“Não é mais possível tratar de qualquer dimensão da vida social sem considerar a perspectiva das mulheres negras”

A 1ª Marcha das Mulheres Negras, realizada em 2015, impulsionou transformações fundamentais para a luta contra o Racismo no Brasil. 10 anos depois, convocada sua 2ª edição para 2025, conversamos com Rivane Arantes, representante do SOS Corpo no Comitê Impulsor da Marcha em Pernambuco, sobre as consequências desse fato político que mexeu com a vida coletiva no país e sobre Reparação e Bem Viver que constituem o tema da Marcha de 2025.

Texto: Fran Ribeiro | Fotos: Arquivo do SOS Corpo

1ª Marcha das Mulheres Negras reuniu cerca de 100 mil mulheres de todo o país. Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil.

No dia 18 de novembro de 2015, cerca de 100 mil mulheres negras das cinco regiões do Brasil se reuniram em Brasília para a 1ª Marcha das Mulheres Negras. Aquele dia foi a culminância de um processo intenso, compartilhado, construído junto com as mais diversas experiências de negritude, ancestralidade e ações política,  expressas na multiplicidade do sujeito político mulheres negras. 

É praticamente unânime a resposta: o antes, o durante e o pós-Marcha, todo o processo em si, desencadeou no fortalecimento profundo da autoorganização das mulheres negras em todo o Brasil, imprimindo novas perspectivas na forma de ler as questões do país, ampliando modos e cosmovisões, tendo no centro dessa leitura, as mulheres negras. Agora, mais uma vez, o movimento convoca uma nova Marcha, que já está sendo construída para sua consolidação em novembro de 2025.

Neste 20 de novembro de 2024, Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, o primeiro que marca a data como feriado em todo o território brasileiro, trazemos aqui uma conversa com Rivane Arantes, educadora e pesquisadora do SOS Corpo, sobre a importância da Marcha das Mulheres Negras para a luta contra o Racismo no Brasil. 

Fran Ribeiro – Na Marcha de 2015, o tema foi contra o racismo, a violência e pelo bem-viver, e desencadeou um processo profundo de organização e fortalecimento do movimento de mulheres negras em todo o país e fora dele.  O que mais você destaca nesse processo?

Rivane Arantes – Várias questões podem ser destacadas, sobretudo no processo anterior à Marcha em si em Brasília. Ele representou uma grande mobilização do conjunto das mulheres negras no Brasil todo, das regiões urbanas aos interiores, do cais ao sertão. Mulheres negras do norte, nordeste, centro oeste, sudeste e sul. Mulheres negras do campo, águas, florestas e cidades, usando diferentes estratégias de mobilização. Realizamos diversas rodas de conversa, seminários, encontros e reuniões para discutir o problema do racismo, sobretudo o racismo patriarcal que atinge em cheio as mulheres negras, a partir do mote da violência e do bem viver. A mobilização chegou em mulheres organizadas em diferentes movimentos e organizações sociais mas, mobilizou também as que ocupavam instâncias de Estado e as que integravam instituições políticas, como partidos. Além disso, meio que “forçou” novamente, um debate no conjunto da sociedade sobre o problema do racismo no Brasil a partir da perspectiva das mulheres negras, ou seja, como o racismo impacta, como foi construído e segue sustentado sobre os corpos e o trabalho dessas mulheres. Além disso, o processo de mobilização se deu de forma multidimensional, foi um processo plural, no sentido de que diferentes expressões da negritude das mulheres negras estiveram marcadas nele, articulando diferentes formas de ação política. 

Em Pernambuco, por exemplo, foram realizadas várias ações com a contribuição de diferentes organizações antirracistas, dentre elas o SOS Corpo, que na ocasião foi uma das apoiadoras do Comitê Impulsor da Marcha no estado. Foram ações de promoção e divulgação da Marcha, com lançamento presencial, ensaio fotográfico, marchas preparatórias em Recife e em outras cidades de Pernambuco, muita produção de material de divulgação com zines, boletins impressos, vídeos etc. Houveram ainda debates com professores/as em espaços de formação e com estudantes em escolas públicas, com cine debates, ações em praças, nas periferias etc. Foram mobilizadas ainda diferentes expressões da arte negra, da literatura, à poesia, música, teatro…

Foi um processo intenso e sistemático de encontros de formação e de articulação tendo como referência o tema da marcha de mulheres negras. A Marcha em si em Brasília, foi muito importante, mas o processo de realização dela foi muito mais rico, porque viabilizou todas essas experiências de produção de conhecimento, encontros e de construção coletiva. 

Acho que dá pra destacar também que o processo todo foi um chamado para a convivência coletiva, para o fortalecimento do estar junto, do aprender coletivamente e do agir juntas. Fundamentalmente agir juntas. Tem algo aí do exercício da solidariedade, tem o esforço de aprender essas perspectivas que, no fim das contas, meio que esquecemos com toda a violência que o conjunto de nós mulheres negras enfrentamos no passado escravocrata e seguimos enfrentando hoje. O exercício de cooperação, o companheirismo e o de nos confrontarmos muitas vezes, porque também havia conflito, mas um esforço de somar mais do que de separar. Um esforço da gente fazer ser maior aquilo que nos unia do que aquilo que nos separava, um esforço que nem todo mundo tá afim de fazer hoje em dia… tudo isso foram realizações e desafios para nós, naquele momento, como todo processo político.

