O barato sai caro: o problema com o financiamento privado dos ODS a partir de uma visão de gênero

Por María Dolores García em Opinan, na Revista Bravas.

Cada vez mais se escutam governos e instituições internacionais de desenvolvimento (PNUD, ONU Mulheres, UNCTAD, CEPAL, etc.) dar ênfases no papel que o setor privado deve assumir no financiamento e na conquista dos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS). Para além de que muitas empresas nacionais e multinacionais não cumprem com a legislação mínima sobre uma série de direitos trabalhistas e de regulações ambientais (que muitos fariam para conseguir algumas das metas dos mencionados ODS), usam-se conceitos como a responsabilidade social corporativa (RSC) ou se incentivam as empresas a serem signatárias do Pacto Global para cumprir os 10 princípios[1] ou os princípios de empoderamento das mulheres[2]. Bem analisados, todos estes princípios já são parte das legislações nacionais e teriam que ser cumpridas sempre (igualdade salarial, proteção trabalhista da maternidade, pagamento de horas extras, etc.).

Apesar de que as competências principais do Estado tenham sido reduzidas notavelmente perante a instrução de legislação e políticas neoliberais desde a década de 80 do século passado, seu papel continua sendo fundamental para liderar e planejar o desenvolvimento de um país. Isto é, ao menos, dentro da normalidade democrática e sob um marco legal determinado que inclui as diferentes formas de financiamento para realizar ditos planos. Não há dúvida de que, em alguns casos, a cooperação entre setor público e privado é necessária para executar projetos cujo objetivo final é o bem comum e é lógico que o setor privado lucre, dentro de um âmbito de transparência e prestação de contas. Os problemas surgem quando dita transparência e prestação de contas não se incluem como parte fundamental da execução dos referidos projetos, que podem resultar em casos de corrupção tão falados, como os recentes Odebrecht e OHL na América Latina.

Os bônus de impacto social

Em um novo capítulo para envolver o setor privado na perseguição de objetivos de desenvolvimento ou objetivos públicos, a crescente intervenção no financiamento destes objetivos deve ser analisada cuidadosamente. Comecemos pelos chamados bônus de impacto social. Os bônus emitidos por instituições financeiras com fins lucrativos para cobrir necessidades sociais foram introduzidos na Inglaterra sob o governo conservador de Margaret Thatcher. A ideia principal é que o incentivo financeiro pode resolver os problemas que a execução apresenta na prestação de alguns serviços ou programas públicos. Aqueles que investem nos referidos bônus são remunerados segundo o êxito dos serviços ou programas pelo Estado, convertendo-se assim em uma redistribuição do público ao privado, por serviços que, de fato, já eram públicos.

Na atualidade, instituições da ONU, como PNUD[3], encontram-se apoiando países beneficiários com este tipo de instrumentos financeiros dirigidos a temas de conservação do meio ambiente, como a preservação de espécies animais em extinção. Um dos elementos mais importantes do sucesso é a participação e tomada de decisões ativa por partes das comunidades humanas afetadas por estes programas. Isso quer dizer que a participação no desenho e execução do programa, assim como em seu monitoramento e avaliação, é essencial para garantir o sucesso de referido programa e que os investidores possam recuperar seu dinheiro com juros pagos pelo Estado. Estes instrumentos podem ser vistos como “empréstimo ao Estado” que ocorrem habitualmente através da emissão de títulos do tesouro ou outros instrumentos emitidos por ele, mas que, neste caso, seria uma empresa privada que se encarrega da emissão e do controle.

Embora possa-se pensar que existem alguns pontos a favor do financiamento de objetivos de desenvolvimento por parte do setor privado na cooperação para o desenvolvimento e inclusive no gasto público dos próprios países aos quais vai destinada a ajuda, a parte pública, seja nacional ou estrangeira, deve ser monitorada igualmente como se faz com os fundos públicos em geral, e deve ter os mesmos parâmetros de transparência e prestação de contas. Mais importante: o uso de ferramentas de orçamentos sensíveis ao gênero (OSG) deve ser utilizado quando se tratar de fundos que supostamente se destinam a favor das mulheres. 

Neste sentido, a OXFAM produziu um documento informativo (briefing paper) em 2017 onde destaca que, de modo mais frequente, doadores de cooperação ao desenvolvimento – mas também governos receptores de dita ajuda – buscam introduzir fundos privados e misturados (blending) com os fundos públicos que habitualmente são utilizados para financiamento do desenvolvimento. Segundo a OXFAM, existe pouca evidência do impacto do financiamento privado em resultados do desenvolvimento já que os projetos que costumam ser financiados poucas vezes estão alinhados com os interesses do país (não há apropriação) nem também refletem transparência e prestação de contas. O que é pior: não fica muito clara a necessidade de que esses investimentos privados precisem ser subsidiados pela ajuda ao desenvolvimento oficial. Entretanto, existem algumas áreas de intervenção onde poderiam ser úteis, como por exemplo, apoio complementar a projetos que busquem aliviar a pobreza e que requeiram, entre outros elementos, linhas de crédito às quais possam ter acesso pequenas e médias empresas que desejem se formalizar. Porém este modus operandi implica o risco de que, à medida que se incrementa esta mistura de fundos públicos e privados, a parte de fundos públicos que, habitualmente apoie áreas tradicionais, como os serviços públicos, reduza.

