Para 2022: mulheres e Lei Maria da Penha protegidas!

Para 2022: mulheres e Lei Maria da Penha protegidas!

Os desafios atuais consistem em proteger as mulheres negras, quilombolas, indígenas, do campo e das florestas, além de aprimorar e implementar os mecanismos de ação

*Por Myllena Calasans de Matos e Fernanda Papa. Artigo originalmente publicado na seção Opinião do Nexo Políticas Públicas, em 13 jan 2022.

Maria da Penha costuma mencionar algo que sempre escuta e a emociona em atividades pelo fim da violência contra as mulheres: “Eu fui salva pela sua lei!”. A Lei Maria da Penha (lei n. 11.340/2006), é o principal instrumento para a prevenção, atendimento às vítimas e punição da violência doméstica contra mulheres no Brasil. Ao relembrar o percurso até sua aprovação, a jurista Silvia Pimentel, uma das protagonistas da construção da lei, comentou: “O objetivo era fazer uma lei para mudar o paradigma sobre violência contra a mulher no Brasil” 1. Missão quase cumprida no texto da lei. Fora ainda falta um tanto.

Com preocupação, os movimentos feministas alertam para o fato que a lei existe para prevenir violência e assistir as mulheres vítimas, com políticas públicas que precisam de orçamento e execução adequados. Ambos têm estado debilitados, a ponto de o Ministério Público Federal abrir, em outubro, inquérito para apurar os motivos da baixa execução por parte do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. O investimento em equipamentos de acolhimento e assistência psicológica, jurídica e social não pode ser substituído, por exemplo, por aumento de punição aos agressores.

O pouco que o poder público tem feito para implementar a LMP tem alcançado em maior grau as mulheres brancas, de classe média e das grandes cidades

Se houve algo positivo em relação às onze alterações que a LMP sofreu a partir de 2017, salva-se a lei n. 13.880/2019 que permite a apreensão de arma de fogo sob posse de agressor em casos de violência doméstica: tanto por garantir maior proteção para as mulheres, como por confrontar o discurso e as medidas legais adotadas pelo atual governo federal para incentivar pessoas comuns a adquirir armas, em meio ao crescente índice de violência contra as mulheres por arma de fogo.

A lei n. 13.386/2019 poderia ser uma boa notícia, por querer visibilizar as mulheres deficientes ou as que se tornam deficientes por violências sofridas, como a própria Maria Penha, vítima de tentativa de homicídio em 1983. Entretanto, nessa e nas demais alterações feitas à LMP, o Parlamento repete a regra de modificar por lei o que poderia ser feito por decreto ou norma técnica, além de concentrar a atenção na área de segurança pública, atribuir mais competência para juízes e promotores, aumentar penas e criar novos crimes.

Nesse agir, dissipa esforços ao invés de direcioná-los para garantir orçamento e cobrar execução de políticas públicas e respostas, por exemplo, ao que hoje constitui um dos maiores desafios da lei – proteger com prioridade as mulheres negras, quilombolas, indígenas, do campo e das florestas. O pouco que o poder público tem feito para implementar a LMP tem alcançado em maior grau as mulheres brancas, de classe média e das grandes cidades. Levantamento do Consórcio Lei Maria da Penha em 2020 mapeou cerca de 300 projetos de lei alterando a Lei de alguma forma 2. Entretanto, não foram identificadas iniciativas para responder ao desafio de aperfeiçoar os mecanismos previstos na lei para melhor proteção das mulheres negras e indígenas, especialmente.

O Atlas da Violência de 2021 mostra que de 2009 a 2019 foram mais de 50 mil brasileiras assassinadas, 67% delas negras. A violência do racismo e baseada no gênero mata mais e o racismo institucional é “cúmplice” disso, como tem denunciado o movimento de mulheres negras há anos. “Estes dados demonstram como o racismo e a pobreza operam na violência contra as mulheres negras e pobres, tanto nos espaços urbanos, na periferia, quanto no interior. Elas têm mais dificuldade de acionar os serviços públicos, como as delegacias”, explica Analba Teixeira 3, educadora do SOS Corpo e militante feminista integrante do Consórcio Lei Maria da Penha.

Segundo ela, há que se defender a LMP e ao mesmo tempo ver que a violência contra as mulheres não ocorre de forma homogênea: “Há especificidades de acordo com os contextos em que estão inseridas. A violência contra negras, indígenas e quilombolas carrega o racismo e o patriarcado. Estas mulheres têm as piores condições de vida entre todas as brasileiras, o que as tornam mais vulneráveis às violências das relações afetivo-conjugais e às violências no espaço público”, explica Analba, reforçando as razões para que a lei seja aperfeiçoada e de fato mais efetiva para todas as mulheres.

Uma das autoras do texto da LMP, a jurista Leila Linhares reconhece que o tema deve ser tratado com centralidade: “É uma questão estruturante a ser nomeada, e sabemos que o sistema de Justiça atua com estereótipos”. Carmen Campos, especialista em criminologia feminista que também contribuiu com o texto original da lei, reforça: “A LMP deveria tratar a questão racial de forma muito mais profunda, com alteração legislativa, mencionando isso expressamente”. Carmen ressalta ainda o drama das mulheres que se tornam deficientes por causa das violências que atingem seus corpos. “Quantas sofrem por serem deficientes, em decorrência de violências, [muitas vezes] por serem lésbicas, trans e negras?”

