Como lutar contra o feminicídio no Brasil, hoje? 

Escrito por Analba Brazão Teixeira, Mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e educadora do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia. Revisado por Dayane Dantas, Professora de Comunicação da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte. Edição de Déborah Guaraná, comunicadora do SOS Corpo.

Ativistas feministas defendem direitos das mulheres durante a passeata Marcha das Vadias na praia de Copacabana (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Depois de tanta luta, de campanhas fundadoras e transformadoras como “quem ama não mata”, de tantos debates sobre a impertinência do argumento de legitima defesa da honra, foi preciso esperar até hoje, 1 de agosto de 2023, para que o Supremo Tribunal Federal (STF) determinasse ilegal o uso deste argumento por advogados na defesa de assassinatos de mulheres. Ainda teremos de lidar com uma desigualdade residual que insiste em culpabilizar a mulher da sua própria morte, pois isto está entranhado na cultura institucional e segue difundido pela mídia, que se revitaliza no sensacionalismo policial.

O Feminismo Brasileiro e mundial continua alardeando que o machismo e a misoginia matam todos os dias. Chega a ser repetitiva nossa afirmação de que a violência contra as mulheres é a forma encarnada da opressão patriarcal e que a sua expressão se concretiza através da combinação das ideologias conservadoras, machistas e misóginas, materializadas nas relações sociais de poder, mas ainda nos cabe aprofundar este tema.

Pois é necessário encarar que a motivação central da violência contra as mulheres é a desigualdade de gênero presente no nosso cotidiano, nas relações sociais que colocam a nós, mulheres, em lugares de subalternidade. 

E quando recusamos essa normativa, muitas vezes a violência surge como resposta, mantendo a ordem estrutural que nos secundariza. Por isso nosso enfrentamento é contra esta cultura patriarcal e racista que está ainda entranhada na nossa sociedade. 

Apesar da luta constante e ininterrupta do movimento feminista nestes últimos 45 anos, é bastante desalentador constatar que, em apenas 5 meses de 2023 – janeiro a junho, foram divulgados na imprensa, 599 feminicídios consumados e 263 tentativas de feminicídio. Um total de 862, entre tentativas e consumação. Sabemos que nem todos os casos chegam à imprensa e, infelizmente, podemos dizer que este número é, na realidade, muito maior, dadas as subnotificações.

“De janeiro a junho, foram divulgados na imprensa um total de 599 feminicídios consumados e 263 tentativas”

Estes dados foram divulgados pelo LESFEM (Laboratório de Estudos de Feminicídios), no dia 16 de julho de 2023. São informações recolhidas por um monitoramento das notícias de jornais em todo território nacional. Notícias que foram veiculadas com base em 537 municípios do país. Apesar de ser um crime que possui dados alarmantes e é frequentemente visto nos noticiários, ainda há uma série de mitos em torno do feminicídio, que dificultam sua compreensão e enfrentamento. 

Por exemplo: o senso comum entende os feminicídios como crimes que ocorrem com mulheres jovens, o que é uma falácia. Pode até ser que esta faixa etária esteja mais vulnerável, como mostra o levantamento do LESFEM.  Mas, há casos de feminicídio contra uma menina de apenas 27 dias de vida e mulheres com até com 83 anos de idade. Esta criança morreu após ser estuprada pelo próprio pai em Araruama, região dos lagos do Rio de Janeiro. A invisibilidade do feminicídio como um crime estruturado no patriarcado, portanto, um crime de gênero contra as mulheres, dificulta que se reconheça a sua magnitude. 

Embora o maior índice desta última pesquisa aponte as mulheres adultas com faixa etária entre 25 e 36 anos de idade como alvo mais notificado, estes dados também revelam que todas as mulheres, independentemente da idade, podem sofrer violência de gênero. Eles também mostram que em torno de 75% dos casos deste crime são categorizados como feminicídio íntimo (quando o algoz é o marido, ex-marido, namorado ou ex-namorado da vítima). 