Rivane Arantes, em atividade preparatória para a 1ª Marcha das Mulheres Negras, realizada no centro do Recife, há 10 anos. Foto: Arquivo SOS Corpo

FR – Algumas companheiras do movimento de mulheres negras gostam de dizer que a Marcha foi um pretexto bem-sucedido, porque a auto organização das mulheres é o que pode contribuir para a transformação social, na busca utópica de um mundo sem machismo e sem racismo. Quais foram os ganhos políticos no pós-Marcha?

RA – A Marcha ajudou a constituir movimentos e espaços de auto-organização de mulheres negras em lugares onde antes não havia e, lugares onde existiam, a Marcha colaborou para rearticulá-los e/ou fortalecê-los. A Rede de Mulheres Negras de Pernambuco é um grande resultado constituído pela Marcha. Eu estou falando a partir de Pernambuco, mas eu poderia falar do resto do país, já que a mobilização despertou processos de auto-organização no país inteiro, processos de fortalecimento daquelas instâncias de organização das mulheres negras. A resistência das mulheres negras é muito antiga e o alicerce que a Marcha representou nessa história de luta, possibilitou que, dez anos depois, um novo processo da Marcha das Mulheres Negras fosse instaurado, mais forte, mais amplo, com outros desafios auto-organizativos, com velhas e novas questões que atravessam nossas vidas, tão fundamental para a sociedade como para o Estado, uma vez que o bem-viver se apresenta como outra forma, muito melhor e mais humana, de organização da sociedade.

Acho que muitas de nós que estivemos presentes, construindo o processo da Marcha, vê tudo isso como um pretexto bem-sucedido porque a força do movimento conseguiu pautar o problema do racismo, da violência contra as mulheres negras para o país novamente e, apontou o bem viver como uma alternativa à sociedade, outro paradigma civilizatório. Ademais, todo o processo de mobilização e encontro partiu de uma perspectiva afrocentrada, portanto, fortaleceu e ao mesmo tempo, tomou como referência os elementos da identidade, ancestralidade e resistência tão caro ao povo negro, como estratégias, mecanismos e inspiração para o processo de auto-organização e resistência. Essa é uma questão importante de se destacar nesse momento em que somos acusadas de identitarismo. A identidade, a valorização da identidade negra, da ancestralidade negra e, obviamente, a resistência histórica da população negra e das mulheres negras, é algo fundamental de ser dito, lembrado, de ser fortalecido. E isso foi uma das boas coisas que nós fizemos nesse processo de Marcha das Mulheres Negras. É como se fossem os guias através dos quais a gente se inspirou e que tomamos como referência para essa travessia, para essa nossa caminhada juntas. 

Foi um pretexto para dizer que nós mulheres negras temos também um projeto de sociedade, nós temos um projeto de país. Ele já tá aí dito de diferentes formas, nas várias expressões, nos vários momentos em que estivemos em Marcha nesse país, por nós mesmas e junto com outros diferentes sujeitos. Nós temos um projeto e agora nós queremos falar sobre ele novamente. A Segunda Marcha é um outro momento para lembrar e vocalizar nossas reivindicações, nossas proposições, nossas denúncias contra o mito da democracia racial e a violência racista patriarcal e capitalista que segue recaindo sobre nossos corpos e vidas nas várias dimensões de nosso viver, independente do que quer que façamos ou sejamos. 

FR – Um dos resultados avaliados pelo próprio movimento foi que o processo de construção da Marcha de Mulheres Negras fortaleceu o sujeito político e a ação política das mulheres negras para ocupar os espaços de tomada de poder. Quais outras questões fundamentais foram visibilizadas?

RA – No processo de mobilização de mulheres negras, uma das questões que se colocou e se coloca como importante e como central é o enfrentamento do problema da sub-representação política das mulheres negras na política institucional. O problema do genocídio da Juventude Negra, que tem uma consequência direta para as mulheres negras; o problema das precárias condições de vida do maior grupo populacional deste país, que somos nós, as mulheres negras. Essas são questões fundamentais que ficaram nítidas com os debates sobre o Bem Viver, ao olhar as situações de  violência, por exemplo. Nós podemos dizer que aprofundando a reflexão sobre a vida das mulheres negras nos momentos sistemáticos de encontro, articulação, produção de saber e leitura coletiva sobre a nossa própria realidade, nós pudemos ter mais nitidez sobre a real situação do conjunto de nós mulheres negras nos diferentes territórios onde nossa ação chegou.

