Faces da luta das mulheres negras na Amazônia

Eu sou negra nagô
no sangue, na raça e na cor.
Quem foi que disse
que o negro não tem valor
que o negro não sente frio
que o negro não sente dor?

Negra nagô
Ana Cleide Vasconcelos, Quilombo Arapemã

Texto: Maria das Dores do Rosário Almeida, Instituto de Mulheres Negras do Amapá; Maria Albenize Farias Malcher e Nilma Bentes, Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará – CEDENPA (1)

 

Embora a historiografia oficial tenha nos invisibilizado, nós, mulheres negras, nunca estivemos ausentes da história da Amazônia, sempre existimos! Já em 1886, foi criado no Pará o grupo liderado por mulheres negras “Estrelas do Oriente”, com a finalidade de celebrar festividades religiosas. Do mesmo período são as ‘irmãs
de São Raimundo’, uma irmandade de mulheres negras e as Taieiras, grupo de mulheres lavadeiras. Na Resistência, destacam-se no Pará as ações de Felipa Maria Aranha, na liderança do quilombo de Alcobaça, o qual contava com mais de 300 indivíduos (localizado hoje no que é o município de Tucuruí). Ainda no Pará,
a resistência no século XIX aparece nos jornais que anunciam fugas de mulheres negras escravizadas (2).

A Amazônia, maior região brasileira em extensão territorial (mais de dois terços do território nacional, incluindo os estados da região Norte e parte dos estados do Maranhão e Mato Grosso), possui mais de 11 milhões de pessoas negras, pressupondo a existência de mais de seis milhões de mulheres negras. A exemplo do que ocorre em todo o Brasil, cada uma de nós busca enfrentar e sobreviver ao racismo, às vezes, tentando sair deste poço ‘puxando-se pelos próprios cabelos’. Afinal, não tem sido fácil, para algumas, enfrentar o racismo e seus efeitos até dentro da própria família, já que, em alguns casos, filhos e filhas sentem vergonha por sua mãe e/ou seu pai serem negros.


No que se refere ao movimento negro, a Amazônia se destaca na luta política. Já em 1979, negros e negras fundam o Centro de Cultura Negra do Maranhão. No estado do Pará, em 1980, trazendo nas entranhas as forças de Xangô, Orixá da Justiça, foi que negros e negras começam a construir o que passou a ser conhecido
como CEDENPA – Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (3). Neste contexto, é que as mulheres negras reforçam sua organização na região. O momento era de um movimento negro com face sexista, no qual as relações de gênero funcionavam como fortes repressoras da autonomia feminina e impediam que as ativistas
negras ocupassem posições de igualdade junto aos homens negros. Por outro lado, o movimento feminista tinha sua face racista, preterindo as discussões de recorte racial e privilegiando as pautas que contemplavam
somente as mulheres brancas.

O protagonismo das mulheres quilombolas é presença histórica na Amazônia, tendo na Associação de Mulheres Mãe Venina do Quilombo do Curiaú, no Amapá, criada em 1997, uma expressão forte desta organização. Na década de 1980,destacamos o Grupo de Mulheres Negra  Mãe Andresa, fundado em 1986, no
Maranhão, nomeado em homenagem às mães de santo, mulheres que, com sua força, tiveram presença marcante na resistência do povo negro e na cultura brasileira. Nos anos 2000, destaca-se o IMENA – Instituto de Mulheres Negras do Amapá, que nasce com a missão de combater o preconceito, a discriminação racial, o sexismo e lutar pela universalização efetiva dos direitos humanos, evitando, principalmente, a marginalização das populações negras. Com o avanço da organização, ao início de 2008, decide-se criar uma articulação das mulheres negras para diminuir a distância geográfica e dar voz às mulheres da Amazônia. Esta rede passaria a ser a REDE FULANAS – Negras da Amazônia Brasileira.

Quando o movimento de mulheres negras surgiu, tinha o intuito de visibilizar as mulheres negras, dizer para a sociedade que estas mulheres existiam, buscavam ocupar espaços em conselhos de direitos, fóruns, redes e articulações. Hoje, as organizações de mulheres negras existentes na Amazônia buscam o protagonismo em
diferentes espaços: universidades, mercado de trabalho, nos poderes legislativo e judiciário; na política partidária, entre outros. Com organizações nacionais, lutam para que as mulheres negras saiam das estatísticas como maioria no trabalho doméstico. A temática ambiental, regularização fundiária, desenvolvimento, reforma política, compreensão do papel do Estado brasileiro, racismo, violência e bem-viver fazem parte da agenda das mulheres negras da Amazônia, sem perder de vista sua ancestralidade.