E, quando lemos as notícias dos jornais, a grande maioria dos casos, como apontam muitas pesquisas, ocorre quando a mulher decide se separar ou romper com a relação. Então vem a nossa pergunta: Quando vamos conseguir que as mulheres não sejam assassinadas por decidirem não estar mais em um relacionamento, muitas vezes relacionamentos violentos e com risco de morte para a mulher? Quando de verdade as mulheres poderão viver livremente e com autonomia?

É preciso uma política pública para os órfãos de feminicídios

Costumamos lembrar que estas mulheres não são só números: elas têm nome e sobrenome, amigos, família, muitas delas são mães e deixam seus filhos. Segundo esses dados, apenas no Brasil, no prazo de cinco meses, 154 das mulheres assassinadas deixaram 276 crianças e adolescentes órfãos do feminicídio. Tais crianças, além de órfãs, ficam com o trauma da perda violenta, e, pior, muitos destes assassinatos foram na presença delas, o que demonstra cada vez mais a crueldade que devasta também a infância. Em alguns casos, inclusive, as crianças são assassinadas junto com a mãe. 

Em Pombos, região agreste de Pernambuco, em março de 2023, uma jovem de 18 anos, e seu filho de apenas 3 anos de idade foram mortos pelo então companheiro e pai da criança. Morreram por estrangulamento, asfixiados. Em Olinda, região metropolitana de Recife, em fevereiro de 2023, uma mulher foi assassinada na frente de suas duas crianças, uma ainda de colo. O assassino chegou a pedir para que ela colocasse a criança no chão para matá-la. O que será desta infância, ainda não pensada e enfrentada como uma consequência do feminicídio?

Muitas crianças viverão a vida reconhecendo nos pais os assassinos de suas mães. Ficam órfãos de pai e de mãe. As crianças e adolescentes são vítimas secundárias da violência contra as mulheres, principalmente quando o caminho final é o feminicídio. O feminicídio transforma a vida de uma família e, quando as vítimas têm filhos, este impacto é ainda maior e na maioria das vezes quem termina cuidando dos órfãos são as mães das vítimas, o que reflete também a cultura machista.

Na maioria das vezes quem fica com o cuidado das crianças é a família materna. A avó e as tias precisam adaptar-se para acolher as crianças, lidar com o luto próprio e o destas que perdem também a referência das suas casas. Quando são muitas as crianças, às vezes são separadas, passam a ser cuidadas por mais de uma família.

Precisamos exigir que o Estado crie políticas públicas voltadas para estes órfãos que são atingidos diretamente ao perderem suas mães para a violência. Para isto, é necessário que tenhamos dados oficiais sobre os órfãos de feminicídio, para podermos pensar políticas eficazes de atendimento para estas crianças.

Nos dados levantados pela LESFEM, não aparece quantas destas mulheres são negras. No entanto, sabemos, através dos dados anuais, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que as mulheres negras são as mais atingidas, mais vulneráveis à violência pelo racismo que sofrem e pela situação de pobreza em que se encontram, revelando, assim, que a violência contra as mulheres negras tem crescido.

Esses dados, contudo, ainda não contemplam os índices de lesbocídio e transfeminicídio. Não se reconhece, até o momento os assassinatos das mulheres trans como transfeminicídio, um conceito em disputa. E em relação às mulheres com deficiência também há uma lacuna.

Nesses termos, a luta pelo fim do feminicídio precisa ser analisada numa perspectiva interseccional. São diversas as vulnerabilidades que permitem a violência contra as mulheres e que culminam com o feminicídio. Temos que considerar classe social, identidade de gênero, capacitismo, geração, raça e etnia. Estas especificidades devem ser observadas como elementos que distinguem o feminicídio, tal como previsto nas Diretrizes Nacionais Feminicídio: investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres (2016). 

Um outro problema que verificamos, mesmo que previsto nas Diretrizes, acima citadas, é a dificuldade de se notificar os crimes contra as mulheres como feminicídio. O mesmo ocorre com o transfeminicídio e lesbocídio. Os assassinatos de mulheres no contexto de tráfico, ou de mulheres lésbicas, trans, travestis e profissionais do sexo, não são considerados feminicídio, mas estas mulheres morrem em função de sua desigualdade de gênero e suas relações sociais, agravadas nesses contextos.  Falta capacitação dos operadores da justiça para reconhecer estes assassinatos como feminicídios.

Situação da Violência contra as mulheres em Pernambuco 

Os dados dos feminicídios em Pernambuco também aparecem no levantamento feito pela LESFEM, que traz o número de 20 feminicídios. Um dado que não condiz com a realidade. Ocorreram 29 feminicídios entre os meses de janeiro a junho, segundo levantamento feito por nós nos jornais locais. Só durante o período de carnaval, no mês de janeiro, foram 10. Até maio de 2023, em apenas 4 meses em Pernambuco,  21. 435 mulheres denunciaram ter sofrido algum tipo de violência. Esse é o número de denúncias notificadas, mas sabemos ele é ainda muito inferior, pois a fragilidade da rede de atendimento reflete na subnotificação. Muitas mulheres ainda não têm a coragem e o apoio necessários para denunciar as agressões sofridas por elas.

Estamos no mês de julho de 2023 e já ocorreram mais três feminicídios, em Jaboatão e em Olinda, ambos municípios da Região Metropolitana do Recife. Um deles que é categorizado como feminicídio por conexão (o caso da mãe e filha) e outro um feminicídio–suicídio, quando quem comete o feminicídio também se suicida. Somando 32 feminicídios no primeiro semestre de 2023 no estado de Pernambuco.

Temos visto que em muitos destes casos as mulheres prestam queixas e em alguns, inclusive, estão com medidas protetivas de urgência. No caso do feminicídio duplo, ocorrido no dia 5 de julho de 2023, em Jaboatão dos Guararapes, de mãe e filha – a mulher, que tinha 25 anos, havia feito Boletins de Ocorrência e estava com medida protetiva de urgência. No entanto, ela e sua mãe de 46 anos, foram assassinadas em frente ao prédio onde moravam. O crime foi cometido pelo ex-namorado,  uma relação de menos de 5 meses. Mortes que poderiam ser evitadas se as medidas protetivas de urgência fossem realmente cumpridas. 

Quem é o responsável por estas mortes? Diretamente é o feminicida, no entanto, o Estado também pode ser responsabilizado por não ter protegido a vítima. Estes dados revelam como o problema do assassinato das mulheres precisa vir à tona. 

Neste sentido há várias iniciativas do Movimento Feminista em construir observatórios que possam dar visibilidade a estes dados. Como é o caso da Lupa Feminista, do Observatório do Feminicídio em Rondônia e no Ceará. Nos estados de Rondônia e Rio Grande do Sul há iniciativas no âmbito da Campanha Nacional Levante Feminista Contra o Feminicídio, lesbocídio e transfeminicídio. 

No Estado de Pernambuco, essa Campanha agrupa 47 organizações e movimentos feministas, sendo o SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, uma das organizações integrantes desta iniciativa. Está presente em 22 Estados brasileiros, contando com a participação de mais de 300 organizações feministas e desenvolveu várias ações nos seus dois anos e meio de existência. 

Em Pernambuco, atuamos de forma processual e, em outubro de 2022 desencadeamos um processo junto ao Ministério Público de Pernambuco (estratégia da Campanha em nível nacional), com a realização de um Seminário Estadual e com 6 Seminários nas regiões de Pernambuco (Zona da Mata Sul, Zona da Mata Norte, Agreste, Sertão de Pajeú, Sertão do Araripe e Região Metropolitana). Nestes espaços, escutamos as mulheres, suas principais demandas e questões, num processo que culminou com uma audiência pública estadual, que aconteceu em Recife em 29 de abril de 2023 e teve o objetivo de avaliar a efetivação das políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres.

