“Uma dimensão profunda da resistência nesse tempo é garantir a vida em primeiro lugar. A gente tem que defender a vida dessas pessoas, dessas milhões de pessoas e de milhões de pessoas que estão entre nós, tanto do ponto de vista político quanto na construção das nossas redes de solidariedade”. Essa afirmação da socióloga, pesquisadora do SOS Corpo e militante feminista da Articulación Feminista MarcoSur e da Articulação de Mulheres Brasileiras, Betânia Ávila, foi um dos pontos estratégicos de enfrentamento ao sistema neoliberal apontados por ela durante a roda de diálogo “As expressões do conservadorismo, fascismo e fundamentalismo na produção e reprodução da vida social, na economia, na política e na cultura – conexões entre a realidade brasileira e as expressões no mundo”, da edição de julho do curso Caleidoscópio: Corpos Livres, Estado Laico.
De acordo com a feminista, gestos de solidariedade e de cuidado devem estar na trama de nossas organizações, articulações e de nossas redes políticas, como estratégia de enfrentamento aos efeitos deliberados do neoliberalismo, entre eles, o que prega um individualismo exacerbado, uma vez que o sistema não organiza apenas a economia, mas também se apresenta como uma forma de organizar o mundo, de ver e tratar as questões que são objetivas na sociedade e que se coloca ainda como um projeto de construção de outras subjetividades, dominada por um novo padrão de acumulação de riquezas.
“Dentre os efeitos deliberados do neoliberalismo um deles é a exacerbação do individualismo, subjetividades altamente individualistas, como uma forma de sociabilidade e a tentativa de desestruturação de subjetividades formadas na experiência da cidadania, de valores coletivos, comunitários, a dominação subjetiva e a exaltação do indivíduo-empresa. A competição como valor e mediação na relação profissional, familiar, na vizinhança. Essa é uma constituição dessa subjetividade neoliberal, racista e patriarcal. É a quebra absoluta da solidariedade como vínculo social”, avaliou Betânia.
A individualização, ainda de acordo com a perspectiva apresentada pela socióloga, faz parte do projeto social do neoliberalismo capitalista, racista e patriarcal, que divide a sociedade e a governa entre aqueles que são aptos e os que não o são, aumentando o acúmulo de riqueza de um lado e o alargamento das desigualdades de outro. Para Betânia Ávila, o golpe de 2016 foi também nesse contingente social que, mesmo dentro de uma democracia liberal burguesa, começava a acessar de forma limitada alguns direitos sociais.
“Nós estávamos num tempo de construção de democracia frágil e quando começa a ganhar corpo essa democracia no Brasil, quando ela começa a ganhar corpo de mulher, corpo negro, homossexual, indígena, periférico, essa democracia é profundamente abalada. Porque parte do golpe no Brasil é justamente um golpe numa subjetividade coletiva que começava a se formar baseada na ideia de que “eu tenho direitos'”, apontou.