Bezerra de Melo, jornalista e pesquisadora em Literatura, postou um longo desabafo em seu perfil numa rede social, em que falava da irmã e de como, durante muito tempo, as pessoas agiam como se ela tivesse morrido em um acidente. “Lembro que fiquei chocada quando uma prima que era muito próxima de Mirella, da mesma geração dela, tipo que cresceram juntas e tal, declarou voto a Jair Bolsonaro. Aquilo me deixou triste e revoltada. Como é que pessoas não enxergam que, quando legitimam esse discurso, estão contribuindo para matar ainda mais mulheres? É como se as pessoas tratassem o feminicídio como uma fatalidade. E não é. Mirella não caiu e bateu a cabeça na calçada. Ela foi assassinada pelo cara que não aceitou o fim do relacionamento”, situa.

A morte dela não entrou para a crônica policial pernambucana, como os assassinatos de Maria Eduarda Dourado e Tarsila Gusmão, do Caso Serrambi, em 2003. Ou para os anais da televisão brasileira, como a atriz Daniella Perez, lembrada, a cada 11 de agosto, pela mãe, a novelista Glória Perez, no dia do aniversário com “a conta de um tempo que ela não viveu”. “Não existia a internet como é hoje e ela não saiu na mídia”, observa Manu, mãe de um filho que nunca poderá ouvir a risada da tia.

Que as histórias de Mirella, Daniella, Ângela, Isabel, Socorro, Vytória, Viviane, Ingrid, Patrícia, Emelly, Tatiane, Luciene, Marley, Eliane, Marielle, Kathlen, Lázara, Dorinha, Andrea, Sarita, Maria Luísa e tantas outras, milhares de outras, transcendam os autos, ultrapassem as estatísticas e transformem-se em outras reportagens, manifestos, podcasts, filmes e livros. E que, como sementes, fecundem o solo para a luta feminista por uma equidade de gênero na prática, e não na utopia, e por um mundo onde ser mulher não constitua uma ameaça aos nossos próprios corpos, mas que, sim, expresse a bênção de força e esperança que de fato é. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente.

LÍVIA AQUINO, pesquisadora do campo da cultura e das artes visuais, professora e artista. Sua prática opera conexões entre a imagem, a escrita e a leitura, explorando seus significados e os sentidos que produzem no espaço e com o outro, como participador.

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