Luta pelo fim da violência contra as mulheres foi tema de duas edições de curso do SOS Corpo em 2024

Com turmas que aconteceram em julho e novembro deste ano, a metodologia do Fontes e Veredas aliou troca de experiências, trabalho em grupo e linha do tempo para discutir um problema tão complexo e fomentar a luta. 

A primeira turma do tema “Radicalizando a luta pelo fim da violência contra as mulheres”, teve suas aulas nos dias 30 e 31 de junho de 2024. Foto: Fran Ribeiro/SOS Corpo

Aconteceu nos dias 12 e 13 de novembro, na sede do SOS Corpo, a segunda edição do curso Fontes e Veredas que teve como tema “Radicalizando a luta pelo fim da violência contra as mulheres”. Organizado e ministrado pela educadora do SOS Corpo, Natália Cordeiro, a atividade educativa integrou o Plano de Formação do SOS Corpo neste ano de 2024. A primeira turma teve suas atividades nos dias 30 e 31 de julho. Ambas as turmas reuniram mulheres diversas e pessoas não-bináries, que discutiram diferentes contextos da vida, onde a experiência da violência é o fio em comum. 

Dialogando com referenciais teóricos que ancoram o campo dos estudos sobre violência contra as mulheres no Brasil, Natália, que é doutora em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco, e que lançou em 2023 o livro Violência contra as mulheres: (re)produção de desigualdades nas políticas públicas (Edições SOS Corpo), traz na metodologia do curso, a articulação entre patriarcado, racismo e capitalismo para aprofundar a análise do fenômeno da violência, que atravessa diferentes dimensões da vida cotidiana das mulheres. 

“É a partir da experiência, que está no coração da educação popular e da educação popular feminista, quando a gente troca as nossas experiências que a gente percebe as diferenças e as desigualdades entre nós, mulheres. Sobretudo quando temos grupos tão heterogêneos. Partir da experiência ajuda a gente a entender que refletir  a partir da própria vida, da própria trajetória, é colocar no centro da questão as desigualdades. Esse caminho nos ajuda a perceber que não tem uma experiência única em ser mulher. E se não há uma experiência única em sermos mulheres, logo, não haverá uma experiência única com a violência. Porque, inclusive, no curso, nós tratamos de violência contra as mulheres, mas a violência é usada como forma de dominação para manutenção do racismo, para manutenção do capitalismo e a violência contra as mulheres é a expressão da violência de gênero, da violência patriarcal”, explicou a educadora. 

Tendo como horizonte a perspectiva antissistêmica, partir da experiência individual para aprofundar na análise coletiva da vida permite chegar ao entendimento  de que a violência é indissociável de outras dimensões das nossas vidas. De acordo com Natália Cordeiro, as violências não estão separadas das nossas experiências no mundo do trabalho, no acesso à saúde, no ambiente escolar, não se separa das experiências de racismo, da questão do aborto, porque são dimensões constituem nosso ser sujeito no mundo. 

“A partir do que as educandas colocam na roda, nos momentos de trabalho em grupo, conseguimos conversar e compreender um pouco sobre o que tem de comum, o que tem de diferente nas nossas trajetórias, o que a gente vai conseguir identificar de semelhança, por mais diferente que a gente seja. A metodologia então parte, para um segundo momento, que é refletir sobre como essas coisas se articulam entre si. O desafio é pensar como a violência contra as mulheres não se explica só pelo patriarcado e não vai ser combatida se a gente só pensar na dimensão de gênero para enfrentá-la. É fundamental pensar a questão do racismo e do capitalismo e também as relações de idade, de território, de orientação sexual e identidade de gênero”, destacou a pesquisadora. 

A educadora do curso desenvolveu o caminho metodológico situando a experiência no centro para nomear a dor, reconhecer a revolta para, enfim, organizar a luta. O caminho parece simples no papel, mas a complexidade do contexto que se dá a violência é também um dos principais desafios para radicalizar a luta. 

“Quando a gente conversa, a gente consegue falar sobre a dor e muitas vezes a gente pensa sobre isso, mas simplesmente sentir a dor não resolve o problema. É fundamental dar nome. Dizer, ‘aquilo que eu sofri é violência’. Ou qualquer outro tipo de questão que a gente traga, mas isso só não transforma. É preciso criar uma revolta, porque você pode sentir a dor e achar que a dor é normal, já que fazem as mulheres acreditarem que são culpadas pelas violências que são cometidas contra elas e não somos. Então, se você sofre a violência e sente a revolta, é o primeiro passo para você dizer ‘espera aí, isso aqui não está certo’. A revolta tem relação com a nossa condição de sujeito, de se colocar diante daquilo. ‘Eu aceito isso para mim’, ou ‘eu não aceito isso para mim’. Só que também não dá para parar na revolta, a gente precisa entender o por quê as coisas acontecem assim. A violência não é uma caixinha da nossa vida, ela está totalmente dentro das outras dimensões das nossas vidas. Está na nossa condição de trabalho, da nossa condição de moradia, da nossa rede de apoio, de afetos. O que ajuda a organizar a revolta é justamente perceber que tem várias frentes de enfrentamento à questão da violência”, salientou Natália. 

Da organização da luta, as participantes do curso foram levadas a então refletir sobe o papel do Estado na enfrentamento da violência contra as mulheres. Levadas porque, a partir de uma linha do tempo, a educadora apresentou o caminho construído até os dias de hoje no Brasil, o papel fundamental dos movimentos feministas, que se organizaram e deram o nome a esse problema e que brigaram para que as mulheres fossem vistas como sujeitos de direitos. A partir desse caminho, chegamos na organização da luta e da importância de os movimentos seguirem cobrando para que o Estado dê conta do problema. Que o Estado seja responsável por garantir o  enfrentamento deste problema social, algo que pode ser mitigado e combatido com a implementação de políticas públicas, mas que por si só não resolve as dimensões complexas que esse problema apresenta. 

Linha do tempo na parede da sala de debates apresenta a trajetória da luta pelo fim da violência contra as mulheres no Brasil. Ao centro, a educadora Natália Cordeiro. Foto: Lara Buitron/SOS Corpo.

“No curso, chegamos no debate de entender que o Estado está fazendo um trabalho, mas será que isso dá conta? Fizemos também o exercício de entender a situação das políticas públicas. Elas são insuficientes, tratam as mulheres de forma desigual, se ela for negra, se ela for moradora de rua, se ela for usuária de drogas, se ela for trans e travesti… E se as políticas públicas não existissem, qual seria a situação? Enfim, a gente não chegou obviamente a uma resposta, porque a ideia era que a gente pensasse no contexto atual. As participantes viram, por exemplo, que o movimento já brigou muito para ter políticas públicas, para ter delegacia, a gente viu que uma série de coisas foram conquistadas, mas para um conjunto de mulheres as políticas não chegam. Não chegam para as ribeirinhas, para as que moram na zona rural, para as que moram no interior do Brasil. Então, assim, tem como também parar de brigar para que essas políticas existam quando elas sequer chegaram ainda para uma um conjunto de nós? O curso trouxe muitas reflexões sobre o papel do movimento, sobre qual o papel do Estado”, destacou Natália. 

O Fontes e Veredas é um espaço pedagógico de partilha das elaborações do SOS Corpo sobre questões feministas que nos instigam à produção de conhecimento. São atividades de formação para entre 20 e 35 mulheres, no máximo, realizadas na sede do SOS ou em alguma instituição parceira. Nossa proposta é contribuir com a formação teórico-política feminista das mulheres dos diversos movimentos.

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