No feminismo afro-amazônico, Lélia Gonzalez (1984) é referência quando aponta que a concepção do feminismo ocidental omitia a questão de raça e também o distanciamento da realidade vivida pelas
mulheres negras. Assim, a autora nos mostra que a “solidariedade, fundada numa experiência histórica comum” (4), é uma especificidade da atuação das mulheres negras e talvez, por este motivo, o movimento de mulheres negras continua fortalecido e revigorado. O grande desafio para as redes e organizações de mulheres negras amazônicas é alinhar as questões de gênero, raça e classe social nos projetos de desenvolvimento da Região Amazônica, preservando os saberes das Mulheres das Florestas. Afinal, os contrastes na Amazônia, embora muito ligados às desigualdades inter-regionais, sócio-raciais e de gênero, também devem ser enfrentados através da defesa das tradições culturais. Mas, como se entender a prática da luta, quando a maioria está garantindo apenas uma subvivência/sobrevivência, sem tempo adicional, portanto, para garantir condições de disputar, de igual a igual, espaços na sociedade que é hegemonizada por brancos
e brancas? Ou ainda, como exercer um feminismo negro, para enfrentar a prática, no seio de muitas famílias, principalmente brancas e de classe média-alta, de pedir: “traz uma menina pra mim lá do Marajó”, ou “traz uma menina pra mim, lá do interior”, ou ainda, “traz uma menina pra mim lá do Maranhão”?

Por isto, as motivações de um feminismo afro-amazônico são várias: a vontade de unir o pensamento das mulheres negras da Amazônia, as aflições, e unir os sonhos e a força para enfrentar os desafios. Ter na autonomia do corpo da mulher negraamazônica uma identidade e símbolo de  resistência ancestral africana e indígena. Desfazer o mito do vazio demográfico amazônico, inclusive reconhecendo que a região possui a maior população quilombola do Brasil, que é diretamente afetada pelo racismo ambiental e pelas práticas
de degradação das florestas, dos rios, da vida silvestre e, consequentemente, sendo impedida de bem viver em seus territórios. Promover a visibilidade das mulheres  negras da Amazônia como aguerridas lideranças comunitárias e de resistência ancestral africana e indígena.

Outros desafios incluem: trazer ao debate a invisibilidade dessas mulheres, no contexto da história amazônica, sobretudo na conservação da biodiversidade. Reconhecemos o valor do protagonismo ao escrever nossas histórias, como estratégias para contribuir com o movimento de mulheres negras no Brasil. É um desafio enorme apontar as opressões praticadas contra as mulheres negras amazônicas em razão das especificidades de nossos territórios, como apresentam as estatísticas frequentemente divulgadas pelo movimento negro dos estados amazônicos e por instituições como IBGE, IPEA, entre outras. E que tornam emergenciais ações mais articuladas e capazes de superar as desigualdades.

Ao longo dos encontros para a construção da Marcha das Mulheres Negras 2015, os depoimentos das mulheres negras afro-amazônicas evidenciaram que, independente da realidade e da história de vida, o fator emocional é algo que afeta todas. Mas, por outro lado, o processo de mobilização também acrescentou temas como a solidariedade racial como elemento de fortalecimento da autoestima e do processo organizativo. O racismo institucional, amplificado pela mídia, gera falta de reconhecimento e enfraquece a nossa autoestima.
Por fim, é um desafio manter viva a memória da ancestralidade – como garantia dos saberes tradicionais dessas mulheres para o futuro –, que hoje está dizimada pelo modelo de desenvolvimento imposto à Amazônia, como os grandes projetos. Há uma desvalorização do saber tradicional, que é visto como atraso a partir do olhar eurocêntrico, ou seja, é o atraso do desenvolvimento do Brasil5. Nossas ancestrais nos inspiraram a seguir seus passos e a não desistir de sermos mulheres negras amazônicas.

Estamos em marcha para nos
fortalecermos coletivamente enquanto
mulheres negras da Amazônia!

 

Ativistas da Rede Fulanas NAB: Negras da Amazônia Brasileira.
2 Ver SALLES, Vicente. O negro no Pará. 2ª edição,1988 – “Centenário da Abolição”, Secult-Centur-MinC, fls.230-231.
3 Disponível em: http://www.cedenpa.org.br/Historico. Acesso em: 26 dez. 2017.
4 GONZALEZ, Lélia. The black woman’s place in the Brazilian society. In: National Conference, African-American
Political, Caucus/Morgan Sate University, Baltimore, 1984. Disponível em: <http://www.leliagonzalez.org.br. Acesso em: 23 dez. 2017.
5 Manifesto da Rede Fulanas – Negras da Amazônia Brasileira para a Marcha das Mulheres Negras – 2015 – Adaptado. Versão na íntegra disponível em: https://redefulanas.wordpress.com/2015/11/19/manifesto-das-rede-fulanas-negras-da-amazonia-brasileira-para-a-marcha-das-mulheres-negras-2015/. Acesso em: 26 dez. 2017.

 

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