Considerada a terceira melhor lei mundial de combate à violência doméstica, a Lei Maria da Penha criou um fato social e salvou vidas, mas, está sendo desmontada, segundo feministas, gestoras públicas e especialistas na lei
por Edneide Arruda – Jornal Brasil Popular/RS
Sancionada em 7 de agosto de 2006, pelo ex-presidente Lula, a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha (LMP), completou 15 anos, em agosto, sendo comemorada, mas, ao mesmo tempo, avaliada por especialistas na lei, advogadas, feministas, gestoras públicas, parlamentares e mulheres que foram vítimas da violência doméstica.
Para muitas delas, a LMP deu visibilidade à violência contra a mulher, ajudou a criar uma rede de proteção e a aumentar políticas públicas de prevenção contra a violência doméstica, provocou a criação de varas e juizados especializados para atender e julgar os processos sobre os crimes, estimulou campanhas institucionais de combate à violência doméstica, levou empresas a criarem programas de responsabilidade social para erradicação da violência doméstica e mostrou a necessidade de reeducação e tratamento de homens envolvidos em casos de violência doméstica.
Porém, avaliam que, 15 anos depois, a LMP, que é considerada a terceira melhor do mundo no combate à violência doméstica, não erradicou esta violência que, ao contrário, recrudesceu. Dados da Pesquisa Nacional sobre Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, colhidos pelo Instituto de Pesquisa DataSenado, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência, revelam que, entre 2011 e 2019, aumentou de 13% para 37%, o percentual de mulheres agredidas por ex-companheiros, ex-maridos e ex-namorados. A pesquisa DataSenado levantou, também, 41% de casos que ocorreram durante laços de relacionamentos, entre vítima e agressor.
Em artigo publicado no site do SOS CORPO, as feministas Analba Brazão e Myllena Calasans avaliam a “força transformadora” da LMP que, denunciam, “tem sido relegada a segundo ou terceiro plano pelos governos federal, estadual ou municipal”.
Calasans e Brazão apontam, com dados, o desmonte da lei que tem salvado a vidas de muitas vítimas e que, segundo o Ipea, é conhecida por 98% da sociedade brasileira.
“_ Em 2018, 40% dos serviços já tinham sido fechados, de 256 CEAMs – Centro Especializado de Atendimento á Mulher, existentes até 2016, as mulheres brasileiras contavam apenas com 228, das 95 casas-abrigos restavam 58 e, das 504 DEAMs – Delegacia Especializada de atendimento á Mulher, restavam 449 (ONU Mulheres, 2018). Desde então, a situação só se agravou, pois o número de Juizados de Violência Doméstica contra a Mulher está estacionado em 138; os serviços continuam concentradas nas capitais; mais serviços foram fechados e menos recursos foram alocados e efetivamente gastos para enfrentar essa forma de violação dos direitos humanos de nós mulheres. Em 2020 da ínfima alocação de R$ 120,4 milhões, apenas R$ 35,4 milhões foram efetivamente gastos pelo Governo Federal para apoiar e fomentar a política em todo país (INESC, 2021).”, escrevem Analba e Myllena.
Para elas, “o desmonte destas políticas públicas tem agravado o aumento significativo da violência contra as mulheres, em especial os feminicídios”, o que impelem os movimentos feministas a “continuarem lutando para que esta conquista seja efetivada de fato”.
Não por acaso, o Brasil passou a ocupar a 5ª posição no ranking mundial do feminicídio – que é o assassinato de mulheres pelo simples fato de serem mulheres, por motivação de ódio, desprezo ou sentimento de perda de controle e da propriedade sobre as mulheres.
Segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, entre março de 2015 e dezembro de 2018, foram registrados cerca de 3,7 mil casos de feminicídio. Em 2019, foram 1.326 mortes provocadas pelo ódio ao sexo feminino, uma alta de 7,1% em comparação com o ano anterior.
Com a pandemia da Covid-19, o quadro piorou. Segundo o 15º Anuário Brasileiro de Segurança pública, em 2020, foram registradas 230.160 denúncias de violências domésticas. Também foram registradas 294.400 medidas protetivas de urgência do Judiciário, o que equivale a 630 mulheres que, por dia, procuraram uma autoridade do Judiciário para pedir socorro. Somente pelo 190, a Polícia Militar recebeu 694.131 ligações relativas à violência doméstica, o equivalente a 1,3 ligação por minuto, revelando um aumento de 16,3%, dos registros, em relação ao ano anterior.
O anuário revelou que em 2020, os casos de feminicídio também aumentaram 0,7% com relação a 2019. Foram 1.350 caos de assassinatos por motivo de gênero da vítima. No recorte de raça e etnia, os dados mostraram que entre as mulheres assassinadas, 61,8% eram negras.
