A revolução da colher e “as mulheres”

Uma das dívidas históricas da pseudodemocracia

Por Daniela Andrade Zubia, em Cuerpos Políticos, na Revista Bravas|Tradução: Larissa Brainer.

Descrição da autora

Estudante de Doutorado em Estudos de Gênero, Universidade Nacional de Córdoba. Mestra em Igualdade de Gênero: Agentes e Políticas, Universidade Complutense de Madrid. Diplomada en Introdução ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, Universidade do Chile. Administradora Pública, Universidade de Santiago do Chile. Coordenadora da comunidade virtual com perspectiva de gênero “La Ciudad de las Diosas”

Trinta anos se passaram desde o retorno da democracia no Chile. Não é menos tempo para que os vestígios de uma das ditaduras mais violentas da humanidade ficassem para um nunca mais e se construísse uma institucionalidade pública justa e equitativa, e – sobretudo – se restaurassem os direitos fundamentais, que foram privatizados: saúde, educação, previdência social, água, moradia, etcétera1. E, claro, para que se construísse uma real inclusão das mulheres pela qual tanto se lutou sob o lema “Democracia no país, na casa e na cama”, promovida por Julieta Kirkwood e Margarita Pisano nos anos 19802.

Porém, o caminho foi outro e alegria prometida com o triunfo do NÃO a Pinochet no plebiscito de 1989, nunca chegou. Em troca, se forjaram os pilares de um país moderno que se mostrava ao mundo como o milagre econômico3, às custas do endividamento da classe média emergente, a qual se prometia uma inclusão sujeita à privatização de direitos (que deveriam estar garantidos). Os serviços básicos foram deixados à mercê dos governos da época. Exemplo disso é o clássico transatiago4. Justamente, o descontentamento social irrompe com o aumento do custo do metrô no último 18 de outubro, por parte do corpo estudantil, que começou a se mobilizar sem medo de represálias, em um tudo ou nada, porque “não são 30 pesos, são 30 anos!” como foi anunciado nas redes sociais. A raiva das demandas sociais contidas por anos e um histórico de protestos feministas5 revelam as contínuas desigualdades no país.

No entanto, é preciso reconhecer que nos acomodamos ao sistema. Se bem privatizaram os direitos essenciais, ofereceu-se uma série de instrumentos mercantis de transação de aquisição material – como os cartões de crédito -, e com isso, a entrega ao sistema foi acessível e um individualismo sem classe da avareza cumulativa foi potencializado. Isso acarretou o desenvolvimento de uma economia fictícia, à beira do colapso, à base de endividamento.

Em um cenário em que não se deve esquecer os mandamentos patriarcais sobre a divisão sexual do trabalho nos âmbitos privados e públicos, porque são fundamentais para produzir esse modelo: a sobrecarga laboral que as mulheres têm na distribuição das tarefas da casa (que não são reconhecidas ou remuneradas), os conhecidos tetos de cristal, as diferenças salariais, os impostos ao útero na idade reprodutiva (as mulheres pagam mais que os homens) e a corresponsabilidade nos lares não tiveram grandes mudanças, como demonstra o último relatório apresentado pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas do Chile: Uma década de Mudanças para uma Igualdade de Gênero no Chile (2009 – 2018) 6.

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Ainda assim, a amistocracia nas diferentes administrações e a garantia de cargos públicos estiveram presentes desde a primeira gestão pós-ditadura, iniciada no governo do presidente Patricio Aylwin, que teve um gabinete masculino, com exceção da Secretaria de Mulher e no então chamado Serviço Nacional da Mulher (SERNAM). E como nada é por acaso, o Serviço orientou os direitos das mulheres à família como pilar institucional7, e sempre a partir de uma cultura de dependência do outro. Assim foi até o atual Ministério da Mulher e da Equidade de Gênero8 instaurado na administração Michelle Bachelet, que no último ano do mandato aprovou – pelo menos – a lei que regulamenta a despenalização da interrupção voluntária da gravidez sob três causas9.

Por outro lado, as consequências das decisões tomadas e de não ter probidade pública fez do Estado uma empresa, onde algumas pessoas aproveitaram para estudar com os cursos negociados pelos diferentes governos e as entidades amigas para ter “pessoas especialistas” em desenvolvimento, para alcançar os respectivos indicadores, sem importar a qualidade dos programas de melhoramento da gestão pública10; somente o ato de fazer por fazer para obter sua respectiva remuneração.

Isto aparelhou os governos transformando-os em agências de empregos com pessoal não especializado, porém que asseguravam o pedaço do bolo da oligarquia do patronato11 na administração de cada mandato, e que hoje nos traz uma direita que governa com agendas sociais de modo empresarial e uma esquerda neoliberal que tenta se recuperar ao recorrer à lembrança de direitos básicos que teve a oportunidade de instalar anteriormente.