Depois da Marcha ficou muito mais difícil para o conjunto dos movimentos sociais ou para qualquer sujeito falar em política pública sem mobilizar as mulheres negras no Brasil. O sujeito político – mulheres negras – foi fortalecido no conjunto da sociedade, mas também na relação com o Estado. O processo da Marcha ampliou a presença e a voz desse sujeito nos espaços de disputa da política, nos espaços de disputa do poder, nos espaços de constituição e de construção dos direitos e, nos debates mais amplos, que dizem respeito à questão das mulheres, no conjunto da sociedade, porque também isso se observou na relação com os diferentes movimentos sociais. Não é mais possível fazer algo ou tratar de alguma questão da vida em comum, sem fazer um debate a partir de uma perspectiva do racismo e das mulheres negras.

FR – Na Marcha de Mulheres Negras convocada para 2025, o tema será “Por Reparação e Bem Viver”. Qual a importância de marcar essas lutas no tema e consequentemente, nas ruas?

RA – Eu acho que Reparação e Bem Viver são dois temas e duas questões que estão articulados, porque nós, povo negro brasileiro, nós carregamos o peso de mais de 380 anos de escravização. Muito tempo de muita desumanização. Além disso, nós temos muito pouco tempo de liberdade, são 136 anos apenas desde a assinatura da Lei Áurea, que é a falsa abolição. Então, de liberdade real, quase nenhum tempo, porque aquelas expressões que caracterizavam a escravização, o colonialismo, elas permanecem de uma forma atualizada ainda hoje como colonialidade.

As trabalhadoras domésticas, que é o grande espelho para nós mulheres negras no campo do trabalho, por exemplo, continuam sendo alvo de processos de desumanização no trabalho, na saúde, na educação, na moradia etc. E, guardadas as devidas proporções, as circunstâncias de suas vidas são expressões do que é real para o conjunto das mulheres negras que estão em outras ocupações.   As mulheres negras são desumanizadas no seu direito a acessar direitos básicos e fundamentais. As mulheres negras vivem até hoje, no pós-Abolição, uma condição que se aproxima em muito, do ponto de vista material e simbólico, do que nossas antepassadas viveram no processo de escravização. E não somente o governo brasileiro tem uma dívida histórica com esta população, mas todos os estados-nação da época, os países que foram responsáveis pelo processo de colonização do Brasil, todos os que saquearam e enriqueceram com este país, explorando a natureza e a mão de obra indígena e africana, têm uma dívida histórica com a população indígena e negra e, em particular, com as mulheres. Dívida que não foi resolvida até hoje. E as poucas políticas públicas, no caso do governo brasileiro, que se realizam, são bastante insuficientes, elas não tocam nem de perto aquilo que é realmente necessário para o mínimo básico para sobrevivermos.

Então, Reparação é algo que é fundamental, inclusive, para poder garantir o que chamamos de Bem Viver. E o Bem Viver, eu não vou aqui tecer grandes questões, mas no fim das contas, o Bem Viver é um outro modo de viver a vida, a partir de outras perspectivas que não são as do capitalismo racista patriarcal. O Bem Viver propõe outro modelo de vida, outra forma de organizar a sociedade, frente ao modelo explorador, devastador e desumanizador do capitalismo. É uma proposta que os povos originários indígenas e povos originários negros, têm para confrontar o sistema capitalista.

Mas não é possível também vivermos o Bem Viver, sem um justo processo de reparação histórica. Há uma articulação entre essas duas coisas, precisamos fazer uma reflexão muito longa e profunda sobre a Reparação para entendermos isso, mas por hora quero destacar apenas que não se trata somente de reparação financeira, ainda que a reparação financeira seja importante. Não se trata apenas da inclusão na economia, ainda que a inserção econômica também seja fundamental. Estou falando de inclusão, sobretudo, na perspectiva de podermos usufruir das riquezas produzidas historicamente por todas as pessoas, sobretudo nós negros/as que integramos a classe que vive apenas de seu trabalho, usufruto esse que a população negra está profundamente e historicamente excluída. 

Então, a Reparação precisa abarcar a perspectiva da política, da economia e, também, da cultura, lembro que toda nossa produção material e simbólica são amplamente absorvidas, apropriadas, mercantilizadas até, pelo capitalismo, só que tanto nós, os sujeitos dessa produção somos descartados e somos excluídos do usufruto do que produzimos e, também, do que o conjunto da humanidade produz como saber e riquezas materiais. Então, há uma produção simbólica da qual a população negra e, as mulheres negras, foram e ainda estão sendo alijadas. Tem algo aí que precisa ser resolvido, e não é simples de ser resolvido porque mexe com a estrutura, uma vez que mexe com recursos financeiros e também com relações de poder. Este algo tem uma relação entre política, economia e a cultura que é muito mais amplo do que conseguimos ver. [fim]

O SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia é uma das organizações feministas que compõem o Comitê Impulsor pernambucano da Marcha das Mulheres Negras 2025. Para saber mais informações sobre as atividades preparatórias para a Marcha 2025 em Pernambuco, siga o perfil da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco: @redemulheresnegraspe. Para saber sobre as mobilizações a nível nacional, siga @marchadasmulheresnegras2025

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