Cultura machista
Em reportagem do Brasil de Fato, a cientista social Ane Cruz, especialista em políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres, avalia que o agravamento da situação se deve “à cultura machista”.
“_ Uma cultura em que a sociedade banaliza e normatiza a violência contra as mulheres. Uma cultura machista ainda imposta nas academias que formam advogados e advogadas, futuros juízes e juízas, com cabeças retrógradas. Uma cultura machista institucional, dentro dos poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário. Uma cultura machista na mídia que ainda permite que músicas misóginas sejam veiculadas e assim por diante. Há muito que ser feito no âmbito do enfrentamento da cultura machista que permeia nossa sociedade”, contextualiza Ane Cruz.
Na mesma reportagem, a psicóloga Cristina Schwarz, avalia que a LMP “criou um fato social”, que inaugura um campo de discussão, antes, distante da sociedade.
“_ Não é à toa que muitas pesquisas mostram que a Lei Maria da Penha é a lei mais conhecida no Brasil. Ainda que as pessoas possam não conhecer exatamente os termos dela, sabem que se trata de uma lei de violência contra as mulheres, e entendem a partir daí, que a violência contra as mulheres é um crime. Isso possibilita o debate sobre a condição de violência que as mulheres vivenciam”, comenta Cristina, que preside a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia do RS.
A jurista Ella Wiecko, uma das integrantes do consórcio que elaborou o projeto que veio a se transformar na Lei Maria da Penha, participou da live “Políticas públicas desmanteladas e violência contra as mulheres – um balanço dos 15 anos da Lei Maria da Penha no DF”, realizada pelo Levante Contra o Feminicídio local, e avaliou os 15 anos da LMP.
“_ A lei começou a dar resposta, seja com convênios, seja com normas referentes às casas abrigo e protocolos de atendimento. Mas a lei começou bem, porque tinha no nível do executivo federal, um órgão, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, elevado à condição de ministério, que articulava os níveis de governo – federal, estadual e municipal -, com protocolos de atuação, de atendimento e escuta qualificada. Depois, isso foi se perdendo, principalmente com o boicote que vinha se desenvolvendo contra ela e que culminou com o golpe, em 2016”, afirma Wiecko.
Subprocuradora-Geral da República e professora da Universidade de Brasília (UnB), Ella acentua que hoje, se vê a dificuldade da LMP na esfera do Judiciário e do Ministério Público, e defende a continuidade da luta em favor dela.
Outra integrante do consórcio que deu corpo á LMP, a feminista Aparecida Gonçalves, que foi Secretária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres, também comemora os 15 anos da lei. Mas acusa a falta de “vontade política” dos governos que sucederam os presidentes Lula e Dilma Rousseff, para investir em políticas e articulações que garantissem a eficácia da LMP.
“_O que garante a implantação desta lei são os recursos destinados para que estados e municípios possam assegurar sua implementação”, afirma Aparecida, questionando o que não deu certo na lei, mas, principalmente, por que não deu certo?
Ela destaca o que é necessário à implementação da lei, para evitar que vire “mais uma letra morta nas gavetas do país”.
“_ Para se implementar uma lei de enfrentamento à violência contra as mulheres, precisamos ter três coisas essenciais: uma estratégia nacional, uma política que dê conta de elementos novos e um tratamento com os governos – estadual, municipal e federal – sobre as políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres”.
Segundo Aparecida, com o golpe contra a presidente Dilma, tudo foi modificado, alterado, perdido, desmontado; o que impõe às feministas, uma nova e desafiadora luta para manter o que foi feito na lei que “é importante e completa para salvar vidas”.
A historiadora Benedita Nascimento avalia que a LMP foi uma grande conquista dos movimentos de mulheres e da luta feminista no Brasil no combate à violência contra a mulher. Porém, ressalta a necessidade de se “criar ferramentas para agilizar as medidas protetivas, o que significa garantir a efetiva retirada da mulher da situação de risco, promovendo a sua proteção social”.
Ane Cruz a respalda, afirmando que todos os avanços na LMP “só são possíveis ou reais, se todos os setores envolvidos cumprirem com suas partes. “Principalmente, se a sociedade denunciar os casos de violência contra as mulheres e se o Poder Judiciário julgar e punir com rigor estes casos”.
Na Live “15 Anos da Lei Maria da Penha: avanços e retrocessos”, da Fundação Perseu Abramo, a feminista e jurista, Isadora Brandão, avalia que a LMP é uma legislação importante, porque resulta do reconhecimento pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da responsabilidade do Estado brasileiro, que falhou em prevenir e reprimir em tempo célere, a violência que a vítima – Maria da Penha – sofreu.
