Série de entrevista apresenta sujeitos do feminismo,suas leituras de conjuntura e estratégias para o momento de retomada democrática e enfrentamento aos fundamentalismos locais.
Estamos em março, mês de luta das mulheres. Nós movimentamos o país nos últimos anos resistindo à uma conjuntura tenebrosa, mas também criando caminhos para o bem-viver a partir de nossas experiências juntas. O 8 de março é uma experiência deste tipo, onde há esforço de articulação em torno de uma ação unificada. Encarar os desafios de fazer um ato deste tipo juntas é experimentar em menor escala as adversidades do fazer política. É desafiante.
E este é um ano de muito desafio para nós, que fazemos movimento de mulheres e movimento feminista. É necessário reconstruir o que foi destruído, ao mesmo tempo que se avança nessas mesmas políticas que estão sendo resgatadas, para superar suas limitações e enfrentar a situação de desigualdades e violências em que as mulheres se encontram. E ainda enfrentar a o ofensiva anti-trans (e anti-feminista) se alastrando como uma doença que gera engajamento, lucro e promove divisão dentro próprio movimento.
Este ano, conversamos com alguns expoentes da luta pernambucana para entender o contexto da luta das mulheres neste momento. Perguntamos qual a leitura que fazem da vitória eleitoral de esquerda no Executivo ao mesmo tempo em que as casas legislativas ainda estão tomadas pelo fundamentalismo. Quais as principais pautas que defenderão este ano? Qual relação vão manter com o governo e legislativo local? E qual as estratégias do movimento feminista para avançar a luta das mulheres?
Hoje apresentamos a entrevista com Maria Daniela, articuladora política filiada à Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais de Pernambuco/AMOTRANS e Rede Nacional de Feministas Antiproibicionista/RENFA.
[SosCorpo] Quais as pautas que o transfeminismo traz neste Março de Lutas?
Maria Daniela (AMOTRANS): Pautas que tratam sobre a inclusão das pessoas trans. Por mais que homens trans e transmasculines tenham suas próprias pautas, entendemos que a transfobia é transversal a qualquer pessoa trans, operacionalizando a exclusão, o ciclo de precarização da vida, e os caminhos de morte para a população transgênera. Pautas como o enfrentamento à violência doméstica e familiar; a hostilidade do meio escolar; escolaridade, capacitação, emprego e renda; o transfeminicídio; inclusão das identidades de gênero nos formulários, prontuários e protocolos do Estado nas suas três esferas; campanhas de comunicação falando de nossas pautas, políticas e mecanismos públicos com orçamento para atender nossa população (trans); são algumas delas.
[SosCorpo] Saiu recentemente um levantamento feito pela Folha de São Paulo que mostra que nas Casas Legislativas em todo o Brasil, há 68 propostas de projetos de lei declaradamente antitrans, propostas por deputados de partidos da extrema-direita. Como você avalia essa ofensiva?
Maria Daniela (AMOTRANS): O Estado burguês, patriarcal, racista e transfóbico operacionaliza o controle das corpas e corpos através do proibicionismo. Alguns exemplos são a proibição de algumas substâncias (drogas ilícitas) e do aborto. Inicialmente cria-se um pânico moral na sociedade, e daí a provocação de leis que “garantam a criminalização de determinadas situações” estará posta. Isto aconteceu com a criminalização de algumas drogas, do aborto, e agora, a tentativa dos conservadores e fundamentalistas é de não apenas barrar direitos adquiridos pela população trans como o uso do nome social, o casamento, o uso de banheiros públicos de acordo com o gênero, mas criminalizar as nossas existências através destes PLs.
[SOS Corpo] Quais os desafios hoje para o movimento transfeminista e para o movimento feminista como um todo, para fazermos avançar os direitos das mulheres trans?
Maria Daniela (AMOTRANS): Historicamente, o movimento feminista não acolhia as travestis e mulheres trans. Com o reconhecimento do gênero como uma construção psicossocial, e o reconhecimento das travestis e mulheres trans enquanto identidades femininas, este quadro começa a se modificar. Muitas feministas atualmente entendem que não apenas também somos mulheres, mas também lutamos contra o mesmo inimigo: o patriarcado racista, misógino e transfóbico. Não há um único parâmetro de “mulher”. Não existe uma mulher universal. O conceito de “mulheridade” é desenvolvido pelas negras cisgêneras justamente para incluir mulheres diversas, para além das brancas cisgêneras pequeno burguesas (classe média). Entretanto, este conceito não é absorvido por todas as feministas, em especial quando se fala sobre travestis e mulheres trans. Existe um recorte ideológico dentro do feminismo reivindicado por mulheres que se intitulam como “feministas radicais” (Radfems e Terfs), que deturpam bandeiras como a opressão de gênero para oprimir e excluir as mulheres transgêneras do feminismo. Tais discursos são totalmente alinhados ao fundamentalismo religioso, ao conservadorismo, e ao patriarcado. Isto fragmenta e separa os feminismos, enfraquecendo um movimento tão potente que é a terceira onda feminista. Isto não apenas desagrega, como enfraquece nossa luta, representando um enorme retrocesso nas lutas históricas do feminismo como o enfrentamento ao biologismo e ao genitalismo, que por séculos, milênios, e até hoje, colocava e coloca as mulheres CIS, homens trans e pessoas não binárias de útero como meros aparelhos reprodutores. Desta forma, para que o feminismo popular continue avançando, e esteja no seu devido lugar de destaque e protagonismo social, assim como avancemos cada vez mais nos direitos das travestis e mulheres trans, precisamos desmascarar e desconstruir estas narrativas conservadoras, fundamentalistas, biologistas e genitalistas que se encontram infiltradas dentro do próprio feminismo. Só assim avançaremos. Ninguém solta a mão de ninguém até que sejamos todas e todes livres da opressão de gênero. Nenhuma mulher a menos! Vidas Travestis e Trans importam!!!
Leia as próximas entrevistas:
Amanhã: Entrevista a Adriana Nascimento, diretora de Políticas de Mulheres da Fetape (Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco), sobre a Caravana Margaridas pelo Fim da Violência contra as Mulheres, que percorreu três territórios no Estado.
Sexta-feira: Entrevista sobre a leitura de governo nacional, contexto da luta antirracista no estado, além da força do movimento de mulheres negras contra os fundamentalistas locais. O papo foi com Rosa Marques, militante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, Articulação Permanente de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres e Articulação Nacional de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB).