Texto: Catiane Cinelli, Noeli W. Taborda e Sirlei Gasparetto, militantes do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC)
O Movimento de Mulheres Camponesas – MMC tem seu início na luta pelos direitos que historicamente foram negados às mulheres camponesas, muitos deles permanecem negados: o salário maternidade; a aposentadoria para as camponesas em condições que reconheceçam a dupla jornada de trabalho; a condição de seguradas especiais; o reconhecimento de nós, camponesas, como trabalhadoras; a importância de nosso
trabalho no campo ser visto e valorizado. Foi a partir dessas lutas que nos entendemos como feministas. A construção do MMC possibilitou e possibilita o nosso despertar em relação a nossa própria valorização como gente, como mulher camponesa, como portadoras de direitos e vontades.
Mesmo que, quando o MMC estava sendo criado, a palavra feminismo não aparecia, hoje entendemos que a luta pelo reconhecimento do nosso valor e do valor do nosso trabalho é uma luta feminista. Temos buscado nos últimos anos aprofundar nosso conhecimento sobre o feminismo, mesmo sabendo que a nossa luta é feminista, precisamos saber de que feminismo falamos.
Nós, mulheres, não somos iguais e não vivemos uma realidade única ou uniforme, nos diferenciamos em classe, em raça, emetnia, em credos. Mesmo dentro da classe trabalhadora, temos diferenças que não nos dividem, mas que nos colocam emrealidades diferentes e disso discorrem necessidades diferentes. Somos mulheres da roça, das florestas, das águas e da cidade. Por isto, entendemos e achamos positivo falar em feminismos, pois o feminismo não pode esconder nossas diferenças, mas precisa trazê-las à tona, para nos fazer mais fortes.
Nosso primeiro passo na construção do feminismo foi possível a partir do primeiro momento em que, como mulher camponesa, enfrentamos o desafio do “sair de casa” em busca de nossa própria libertação. O sair de casa, que em outras realidades pode parecer tão cotidiano, para nós, camponesas, representa o grande
inicio da mudança. Somente quando nós começamos a sair de casa – para nos reunir, organizar as companheiras, discutir a realidade que todas nós vivenciamos e decidimos lutar contra isso – foi que
começamos a consolidar nosso movimento. Estudando sobre o papel da mulher na sociedade, descobrimos que o lugar de submissão e subalternidade que nos dão hoje foi construído pelo patriarcado e aprofundado
no capitalismo, ou seja, foi construído pelos donos do poder e, desta forma, não é natural.
O feminismo que estamos construindo parte da análise e discussão do que vivenciamos, enquanto mulheres, em todas as dimensões da vida. No nosso caso de camponesas, as dimensões da vida compõem a produção
de alimentos saudáveis, a construção da agroecologia, o conhecimento do nosso corpo, dos nossos direitos, a luta contra o agronegócio, sendo esses, entre outros os elementos da construção do feminismo camponês e popular.
A partir da construção do movimento, vamos percebendo que nós mulheres sofremos diferentes formas de opressão, dominação e exploração. Na imposição capitalista/patriarcal/racista, mesmo trabalhando em toda a nossa unidade de produção, a terra que temos, só é entendido como nosso a horta, os pequenos animais, o que for possível produzir no entorno de casa. Nos falta poder de decisão. Não podíamos vender, nem mesmo a venda da ‘nossa’ produção nos era permitido realizar, pois no patriarcado, o poder de decidir e administrar o dinheiro compete aos homens.
Na lógica patriarcal, aos homens pertence o espaço público, enquanto a nós, mulheres camponesas, o que resta é o espaço privado: a casa e arredores, os pequenos animais, a produção e preparação da alimentação, as tarefas que estão ligadas aos cuidados. Mas é na construção do feminismo camponês e popular que nós, do MMC, temos desconstruído esta realidade e buscado demonstrar que o cuidado é tarefa de todos, pois faz parte da vida. Todos fomos cuidados e um dia precisaremos cuidar e depois seremos cuidados novamente.
