Texto: Francisca Maria Rodrigues Sena, integrante do Inegra – CE
“Como mulheres, alguns de nossos problemas são comuns, outros não. Vocês, brancas, temem que seus filhos ao crescer se juntem ao patriarcado e se voltem contra vocês. Nós, em contrapartida, tememos que tirem nossos filhos de um carro e disparem contra eles à queima-roupa, no meio da rua, enquanto vocês dão as costas para as razões pelas quais eles estão morrendo.”
Audre Lorde
No momento em que rabisco este texto, sou tomada pelo forte sentimento da premissa já sabida de que ser mulher negra é uma construção social permanente. Olhando para a vida das mulheres negras com quem
compartilho a vida e o ativismo político e, a partir de algumas leituras sobre nossas trajetórias, vejo que a História sempre concorreu para que nossas vozes fossem silenciadas. Porém, quando conquistamos espaço para pronunciar o verbo, muitas vezes, nossas vozes ecoaram e ecoam de forma dissonante. E que assim seja! Que usemos nossas vozes e nossos corpos para expressarem as leituras de mundo, os referenciais, os desejos, as dores que experimentamos, as rupturas que ousamos fazer, dar continuidade às nossas sabedorias ancestrais… Fazer ecoar estas vozes dissonantes é um dos caminhos e ao mesmo tempo um dos nossos objetivos de liberdade e emancipação.
Nossos passos vêm de longe…
Sempre acho significativo explicitar que a auto-organização e as lutas das mulheres negras nascem nos mais diversos contextos de exploração e ocorrem a partir de diferentes matrizes: sociedades de mulheres abolicionistas, organização de empregadas domésticas, mulherismo, organização de mulheres pan-africanas, movimentos de mulheres, feministas, feministas negras, lésbicas, transexuais… Esta reflexão é feita inclusive respeitando as vozes dissonantes daquelas que, mesmo quando lutam contra as opressões que marcam as vidas das mulheres, recusam uma identidade feminista.
Se o feminismo negro nasce da crítica ao feminismo branco, sua constituição teve por base o acúmulo da nossa própria História e a trajetória de resistência e luta das mulheres negras e nossas ancestrais, tantas
vezes silenciadas e invisibilizadas. No Brasil, as mulheres indígenas e as mulheres negras sequestradas de diversas partes do continente africano, além de vítimas da exploração e opressão do processo de colonização das Américas e de escravização dos povos negros, também foram sujeitos de resistência e luta contra tais regimes, com suas heranças malditas até hoje. Além disso, os feminismos negros contribuem para desacomodar os movimentos negros quando reproduzem o sexismo.
No final da década de 1970 e início da década de 1980, o pensamento de Lélia González e de Sueli Carneiro são evidências das vozes dissonantes em relação ao pensamento hegemônico sobre a categoria supostamente universal “mulher” e sobre o feminismo branco, hegemônico e eurocêntrico, permitindo lançar outro olhar sobre a realidade brasileira e latinoamericana, a História, as relações sociais, as desigualdades, as mulheres negras, a auto-organização das mulheres negras, os feminismos e a importância de enegrecêlo. Ao fazermos uma leitura à luz dessa premissa, é possível identificar as diferenças e, sobretudo, as desigualdades construídas entre as mulheres negras e as não negras.
Se a crítica elaborada pelos feminismos negros, enquanto teoria e movimento contra-hegemônico, foi e é de fundamental relevância para identificar os limites do feminismo hegemônico e elaborar uma crítica sobre ele, tensionando e ressignificando o sujeito do feminismo, as suas bandeiras de luta, estratégias de ação, metodologias de trabalho, referenciais teóricos, isto não significa dizer que é sua tarefa única. Mulheres negras e brancas vivem de forma diferente e desigual problemas semelhantes. Nossas leituras e vivências nos levam a refletir, por exemplo, por que historicamente os movimentos feministas têm acreditado no encarceramento como forma de responsabilizar agressores e barrar a violência contra as mulheres, sem questionar que o encarceramento, estruturado a partir de premissas do sistema escravista, é usado para confinar, punir e mais ainda, vingar um ódio racista e de classe contra homens negros? Em que medida isto afeta a vida das mulheres negras que têm filhos, companheiros, netos, sobrinhos, pais encarcerados? Que outras alternativas construir para responsabilizar homens pela violência sexista, para além dos muros da prisão? Em relação aos
direitos reprodutivos das mulheres, como não considerar que o Estado brasileiro adotou políticas de esterilização em massa das mulheres negras e empobrecidas como forma de reduzir o contingente populacional, violando seu direito de decidir sobre o seu corpo? Como desconsiderar que a maioria
das mulheres que abortam não têm condições de fazê-lo de forma segura, são as negras e por isso sangram, sentem dores no silêncio mesmo quando gritam e estão sujeitas a infecções que não raras vezes levam a sua morte?
