Maioria do eleitorado, elas são mais impactadas pela tragédia alimentar e podem exigir política mais próxima do cotidiano. Indecisão é maior, porém menos inclinada ao bolsonarismo. Em outubro, serão decisivas no resgate da democracia
*Por Juliana Romão, para o SOS Corpo. Publicado também na coluna Feminismos, do site Outras Palavras.
A disputa vital que se impõe à sociedade brasileira neste ano eleitoral é autoritária e desproporcional. Não apenas pelo contexto de veloz aumento das desigualdades econômicas e sociais nos últimos anos, ou pelo agravamento da fome, que faz o Brasil superar pela primeira vez a média mundial (35%) já escandalosa por si. Ou pela matança da população negra, a militarização do Estado ou o amplo desequilíbrio de gênero e raça no acesso tanto a serviços básicos quanto ao poder institucional, o que, de certa forma, explica todos os indicadores de injustiça social.
É abusiva por se dar num terreno rebaixado pelo governo federal a um plano antidemocrático por princípio, onde não há humanidade, ética ou qualquer fio de compromisso com a coisa pública, ou com a verdade. Verificação da agência de notícias Aos Fatos contabiliza 5.457 declarações falsas ou distorcidas do presidente Jair Bolsonaro desde que assumiu o executivo até o dia 27 de maio, uma estratégica confusão informativa que ambienta discursos de fraude eleitoral sincronizados a crescentes ameaças às instituições, especialmente as instâncias de equilíbrio entre poderes, como o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal.
O campo progressista planta no solo civilizatório da democracia, da justiça social e dos Direitos Humanos, da construção por debates, muitas vezes barulhentos e inconclusos, mas nunca pela tirania da força e do desprezo à vida. É bastante difícil competir contra o vale-tudo que rejeita a História e os valores constitucionais. Destruir é muito mais fácil do que construir ou impedir a destruição, eliminar é bem mais simples do consertar, acolher, propor. Não há equivalência.
Este enredo de adversidades compôs o debate “Cenário Eleitoral: Desafios e Esperanças” realizado pelo SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia, no dia 26 de maio, no auditório do Movimento dos Trabalhadores Cristãos (MCT). Participei das provocações ao lado do educomunicador, mestre em comunicação com fins sociais (UVA/Espanha) Derson Silva e da educadora do SOS Corpo e mediadora da conversa Carmen Silva, numa roda ampla com a presença de diversas representações de movimentos sociais, de mulheres, pré-candidatas e pré-candidatos a vagas na assembleia legislativa, na Câmara e Senado Federal.
A preocupação coletiva com o desequilíbrio de forças fez da estratégia de aterrissar o discurso no cotidiano demanda uníssona nas falas. Ir ao encontro, alargar ouvidos e a disposição para conversar com nosso entorno, de corpo presente e na linguagem anfitriã. Na casa da vizinha, sobre a realidade dela; com o colega do trabalho, nas lentes dele; em troca com a médica da UPA, focando naquela experiência de mundo. Essa tecnologia política restaura a musculatura dialógica atrofiada nos últimos anos e deve coexistir com as incidências digitais mediadas por grandes empresas de tecnologia (nunca esqueçamos), que a um só tempo abrem portas e visibilizam como também robotizam relações e impulsionam ameaças lucrativas para as plataformas.
Promover e participar de debates sobre conjuntura político-eleitoral não é uma realidade acessível à maioria das pessoas. Seja por desinteresse, pelas sobrecargas de trabalho, da exploração que engole o tempo da reflexão, o desemprego ou a urgência da fome. De um modo ou outro a informação chega, não necessariamente baseada nos fatos, e influencia o olhar sobre as implicações da política na vida prática, muitas vezes desresponsabilizando a gestão federal pela incontestável realidade do supermercado, do transporte, da geladeira vazia, do fim do Bolsa Família, da igreja que frequentemente permuta acolhimento por lealdade ideológica. O impacto deste desalento é sentido prioritariamente por mulheres, pessoas negras e periféricas, não há desigualdade genérica.
