Reflexões feministas sobre políticas públicas de enfrentamento à violência contra as Mulheres

Passados quase 40 anos da implementação das primeiras políticas públicas voltadas para o enfrentamento à violência contra as mulheres nos parece oportuno, por ocasião do dia 25 de novembro – Dia Latino-americano e Caribenho de Luta pelo Fim da Violência Contra as Mulheres –, compartilhar algumas reflexões que temos acumulado sobre tais políticas, sobre o fenômeno da violência propriamente dito e sobre o papel dos movimentos feministas neste âmbito. 

A politização da violência contra as mulheres, traduzida na popular expressão “o pessoal é político” foi uma das principais bandeiras de luta do movimento feminista nos anos 1960 e 1970. Isto é, naquele momento a luta era para que a violência patriarcal baseada na desigualdade entre mulheres e homens deixasse de ser vista como uma questão de âmbito privado e interpessoal e passasse a ser vista como uma questão pública sob a qual o Estado tinha responsabilidade. Assim, nos anos 1980, surgiram paulatinamente as primeiras políticas com esta finalidade. 

O processo de retomada democrática no Brasil do final dos anos 1980 levou a uma intensa participação das mulheres na vida pública e na disputa por uma nova concepção de Estado. Além de influir na Constituinte, os movimentos feministas e de mulheres se envolveram na criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) e acompanharam ativamente os desdobramentos que levaram à implementação de políticas públicas voltadas para as mulheres ao longo dos anos 1990 – sendo a questão do enfrentamento à violência um dos principais eixos. 

No início dos anos 2000, com a eleição de um governo de esquerda e progressista que levou à criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), com status ministerial, houve uma grande proliferação de organismos de políticas para as mulheres e, consequentemente, de políticas voltadas à promoção de seus direitos. A realização de conferências, planos, bem como a previsão orçamentária permitiram a descentralização de tais políticas e sua capilarização para as esferas estaduais e municipais. Como um parêntese, pontuamos o fato de que esse cenário engendrou debates profundos e complexos sobre a relação entre os movimentos sociais feministas e governos. Debates esses que ainda não estão plenamente superados e que possivelmente vão voltar a ter centralidade na atual conjuntura.

Essa trajetória foi interrompida em 2016 pelo golpe sofrido pela primeira presidenta mulher eleita e que pavimentou o terreno para a ascensão de um governo fascista e fundamentalista em 2018. Reformas ministeriais, cortes no orçamento e mudança na perspectiva ideológica que orientava as políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres levaram ao sucateamento das referidas políticas. Além disso, esse rompimento democrático também gerou mudanças no comportamento social e embora ainda estejamos compreendendo seus impactos, é possível dizer que se abriu espaço para uma contraofensiva conservadora que passou a tornar legítimos novamente discursos e práticas violentas contra as mulheres.  

Fazer esse resgate histórico e escrever esse texto após a vitória eleitoral da frente ampla, encabeçada por Lula, que foi articulada para retomada dos rumos democráticos do país, além de nos dar um sopro de esperança por vislumbrarmos um contexto inquestionavelmente mais favorável para o enfrentamento da violência contra as mulheres, também suscita questionamentos que gostaríamos de compartilhar para avançarmos numa elaboração coletiva.

As políticas pensadas lá atrás e implementadas ao longo das últimas décadas ainda fazem sentido hoje? Essa pergunta nos parece importante de ser feita, pois os números da violência contra as mulheres seguem muito altos e um olhar mais cuidadoso para eles revela uma realidade alarmante.

 Entre 2009 e 2019, o total de mulheres negras vítimas de homicídios apresentou aumento de 2%, enquanto, o número de mulheres não negras assassinadas caiu 26,9% no mesmo período (IPEA, 2021). Em 2021, foram registrados no Brasil 1.341 casos de feminicídio. Dentre eles, 68,7% das vítimas tinham entre 18 e 44 anos e 62% eram negras (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022). No mesmo ano, 141 travestis e mulheres transexuais tiveram mortes violentas em espaços públicos (Acontece/ ANTRA/ ABGLT, 2022), o que faz do país o que mais mata pessoas trans e travestis em todo o mundo pelo 13° ano consecutivo (Transgender Europe, 2021). Com relação às mulheres lésbicas, os dados mais atualizados são de 2018 e registram que entre 2000 e 2017, foram registrados 180 homicídios de lésbicas (Grupo de Pesquisa Lesbocídio, 2018).

Não se pretende (e nem seria possível) concluir nada com esses dados, mas eles apontam numa direção: a violência não atinge todas as mulheres da mesma forma. A violência quando reduz, reduz somente para as mulheres brancas; as mulher trans são atingidas de forma brutal e específica, assim como as mulheres lésbicas, embora a falta de dados – que por si só já revela uma desigualdade – limite nossa compreensão. Os dados são pouco específicos quanto à classe social das mulheres que passam por situação de violência. 