Elaborar estes questionamentos, redefinindo os sujeitos, recontando a História, definindo o que é central para as mulheres negras na sua autoorganização foi e é possível a partir das feministas negras, gerando pelo menos duas contribuições:
1. Identificando os limites e as contradições do feminismo hegemônico, que acabou por reduzir sua crítica ao patriarcado e às desigualdades entre homens e mulheres, sem, no entanto, considerar as opressões históricas de raça/etnia e de classe social;
2. Deixando de considerar, criticar e combater o racismo, o etnocentrismo e as desigualdades econômicas entre homens e mulheres, entre homens negros e mulheres brancas, mas também entre as próprias mulheres.
Essas contribuições ajudam a desvelar que mesmo o feminismo hegemônico, mesmo que pretensamente radical, constitui-se como teoria e movimento racista. Explicitar as contradições e os limites do feminismo hegemônico a partir de questionamentos como estes é tarefa política necessária e urgente. Porém, seria um equívoco considerar que os feminismos negros encerram seu papel emancipatório aqui. Se assim fosse, ao elaborarmos a crítica ao feminismo hegemônico e desconstruí-lo estaríamos rompendo com o processo de
dominação a nós imposta, como herança maldita do processo de colonização e escravização e que a cada período histórico se atualiza. Mas nosso projeto político é muito maior. Ele se propõe a romper com as opressões e explorações fundamentadas na raça, no patriarcado, na classe social, na sexualidade que
estruturam as desigualdades sociais, políticas, econômicas, culturais, ambientais… Opressões e explorações
que se materializam a partir da ação de organizações públicas e privadas que afetam diretamente a vida das mulheres negras, em áreas como a educação, o mundo do trabalho, o acesso a bens duráveis e às tecnologias digitais, a situação econômica e a violência, como apontado pelo Dossiê de Mulheres Negras (2013).
Nesse debate, uma pergunta nos inquieta:O que é mais determinante na definição das desigualdades? Raça? Classe? Gênero? Sexualidade? A imbricação da raça, classe, gênero e sexualidade é tão profunda e complexa, na determinação da vida das mulheres negras e nas nossas condições de vida, que impossibilita a dissociação desses elementos para uma leitura mais ampla e coerente com a realidade, mesmo que para efeitos de análise, bem como uma suposta hierarquização de cada uma dessas opressões. Essas opressões são estruturantes das desigualdades socioeconômicas e se articulam de forma sistemática e interdependente.
Essa interseccionalidade não ocorre apenas no campo das opressões, mas também das nossas possibilidades de resistência e na nossa capacidade de criar e recriar a vida, o mundo, as relações, a nossa presença nele,
com nossa militância, mas também com a nossa arte, produção acadêmica, memória e sabedorias ancestrais, domínio das ervas e processos de cura, jeito de fazer política, preservação dos territórios tradicionais, nas
religiões de matrizes africanas…
No atual contexto de retrocessos, de recrudescimento da violência racista e sexista, fortalecimento do capital, o se apropriar e mercantilizar nossos recursos naturais e nossa mão-de-obra para prestar serviços e produzir aquilo que jamais teremos acesso; onde oito homens brancos e ricos detêm uma renda maior do que 50%
da população mundial mais pobre; e do avanço do conservadorismo, os feminismos negros têm um dever histórico de fazer o enfrentamento com vozes dissonantes e práticas que podem gerar uma desordem na
estrutura racista, sexista, heteronormativa e capitalista da sociedade. Que a partir da nossa auto-organização, nossas vozes dissonantes, nossas palavras de desordem e nossa rebeldia inspirem e façam prevalecer a
liberdade, a cor, a alegria, o prazer, a justiça!