“A precarização da vida é o elemento invariável do contexto político-eleitoral de 2022, já o resultado eleitoral é uma variável, uma incógnita frente as constantes ameaças, mas trabalharemos arduamente pela vitória de centro-esquerda”, destaca Carmen Silva, em precisa análise de conjuntura da correlação de forças postas em jogo. Os cenários podem variar conforme as votações e posturas dos candidatos e das instituições, mas a realidade de vida das pessoas seguirá ruim no ano de 2023, analisa, especialmente para a classe trabalhadora e mais vulnerabilizada. Se o campo de centro-esquerda da candidatura de Luís Inácio Lula da Silva vencer o pleito, qualquer transformação não ocorrerá ao amanhecer e, em caso de vitória do campo da extrema-direita de Jair Bolsonaro, a mudança será para pior.
A população precisa poder compartilhar dessa certeza, por isso comunicá-la com integridade e amplitude é parte da disputa político-eleitoral. “É estratégia de contranarrativa”, comentou Derson Silva, ao levantar algumas propostas de reação ao cenário de naturalização das fake news e de descrença na verdade: investir tempo e recurso para pensar e propor ecossistemas digitais menos hostis e antidemocráticos, na educação midiática, em estratégias de coalizão de checagens de informação para o combate de notícias falsas; repositórios de notícias desmentidas; fóruns e redes de observação e monitoramento da mídia e comunicação.
Acompanhar e multiplicar o trabalho das mídias independentes igualmente nos levará a enquadramentos alternativos e não hegemônicos. Enxergar o imenso que parece invisível é luta antiga que reapresenta como virada de jogo inadiável. Como diz a socióloga Vilma Reis, “um país que escuta as mulheres erra menos”. Essa escuta também pode eleger o novo Presidente da República do Brasil.
ELAS são maioria
As mulheres são maioria da população (52%), maior parte do eleitorado (53%), comparecem às urnas em maior proporção e representam quase a metade das filiadas nos partidos políticos. São muitas e plurais: negras, indígenas, brancas, quilombolas, LBTs, com deficiência, jovens, idosas, rurais, das águas, das cidades, do litoral, do sertão, feministas, conservadoras, anarquistas. São essa força política que povoa as bases, mas não a arena pública. A igualdade de gênero e raça é um assunto de poder, no caso brasileiro, de ausência dele. Desvantagens socioculturais se convertem em obstáculos à presença feminina nos comandos; estereótipos de gênero as encaixotam no lugar do cuidado e perversamente as responsabilizam pelas engrenagens que as afastam do poder.
Um exemplo simples, a partir da paixão nacional pelo futebol. Imaginemos todos os estímulos que os garotos têm para jogar bola (brinquedos, escolinhas de treinamento, aplausos de adultos, inspiração na TV, incentivo, oportunidades de jogo, etc). Agora, todos os desestímulos que as garotas vivenciam para tentar fazer a mesma coisa (preconceito, desencorajamento, ausência de oportunidades, brinquedos-boneca, piadas, ofensas, descrédito na família). A projeção na política é mais complexa, porém semelhante. Há um histórico de prejuízos que resultam na sub-representação na política e em instâncias decisórias.
A Câmara Federal tem o maior percentual de ocupação feminina da história: apenas 15%, conquista atrasada em 25 anos da implantação da lei que instituiu as cotas eleitorais em 1995. É a metade da projeção de 30% de reserva mínima de candidaturas determinada pela legislação. Das 77 cadeiras, apenas 13 (2%) é de mulheres negras. O Senado conta com 13 representantes mulheres (16%) de 81 vagas, apenas uma autodeclarada negra.
No executivo apenas 1 (4%) mulher foi eleita governadora em 2018. Hoje são 3 (11%), depois que duas vice-governadoras assumiram os comandos estaduais na saída dos titulares para se candidatarem em outubro. Mulheres comandam apenas 12% das prefeituras, 4% delas são negras.
É praticamente uma ausência, mas que contrasta com as propagandas partidárias veiculadas no rádio e na TV neste período pré-eleitoral, onde há muitas mulheres na tela, falando em primeira pessoa e aplaudindo o apoio das legendas. São propagandas que falsificam a realidade para dialogar positivamente com as eleitoras, aquela fatia de 53% que soma 8,5 milhões de votos a mais do que homens.
O direcionamento faz parte do cálculo eleitoral partidário, dos mesmos que barram candidaturas femininas – 1 em cada 7 pré-candidaturas ao governo do estado são de mulheres –, criam mecanismos de obstrução do financiamento público, descumprem a lei de cotas e aprovam no Congresso Nacional a anistia às multas pelas infrações legais cometidas. É urgente democratizar as instâncias partidárias para uma competição menos desigual.
