Existe um jeito de fazer educação feminista na internet??

Publicação da Universidade Livre Feminista resgata histórico do uso pedagógico da internet enquanto conta sua própria história de décadas de experiência em educação a distância (EAD) feminista e popular. Com esta publicação o SOS Corpo encerra sua participação nesse espaço.

Antes da primavera feminista, organizações de mulheres que surgiram no processo de redemocratização do país, provocadas pelo crescimento da internet, juntaram-se para desenhar possibilidades de usos das tecnologias para fazer feminismo no universo virtual. Em 2009 o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) criou a Universidade Livre Feminista e logo convidou o SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia e o Cunhã Coletivo Feminista para juntarem-se à iniciativa. Um grupo de militantes de movimentos feministas integrou a rede de maneira orgânica como pesquisadoras, educadoras, comunicadoras ou gestoras de projetos da Universidade durante toda a sua existência. De maioria jovem, as colaboradoras eram mulheres que escreviam para blogs feministas, tinham experiência com artes, eram professoras em outras Universidades, mas apesar da diversidade de suas experiências, tinham em comum um entusiasmo com a ideia de construir um portal para educação feminista online. 

Foto do último encontro geral da rede de colaboradoras, secretaria executiva e organizações dinamizadoras. Dezenove mulheres estão posando em duas fileiras, algumas sentadas outras de pé, todas usam máscara.

Quando a gente chegou na internet, era tudo mato. 

Quando as experiências de pedagogia feminista online eram raras e o próprio uso da internet era bastante limitado, a Universidade Livre Feminista foi o espaço de convivência presencial de onde saíram ideias sobre como produzir espaços de compartilhamento de saberes, construção coletiva de conhecimento, com metodologias populares para mulheres na internet. Além de ser o espaço de reflexão sobre as potencialidades e limitações da tecnologia e das metodologias. Hoje são inúmeros os cursos online sobre feminismo, de diversas origens, que atraem milhares de mulheres. Muitos ensinam sobre uma teoria, como se fosse única, sem nenhuma reflexão sobre como os princípios do feminismo impactam as práticas de ensino a distância. Para a Universidade Livre, essa sempre foi a nossa principal questão. 

Depois de 13 anos de experiência, a sistematização da história que vivemos coletivamente vem à público. E é com esta publicação que o SOS Corpo anuncia a sua saída da Universidade Livre Feminista. Não é por acaso que encerramos nossa participação com um livro de sistematização do processo: na publicação, explicamos a importância que essa prática teve para a existência e permanência da universidade no tempo e no espaço, além de detalhar nossa perspectiva política sobre a prática de sistematização, que se tornou um dos pilares do nosso fazer pedagógico. As sistematizações nos ajudam a pensar coletivamente, pois reúnem de maneira sintética e descritiva, as ideias desenvolvidas em um determinado processo. Quem chega pega o bonde andando, mas consegue trilhar o caminho junto. Feminismo que não é feito para alguém, mas com sujeitos políticos que possuem histórias, experiências, vivências e contribuições. 

Na publicação, além das principais ações educativas, tipo de atividades e ações realizadas enquanto grupo, elencamos os princípios que foram criados a partir das nossas experiências pedagógicas. Afinal, o que diferencia um curso qualquer disponível na internet dos cursos feministas propostos pela Universidade Livre Feminista? Para nós, que sustentamos esse projeto, não é somente o uso de ferramentas tecnológicas participativas e acessibilidade que conformam uma pedagogia feminista. É preciso somar o reconhecimento das condições de vida das mulheres e valorização de suas vivências cotidianas na cena pedagógica com metodologias participativas, uso de diferentes linguagens e suportes para dar vazão às dimensões diversas – não apenas racionais – do aprendizado. Além disso, vimos como é importante criar um espaço seguro para fomentar o debate de ideias e posições políticas, gerando possibilidade para que o conhecimento seja construído de maneira coletiva, a partir inclusive de compartilhamento de experiências pessoais. 

Déborah Guaraná, educadora do SOS Corpo e integrante da Universidade Livre Feminista, segura a publicação “Trilhas de uma pedagogia feminista na internet”. Ela é uma mulher ranca de cabelos cacheados, usa um casa cinza, por cinza de uma blusa branca e vermelha e está na frente de uma parede com vários quadros.

Longe de serem apresentadas como uma grade de disciplinas, as metodologias feministas que criamos não são um manual reproduzível a um clique de distância, nem baseados em likes em videozinhos virais e expressão de emoções no formato de botões, são uma criação permanente com necessária adequação a cada tema a ser abordado e ajustável de acordo com os objetivos da atividade de formação. Para atuar com mulheres de movimentos sociais, as metodologias precisam ser refletidas em sua relação com a internet e tecnologias, isso é crucial, mas há outras camadas, como o lugar ocupado pelas educadoras. É preciso ainda considerar a história e o saber já acumulado também coletivamente por elas em suas organizações e movimentos em que militam – não há como desconsiderar suas lutas, tal qual suas histórias de vida. 

E como garantir os princípios fundantes da educação popular feminista na experiência de educação a distância? Vários desafios foram enfrentados durante essa década. Na EAD feminista realizada através da internet enfrentamos um paradoxo constante: fomentar a organização da luta das mulheres por direitos humanos básicos através de um canal que exige acesso a um direito negado à grande maioria delas: a comunicação. As desigualdades no acesso a internet e o baixo letramento digital das mulheres não precisam ser um empecilho, mas precisam ser consideradas. Algumas das soluções que criamos foi instaurar a participação em dupla, trios e até mesmo coletivos políticos já formados. Investimos bastante em processos híbridos, que intercalam momentos presenciais e online, e processos em camadas, realizado inicialmente com um grupo de militantes que posteriormente facilitam conosco um processo educativo online com o seu coletivo político. Vários movimentos sociais, partidos políticos, pequenos coletivos, sindicatos, organizações de ensino, fizeram curso conosco. 

A publicação de 13 anos da Universidade é uma elaboração coletiva, tal qual a maioria das outras ações que fizemos durante esses anos. O texto é fruto da sistematização de alguns dias de debate entre as colaboradoras mais ativas, somado ao trabalho da Secretaria Executiva de organização de toda a memória institucional. Todos os cursos, materiais pedagógicos, roteiros de aprendizagem, diálogos virtuais e sistematizações diversas podem ser encontrados no site da Universidade. Com esse processo o SOS Corpo encerrou a sua participação como uma das organizações responsáveis pela manutenção e organização operacional da Universidade Livre Feminista. Com um amplo plano de formação feminista institucional, o Instituto segue atuando no campo da pedagogia popular feminista, realizando atividades presenciais, online e híbridas.


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ter ago 1 , 2023
Depois de tanta luta, de campanhas fundadoras e transformadoras como “quem ama não mata”, de tantos debates sobre a impertinência do argumento de legitima defesa da honra, foi preciso esperar até hoje, 1 de agosto de 2023, para que o Supremo Tribunal Federal (STF) determinasse ilegal o uso deste argumento por advogados na defesa de assassinatos de mulheres. Ainda teremos de lidar com uma desigualdade residual que insiste em culpabilizar a mulher da sua própria morte, pois isto está entranhado na cultura institucional e segue difundido pela mídia, que se revitaliza no sensacionalismo policial.