Nesse sentido, embora os validemos, procuramos ir além dos argumentos que colocam essas desigualdades na conta do sucateamento das políticas públicas e na falta de integração da rede. Por isso questionamos: as políticas públicas de prevenção e enfrentamento à violência contra as mulheres têm sido capazes de reconhecer as diferenças e, principalmente, as desigualdades entre nós?

Se, a princípio, os movimentos feministas e de mulheres brigaram para garantir que políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres passassem a integrar a agenda governamental e fossem formuladas, o passar do tempo revelou que tirar leis e decisões do papel e colocá-las em prática é um processo mais complexo do que pode parecer à primeira vista. Esse processo é chamado de implementação, é nele que ocorrem operações e atos ordinários que dão concretude e preenchem o cotidiano da atividade governamental, materializando-a para as cidadãs e cidadãos. É através da implementação que os serviços são entregues à população, não sendo somente uma abstração. Nesse sentido, sua complexidade se deve ao fato desta etapa requer o envolvimento de diversos atores, procedimentos e interações que não são neutros e influenciam a forma como as políticas públicas são produzidas. 

Assim sendo, a implementação pode ser também um momento no qual há produção e reprodução de desigualdades já existentes na sociedade de maneira mais ampla. Fica evidente, portanto, e não só a partir dos dados, mas com base no que alertam os movimentos feministas negros, lésbicos, populares, LBT’s, entre outros, a possibilidade de emergirem efeitos não pretendidos ao longo do processo de implementação das políticas públicas relativas à violência contra as mulheres. 

Isso porque a potenciação simultânea das disparidades de raça, classe social e gênero criam um complexo esquema de relações sociais, com discriminações múltiplas que se manifestam em desigualdades de autonomia e bem-estar, bem como no exercício de direitos e de oportunidades, em capacidades de acessar as políticas e nos tratamentos que se recebe quando se acessa as mesmas. A forma como as desigualdades são expressas também se baseia nos estereótipos que hierarquizam e desqualificam determinados grupos sociais em razão dos marcadores sociais que os caracterizam. Tais estereótipos estão presentes em diversos âmbitos da vida social e permeiam as próprias instituições e são reproduzidos por elas.

Portanto, um olhar feminista sobre as políticas públicas voltadas para a problemática da violência contra as mulheres exige que a gente se debruce sobre o processo de implementação das mesmas. Exige considerar que o enfrentamento das desigualdades sociais requer mudanças não somente nas estruturas e normas formais visando fortalecer os sistemas de promoção e proteção social com base em direitos, mas, também, na cultura e nas normas informais – tanto no nível dos grupos sociais quanto no das instituições – que naturalizam a discriminação e o privilégio de alguns grupos sociais. Exige resgatar aquilo que está escondido na rotina das ações (ou inações) cotidianas dos agentes públicos e expô-lo ao debate público. Somente assim esses mecanismos deixarão de ser operadores velados da exclusão e da reprodução de desigualdades e passarão a ser considerados como questões importantes a serem tratadas na produção e reformulação de políticas públicas, impactando positivamente na vida das mulheres em sua mais ampla diversidade.

Monitorar a implementação das políticas públicas também pode nos ajudar a lidar com o problema da falta de dados ou da má qualidade dos dados relativos à violência contra as mulheres. Pois eles, muitas vezes, tornam invisíveis as diferenças entre as mulheres, as considerando um sujeito único. Isso é tão real, que não é raro encontrarmos relatórios, dossiês e mesmo políticas e programas que tratam da violência contra “a mulher”, ao invés de violência contra “as mulheres”. 

Pensar de maneira mais profunda sobre as políticas de enfrentamento às mulheres pode nos ajudar a repensar, inclusive, o próprio fenômeno da violência contra nós. Pois no cotidiano das políticas, no momento da materialização do Estado na vida das cidadãs, no encontro entre burocratas e as mulheres em situação de violência se revelam novas formas – ou se desvelam velhas – do fenômeno.

Nesse momento em que voltamos a ter esperanças com futuros feministas, olhar com com coragem e criticidade para as políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres pode nos levar, enquanto movimento feminista, a não repetir os mesmos erros, pois como foi visto, embora tenha havido avanços no reconhecimento da desigualdade de gênero como um problema a ser enfrentado pelo Estado através das políticas públicas, a realidade demonstra dados absolutamente discrepantes entre a forma que tais políticas atendem as mulheres. Onde as estruturas sociais de raça, classe e  gênero convergem, as políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres baseadas unicamente nas experiências das mulheres privilegiadas terão alcance limitado para aquelas que por causa dos referidos marcadores sociais enfrentam obstáculos diferentes.

Para o construir o futuro feminista que sonhamos, discutir sobre as diferenças e desigualdades entre as mulheres é uma questão premente, pois essa discussão levanta questões críticas de poder. Neste sentido, a luta pela incorporação dessas diferenças na implementação das políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres, isto é, nos atos cotidianos que dão concretude ao Estado na vida das cidadãs, não é um debate abstrato ou insignificante, é uma questão de quem vai sobreviver e quem não vai.

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