As mulheres decidirão as eleições
Está em nós, mulheres, em nossa força e vida de sobrecargas, o maior peso do resultado eleitoral deste ano. É o que revelam pesquisas de opinião, como as do Datafolha, que indica as eleitoras como menos inclinadas a votar em Bolsonaro que os homens (a rejeição ao presidente é dominante entre mulheres de todas as classes sociais) e mais indecisas (39%) que eles (25%) quanto ao voto de outubro. A economista Cecília Machado explica que o distanciamento entre os gêneros nas intenções de voto é um fenômeno recente. Desde a primeira eleição pós-redemocratização, em 1989, até a reeleição de Dilma Rousseff (2014), as principais candidaturas presidenciais receberam apoio semelhante entre os gêneros, quadro alterado em 2018 quando às vésperas do 2º turno pesquisas indicaram propensão de voto em Bolsonaro em 55% dos homens entrevistados e em 43% das mulheres, uma diferença de 13 pontos. É essa novidade que passa a ser explorada pelas campanhas.
Entre as hipóteses para a movimentação percentual, optamos pela que credita o histórico de “aproximação” de intenção de voto entre os gêneros ao frágil agendamento de pautas visivelmente direcionadas às mulheres (tornando a escolha indiferente para ambos), fato ressignificado às avessas nos últimos anos.
Desde a eleição de Bolsonaro, ataques frontais às mulheres na linguagem, na legislação e no desfinanciamento generalizado de políticas públicas sociais, aumento da violência de gênero e a feminização da pobreza dão o tom da gestão. O que não estava tão visível passou a ser sentido agressivamente no cotidiano, como bem resumiu o colunista Celso de Barros em análise sobre os dados de insegurança alimentar: “a tragédia da fome bolsonarista é uma tragédia feminina”. Talvez, numa mistura de análise e desejo, venha precisamente deste deserto o fio de esperança a nos impulsionar à reconstrução do país. É hora da reação ao insuportável. Mais mulheres eleitas, mais eleitoras optando pela frente ampla de esquerda e definindo o resultado final, movendo a política ao eixo civilizatório.
E assim será se conseguirmos enfrentar as tentativas governamentais de camuflar a realidade, dissipar as cortinas de fumaça que nublam a conexão entre vida concreta e gestão política. A mídia corporativa não fará isso. Ao contrário, ela contribui com a desconexão, a individualização das existências, propaga a tese de criminalização da política e demonização de seus atores e atrizes, num movimento que afasta a população do fazer político, favorecendo o progressivo desmonte dos direitos fundamentais, a flexibilização dos direitos constitucionais.
Esse abismo entre Congresso e sociedade é causa e efeito de muitas das mudanças que passam em votações-relâmpago, como as regras eleitoras aprovadas ano passado e que alteram a estrutura de concorrência. Destaque ao instituto da Federação Partidária, uma variação da antiga coligação, em que partidos se unem como um só (mantendo suas legendas) para atuar nas eleições e por no mínimo quatro anos. Outra lei reduziu a quantidade de candidaturas permitidas por partido, aumentando a violência das disputas internas.
Também houve proposta positiva entre as tentativas de retrocesso que não vingaram. Candidaturas de mulheres e de pessoas negras terão peso dobrado na contagem para fins de distribuição dos fundos eleitoral e partidário, o que deve representar mais investimento nesses grupos, no mínimo como caminho partidário para ter mais recursos. Vamos observar e pressionar pelo cumprimento das leis, mas sem deixar de apoiar criticamente as instituições democráticas, especialmente o TSE, que ante os ataques à credibilidade do sistema de votação, viverá a sua mais difícil condução eleitoral. A democracia é a nossa única arena.
Muitas tarefas a cumprir e é real que essas reflexões-centrífuga nos jogam num caldeirão de emoções, mas podemos temperá-lo com a energia de falas como as que circularam no encontro, pitadas da força ancestral que nos precede e a necessária vontade de transformar para o bem-viver. Neste momento de maior dor coletiva façamos a maior força para gestar o caminho feminista e antirracista do novo mundo. Afinal, como diz a argentina Diana Maffia, não estamos lutando contra um fantasma, mas contra uma realidade.
*Juliana Romão é pesquisadora e consultora em comunicação e política, cofundadora e cogestora do projeto-ação Meu Voto Será Feminista, integrante da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma Política e da Frente Pelo Avanço dos Direitos das Mulheres. julianagromao@gmail.com