Ser mulher camponesa feminista e popular é estar em atitude vigilante e atenta na luta pela própria valorização do ser mulher. Essa ligação que temos com a terra, com a agroecologia, a partir de nossa participação no Movimento, vai adquirindo uma identidade nova. No lugar da submissão, a determinação. No lugar de dominação do lar, agora nos identificamos como trabalhadoras, não mais submissas, obedientes, servis. Não mais objetos, mas sim sujeitos da própria libertação. É tudo isso que nos identifica como feministas. Mas é mais que isto.
Nesse processo, então, vamos entendendo que o feminismo camponês e popular faz parte do nosso projeto de sociedade que, além de tratar a mulher como gente – respeitando suas formas de viver a afetividade, a sexualidade, nossa formade produzir – luta contra todos os tipos de violência e pela construção de uma nova
sociedade. Quando dizemos que nosso feminismo camponês é popular, damos uma mensagem clara, que ele é composto por mulheres da classe trabalhadora e que faz o enfrentamento ao capitalismo – que no campo hoje é representado pelo agronegócio. Trata-se de um projeto de sociedade que, na prática cotidiana, busca construir a agroecologia como modo de vida e referência para a construção de outras relações.
No feminismo camponês e popular, a nossa luta pela preservação e utilização das sementes crioulas, das plantas medicinais se mostram não apenas como defesa da natureza, mas vai além disso, é uma luta
anticapitalista e feminista, pois reconhece e valoriza o conhecimento acumulado das mulheres e desvalorizado por este sistema capitalista/patriarcal/racista.
Outro elemento central do feminismo camponês e popular é a participação política da mulher, sendo esta participação condição para a superação da violência em suas diversas faces, seja ela relacionada à vida doméstica, ao modelo químico de padronização dos alimentos, que retira o direito da produção natural, invade as unidades da produção, criminaliza os conhecimentos da mulheres (benzedeiras, curandeiras, entre outras).
A construção do feminismo camponês e popular pressupõe uma mulher que ama a vida, arrebenta as correntes e amarras de seu tempo e luta pela libertação de todas as formas de escravidão, violência e opressão. E, em luta, esta mulher feminista vai construindo a transformação da sociedade sempre em defesa da vida das mulheres, mesmo que isto ocorra lentamente, mas segue evoluindo gradativamente.
O feminismo camponês e popular liga nossas lutas principais em uma só, a luta classista, a luta feminista e a luta contra o modelo do agronegócio. Uma das ações mais importantes que representa esta construção
foi a ação das mulheres camponesas contra a Aracruz Celulose em 2006. Nós, mulheres, questionamos as consequências dos pinos e eucaliptos substituindo a possibilidade de uma produção de alimentos capaz de
garantir vida saudável, questionamos o deserto verde. E, com esta ação construída pelas mulheres, demonstramos a capacidade das mulheres em pensar, organizar, mobilizar e fazer enfrentamentos.
O feminismo camponês e popular que o MMC vem construindo tem rompido com barreiras e provado que a luta das mulheres é fundamental para o avanço da luta de classes. Avançamos na luta feminista e socialista e acreditamos que as mulheres se assumirem numa organização camponesa e feminista é uma afronta direta ao sistema capitalista e patriarcal.
O feminismo camponês e popular é construído por nós, mulheres camponesas participantes do MMC e pelas mulheres camponesas, indígenas, extrativistas organizadas nos movimentos que compõem a Coordenadoria Latino-americana de Organizações do Campo – CLOC. E está presente na luta e construção diária pela libertação e mudança nas relações entre as pessoas e destas com a natureza. Além de ser o caminho para a transformação social de uma sociedade capitalista e patriarcal para uma sociedade humana, justa, igualitária e solidária entre todos os seres vivos.