Para se aproximar destas mulheres e reforçar a implementação da LMP para todas, o Ministério Público do Ceará, ao lado de outros MPs, do Consórcio Lei Maria da Penha e do Instituto Maria da Penha, está em campanha, desde 25 de novembro, demandando “Voz para Todas – Nós e a Lei Maria da Penha pelo fim da violência contra as mulheres”. Com ações até março de 2022, o objetivo da campanha é que a Lei seja mais compreendida pela população e pelas instituições do Estado.

“A gente só gosta e defende o que a gente conhece. Queremos mostrar que a lei é para todas as mulheres, negras e não negras, jovens, adultas e idosas, ribeirinhas e indígenas”, explica Conceição de Maria 4, do Instituto Maria da Penha. Segundo ela, é preciso intensificar o controle social sobre os compromissos do poder público com a LMP: “Casas abrigo, varas especializadas, e defensoria estão apenas nas capitais. Lutamos para que mulheres de todo o Brasil possam acessar”.

Conceição também se preocupa com os impactos da pandemia de covid-19, com a descontinuidade de programas e com os cortes orçamentários que as políticas para as mulheres sofreram nos últimos anos. O Ligue 180, por exemplo, segue como principal porta de entrada à rede de atendimento especializado, mas o atual menu impõe muita demora até o atendimento: “Muitas desistem”.

Para o promotor de justiça Thiago Pierobom, uma outra grave ameaça à LMP está nas decisões judiciais que afastam a aplicação da norma por não considerarem violência de gênero a violência doméstica perpetrada por filho contra mãe, irmão contra irmã, pai contra filha e até marido contra mulher quando há destruição de bens materiais dela ou da casa. É como se o Poder Judiciário caminhasse para aplicar a Lei somente naqueles casos em que os homens cometem violência doméstica contra mulheres (violência física) em razão do ciúme, um grande retrocesso e violação à Convenção de Belém do Pará e à Recomendação 35 da Cedaw (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, na sigla em inglês) sobre violência de gênero contra as mulheres.

O Poder Judiciário também falha no dever de proteger as mulheres ao não implementar os juizados de violência doméstica e familiar dotados de competência civil e penal (art. 14). Isso força as mulheres a peregrinar pelo Juizado e em mais duas, três ou quatro varas de famílias para resolverem o conflito, podendo sofrer novas violências (como a institucional) e terem decisões contraditórias. Falhas no acesso à justiça e no cumprimento da lei.

No Poder Executivo, é baixa a execução. Até meados de dezembro, 66% do orçamento previsto (R$ 56,2 milhões) para o ano havia sido executado. Levantamento do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) informou que o plano orçamentário do Governo Federal para as mulheres em 2022 foi reduzido em 33%, prevendo 74% para a política de enfrentamento à violência contra as mulheres para os canais disque 180 e disque 100. A pergunta que não cala é: adianta só haver o canal de denúncias sem investimento na rede para acolher as mulheres que buscam ajuda?

É urgente que os números crescentes de violência contra as mulheres deixem de ser contabilizados pelo número de chamadas ao 180 e sejam enfrentados com número de atendimentos nos serviços públicos. Que o indicador a ser celebrado seja a queda nos feminicídios de mulheres negras e indígenas, sobre quem ainda sequer existem dados oficiais de violência – mas não faltam notícias sobre violações a seus direitos.

Oxalá que possamos contar com uma nova implementação da Lei Maria da Penha, e que menos mulheres e meninas tenham seus corpos marcados e suas vidas interrompidas por machismo, racismo, lesbofobia e transfobia. Oxalá que a força e a pressão das mulheres escrevam uma nova história para o Brasil em 2022 e que em 2023 os caminhos estejam abertos para reverter o desmonte criminoso dessa política pública fundamental.

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Myllena Calasans de Matos é advogada feminista, integrante do Consórcio Lei Maria da Penha, do Cladem (Comitê Latino Americano e do Caribe para Defesa dos Direitos da Mulher) do Brasil e do Grupo de Pesquisa Direito, Gênero e Famílias da UnB (Universidade de Brasília). Com trajetória de trabalho sobre a abordagem feminista no direito, atuou no desenvolvimento da política pública de enfrentamento à violência contra a mulher, mais tarde conhecida como LMP (Lei Maria da Penha). É bacharela em direito pela Faculdade de Direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia).

Fernanda C. Papa é especialista em políticas públicas transversais, com experiência em ações de enfrentamento à violência contra mulheres, jovens e defensoras de direitos humanos. Tem atuação em organizações da sociedade civil, cooperação internacional, Governo Federal e Sistema ONU. Formada em comunicação social (PUC-SP), é mestre em administração pública pela EAESP-FGV (Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas) e pela Harvard Kennedy School of Government (Prêmio Robert Kennedy de Excelência em Serviço Público), onde foi bolsista e pesquisadora do Ash Center for Democratic Governance and Innovation, e do Carr Center for Human Rights, entre 2020 e 2021.

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