E quais são as consequências para as mulheres? Façamos um passeio pelas principais demandas de hoje em dia:

  • Na esteira do aumento das tarifas, os e as estudantes realizaram uma evasão massiva do pagamento do metrô de Santiago. As mulheres ganham 30% a menos que os homens nos mesmos cargos e têm uma taxa de participação laboral 49,1% (INE,2018) 12.
  • De acordo com o relatório O mercado de trabalho no Chile: um olhar de médio prazo da Organização Mundial do Trabalho (OIT; 2018) 13, a participação laboral feminina aumentou de 32,5% em 1990 a 47,4% em 2015. Quer dizer, as diferenças de gênero persistem nas condições de trabalho segundo o tipo de emprego que se realiza, na inclusão da força de trabalho paritária dentro dos cargos de responsabilidade diretiva, e nos salários que têm evidentes diferenças entre homens e mulheres de mesma formação/preparação e a taxa de desocupação feminina que chega a 7,5% (INE; 2019) 14.
  • As pensões por idade das mulheres são mais baixas, principalmente porque temos ciclos em que não contribuímos pela flutuação laboral e o emprego informal.
  • O acesso à saúde pública é precária e negligente. No Chile, não adoecer é um privilégio15: significa não endividar-se por toda uma vida no sistema privado.
  • A educação segue sendo um privilégio. Há uma clara diferença de qualidade entre os colégios particulares e públicos. Aém disso, é um tipo de educação sexista, pela ausência de uma mudança nas bases curriculares da formação docente e da devida capacitação para quem está trabalhando nas escolas.

Não obstante, esta realidade ainda é invisível ao presidente Sebastián Piñera e sua equipe de gestão16, principalmente porque não conseguem abarcar as causas estruturais das diferenças e uma distribuição justa e equitativa dos recursos. Somado a isto, o dano irreparável de instaurar o estado de emergência e toque de recolher por quase uma semana diante de colheres e panelas nas quais se batiam em forma de protesto, marca mais uma vez a história com mortes, torturas, detenções ilegais e violência política sexual contra as pessoas17.

Até que não haja um real processo participativo – como foi expressado na Assembleia Feminista na leitura da Declaração na Biblioteca Nacional no último 25 de outubro, nas escadas, como nos tempos da ditadura -, “rechaçamos a violência, exigimos a desmilitarização e demandamos às autoridades o fim imediato do estado de emergência e da aplicação da Lei de Segurança do Estado, estaremos presente”. Nesse dia, as feministas se deslocaram até o palácio da Meda para cantar “Derecho de Vivir en Paz” de Víctor Jara, e mais tarde, se uniram à marcha maior marcada pela dignidade do povo de Santiago18, porque nós, como mulheres feministas não queremos mais um Chile sem nós.

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1 https://radio.uchile.cl/2013/10/07/40-anos-de-modelo-neoliberal-en-chile/

2 http://www.flacsochile.org/personajes/julieta-kirkwood/

3 https://es.panampost.com/vanessa-araujo/2016/09/29/chile-chicago-boys-milagro-del-que-poco-se-habla/

4 https://ciperchile.cl/2007/11/04/el-recorte-que-mato-al-transantiago/

5 https://www.eldesconcierto.cl/2019/10/22/no-son-30-pesos-son-30-anos-las-protestas-desde-la-historia-feminista/

6 https://www.undp.org/content/dam/chile/docs/genero/undp_cl_genero_Decada-cambios-2018-final.pdf

7 http://repositorio.uchile.cl/bitstream/handle/2250/134632/Memoria%2520PDiaz.pdf%3Bsequence%3D1

8 https://www.minmujeryeg.cl

9 https://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=1108237

10 http://www.dipres.gob.cl/598/w3-propertyvalue-15230.html

11https://ciperchile.cl/2019/10/09/patronazgo-como-los-politicos-fidelizan-a-una-parte-de-la-clase-media-ofreciendole-empleo-publico/

12 https://www.ine.cl/estadisticas/menu-sociales/genero

13https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—americas/—ro-lima/—sro-santiago/documents/publication/wcms_632360.pdf

14 https://www.ine.cl/estadisticas/laborales/ene

15 http://www.saludpublica.uchile.cl/noticias/151734/paremos-y-pensemos-sobre-la-igualdad-m-0803

16 https://prensa.presidencia.cl/comunicado.aspx?id=123766

17https://radio.uchile.cl/2019/10/26/nuevo-balance-del-indh-50-querellas-por-torturas-15-por-violencia-sexual-y-cinco-por-homicidios/

18 https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-50190029

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