Na ocasião, apresentamos um documento crítico sobre a situação das políticas de enfrentamento ao feminicídio, com reivindicações de melhorias na qualidade dos serviços e dos equipamentos direcionados às mulheres em situação de violência.  

Nesse documento destacamos a necessidade do Estado de Pernambuco criar um Plano Integrado de Enfrentamento ao Feminicídio, em caráter de urgência, com ações bem definidas e delineadas no âmbito da prevenção, do acolhimento das mulheres vulneráveis e da punição aos agressores, como consta na Lei Maria da Penha, incluindo estudos e pesquisas, monitoramento e orçamento.

O Ministério Público de Pernambuco, realizou uma audiência de continuidade, no dia 14 de junho de 2023, em que a Secretaria Municipal da Mulher e a Secretaria Estadual da Mulher, como também a DPMUL -Departamento de Polícia da Mulher e o SDS – Secretaria de Desenvolvimento Social,  não conseguiram responder às questões que colocamos no nosso documento crítico, sob a justificativa da falta de orçamento.  Nesta audiência, – DPMUL colocou a dificuldade por falta de pessoal; das 15 Delegacias Especializadas da Mulher – DEAMs, apenas 6 funcionam 24 horas e finais de semana, como determina a Lei nº 14.541/2023, sendo que, na citada pesquisa da LESFEM, há o dado de que a maioria dos feminicídios ocorre no dia de domingo. Isso realmente é muito preocupante. É necessário e urgente que todas as Delegacias estejam abertas as 24 horas.

Com esta situação gritante demonstrada nos dados da violência contra as mulheres em Pernambuco, ainda não temos um Plano Estadual de Enfrentamento à Violência contra a Mulher e o Combate ao Feminicídio, Transfeminicídio e Lesbocídio. O Estado precisa se responsabilizar e definir recursos suficientes para implementar este plano que nos disseram que está em Construção. É URGENTE e nós vamos exigir. Esta é uma tarefa e responsabilidade do estado.   

Para nós, do SOS Corpo, esta luta pelo fim da violência contra as mulheres tem sido algo que tem acompanhado a nossa existência. Compreendemos que a violência contra as mulheres é um instrumento de dominação e exploração patriarcal e racista. Por isso, a importância de estarmos na construção permanente desta luta, apoiando, aportando e participando efetivamente da campanha pelo fim do feminicídio e em outras iniciativas do movimento para transformar esta realidade que tem ceifado a vida de tantas mulheres. 

Como está dito no documento crítico da Campanha Feminista contra o Feminicídio, Lesbocídio e Transfeminicídio em PE: A prevenção à violência contra as mulheres e ao feminicídio exige um grande esforço governamental, tanto para transformar a cultura e as mentalidades quanto as práticas e as regras institucionais do próprio Estado e do setor privado. Transformar cultura, mentalidades, práticas e regras exige intersetorialidade, interseccionalidade, continuidade/constância, capilaridade, formação continuada de servidores/as públicos/as e avaliação/monitoramento da efetividade de sua ação para que sejam efetivas, ou seja, que produzam um efeito real e duradouro no espaço/tempo.

Com isso, queremos enfatizar que esta é uma das lutas prioritárias para o Movimento Feminista. Precisamos que a sociedade se revolte também, como nós nos revoltamos, e que o Estado Brasileiro priorize a vida destas mulheres. Nós, movimento feminista, estamos atentas, temos construído entre nós estratégias de luta e de resistência coletiva. Temos nos colocado contra todas as formas de violência e vamos lutar até o fim para que dados, como estes relatados aqui, não sejam normalizados. Queremos todas/todes/ vivas!

 

Referencias: 

LESFEM – Laboratório de Estudos de Feminicídios- julho de 2023  

Documento Crítico sobre a política de enfrentamento ao feminicídio, lesbocídio e ao transfeminicídio em Pernambuco. Junho de 2023

Diretrizes Nacionais Feminicídio: investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres (2016)

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