“_ O caso chama a atenção para uma falha estrutural do Estado no reconhecimento desse problema endêmico e no enfrentamento e ele, identificando como havia uma tradição do Estado brasileiro em legitimar um poder praticamente absoluto, incondicional dos homens na esfera privada; uma tradição de pensar a esfera privada de maneira apartada da dimensão pública e de representar a família como espaço natural, supostamente onde só há afeto no espaço supostamente harmônico por natureza”.
Embora Isadora considere que a LMP cumpre papel político, afirma os direitos humanos das mulheres e prevê o instituto jurídico de medidas protetivas para interromper o feminicídio e garantir assistência jurídica e integral à mulher, ela aponta desafios na lei, tais como o fracasso do Estado na proteção às mulheres e o racismo institucional.
Isadora situa neste contexto, dificuldade de implementação da LMP na esfera executiva e nos espaços do Judiciário, e destaca dados do Atlas da Violência/2019, que revelam que, entre 2007 e 2017, aumentaram em 70,5% os homicídios de mulheres negras, enquanto os de mulheres não negras foi de apenas 1,7%.
Para reforçar essa “essa discrepância abissal”, Isadora apresenta dados associados ao Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, segundo os quais mais de 60% das mulheres assassinadas hoje, no Brasil, são mulheres negras. Neste contexto, ela levanta a hipótese de que os dados demonstram que a LMP não repercutiu no enfrentamento à violência doméstica contra mulheres negras.
“_ Nosso grande desafio é entender: porque uma legislação de política formulada em termos universais, que pretendem atender às mulheres de maneira indistinta, tem impactos tão devastadores e diferentes para grupos de mulheres, de acordo com a sua pertença étnico-racial”, indaga.
Agosto Lilás
No quinto ano da campanha Agosto Lilás, uma infinidade de lives, webnários, seminários, rodas de conversas, lançamentos de vídeos, podcasts e cartilhas, campanhas contra o feminicídio, orientações sobre direitos, promulgação de leis, exposições de artes e shows artísticos marcaram a passagem dos 15 anos da lei.
A Câmara dos Deputados aprovou o PL 3855/2020, que, conforme ementa, “institui, em âmbito nacional, o ‘Agosto Lilás’ como mês de proteção à mulher, a ser dedicado à conscientização pelo fim da violência contra a mulher”. Enquanto o PL aguarda análise pelo Senado, o Agosto Lilás vem se juntando às datas alusivas às lutas das mulheres: 8 de Março, Dia Internacional da Mulher e 25 de Novembro, Dia Internacional de Combate à Violência contra a Mulher.
Além de a Câmara dos Deputados aprovar o PL, a Secretaria da Mulher e a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher marcaram o Agosto Lilás com audiências públicas, debates, painéis e um Encontro Nacional de Procuradorias da Mulher.
Criciúma comemorou os 15 anos da LMP, promulgando a Lei Ordinária nº 7.937/2021, conhecida como “Mapa do Enfrentamento às Violências contra a Mulher”. De autoria da vereadora Giovana Mondardo, esta lei estabelece que o Portal da Transparência do Município publique anualmente “dados estatísticos resultantes da execução de políticas públicas para as mulheres em situação de vulnerabilidade ou vítimas de violências, implementadas pelo Poder Público Municipal”.
Criado em março deste ano, o Levante Feminista Contra o Feminicídio, que já está organizado em quase todos os Estados, também marcou o Agosto Lilás, com uma série de lives, conduzidas pela socióloga e professora Márcia Tiburi, sobre os 15 anos da LMP.
Sobre a LMP
A Lei Maria da Penha é composta de 45 artigos, que resultam da ação e luta do movimento feminista do Brasil, sobretudo, dos anos 1980, que lutava para combater a violência contra a mulher. Esta lei faz uma homenagem à farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, de 76 anos, pelas agressões que sofreu de seu marido, o colombiano Marco Antonio Heredia Viveiros, que quase a matou, com tentativas de feminicídio – o que a deixou paraplégica -, cárcere privado e choque elétrico. Condenado a 15 anos de prisão, Heredia usou recursos e não cumpriu a sentença. Inconformadas com as injustiças praticadas contra Maria da Penha, feministas apresentaram denúncia à Organização dos Estados da América (OEA) e, em 2002, o Brasil foi responsabilizado a pagar uma indenização à vítima. Como conta a ex-ministra Eleonora Menicucci, em 2003, quando Lula já estava na Presidência da República, propôs à farmacêutica, o pagamento da indenização, mas ela não aceitou. Então, Lula a homenageou dando seu nome à lei.