Embora se usem argumentos a favor de fundos privados no financiamento para o desenvolvimento, como o de seu suposto valor agregado, um dos desafios ao misturar-se fundos públicos é que os projetos nos quais se “investe”, na realidade, precisem de apoio público. Consequentemente, o argumento de que o fundo privado vem para complementar o fundo público não é muito sólido. Por outro lado, os governos de países em desenvolvimento buscam uma maior participação do investimento privado para obter diferentes objetivos de desenvolvimento, tanto de origem nacional quanto estrangeira. Habitualmente, usa-se o argumento da criação de empregos. Curiosamente, os países competem entre si de maneira perniciosa reduzindo as obrigações fiscais ou oferecendo pagar por grandes obras de infraestrutura onde os mais beneficiados são os investidores e nem tanto o público para o qual supostamente os empregos são criados. As zonas francas na América Latina e em outras regiões são uma clara amostra disso. Em várias delas têm-se perpetrado alguns dos casos de violência sobretudo contra as mulheres, casos que ainda continuam sem resolução, e os culpados não são identificados e castigados. As investigações têm demonstrado uma correlação entre os problemas econômicos e políticos e a violência contra as mulheres ao longo da fronteira do México com os Estados Unidos[5]. Concretamente, as pesquisas de Pantaleo (2010) têm demonstrado que “o Tratado de Livre Comércio da América do Norte, como um enfoque capitalista, tem criado diretamente uma desvalorização da mulher e um aumento da violência exercida”[6][7]. Por outro lado, existe um grande número de pesquisas que destacam como estas zonas exportadoras têm se convertido em focos de lavagem de dinheiro de todo tipo de atividades ilegais e de evasão fiscal[8]. Isso faz pensar que não se tem zelado pelo verdadeiro desenvolvimento e pelo emprego em condições dignas das cidadãs destes países, que esses sejam precisamente os argumentos principais para justificar a instauração deste tipo de investimentos privados subsidiados pelo Estado.

No caso dos bônus impulsionados pela ONU Mulheres que foram lançados na Índia[9] em 2019 e agora na Colômbia[10] em 2021, o dinheiro investido em ditos bônus é entregue para micro financeiras que, por sua vez, entregarão a mulheres que o solicitem. Ou seja, não há nenhuma novidade além de que, neste caso, tanto as micro financeiras quanto os “investidores” vão receber seus lucros dos créditos que são feitos às mulheres que se descrevem como “marginalizadas e não aproveitadas pela sociedade”.

Aqui não cabe fazer uma análise detalhada sobre o efeito das micro financiadoras no empoderamento das mulheres, mas, apesar de anunciar como novidade este tipo de financiamento para a igualdade de gênero, na realidade, trata-se de uma guinada para um modelo cada vez mais questionado, inclusive por estudos minuciosos sobre seu escasso impacto para reduzir a pobreza das mulheres. Como expressa o professor da London School of Economics, Jason Hickel, em 2012:

De fato, resulta que as micro finanças normalmente pioram a pobreza. As razões disso são bastante simples. A maioria dos empréstimos de micro finanças é utilizado para financiar o consumo, para ajudar as pessoas a comprar as necessidades básicas de que necessitam para sobreviver. Na África do Sul, por exemplo, o consumo representa 94% do uso de micro finanças. Como resultado, os devedores não geram nenhum novo rendimento que possa usar para pagar seus empréstimos para que terminem tomando novos empréstimos para pagar os velhos, envolvendo-se em camadas de dívidas[11].

Para concluir, outra tendência preocupante a respeito das micro financiadoras na América Latina é sua relação com as chamadas empresas de marketing multinível. Essas empresas como Avon, Herbalife, Ominlife, Angelissima (estas duas últimas mexicanas), Yanbal (Peru), Tupperware, Amway e outras, requerem um “investimento” por parte das novas representantes, além de compra de catálogos e outros elementos necessários para realizar a atividade de vender os produtos. O mais importante nestas empresas é o recrutamento incessante de “novas representantes”, que é como o negócio realmente funciona: para que uma representante possa realmente obter lucros, as vendas das pessoas recrutadas terão incidência sobre seus ganhos. Nos Estados Unidos, várias destas empresas têm sido julgadas e condenadas a devolver os “investimentos”, sobretudo a pessoas imigrantes hispano-falantes que tinham sido enganadas por não ter experiência nem redes sociais que lhes poderiam ter advertido sobre o perigo de participar delas. Algumas destas empresas se apresentam como novidade na América Latina, onde a regulação deste modelo, incluindo os escritórios de proteção ao consumido, têm pouca informação sobre as mesmas[12]. Agências das Nações Unidas têm realizado acordos com algumas destas empresas que utilizam uma linguagem “pró mulher”. Entretanto, suas associações norte-americanas se alinham com ideais conservadores e têm dado apoio econômico a partidos políticos com esta tendência.

[1] Os dez princípios do Pacto Mundial das Nações Unidas são derivados da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Declaração da Organização Internacional do Trabalho sobre princípios e direitos fundamentais no trabalho, a Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção.
[2] Encontram-se em https://www.unglobalcompact.org/take-action/action/womens-principles

[3] Mais informação sobre projetos do PNUD relacionados com bonus de impacto social pode ser consultado em https://www.sdfinance.undp.org/content/sdfinance/en/home/solutions/social-development-impact-bonds.html 

[4] OXFAM (2017). Private Finance Blending for Development: Risks and Opportunities, Oxfam. Disponible en: www.oxfam.org/es/node/8244.

[5] Pantaleo, K. (2010). “Gendered Violence: An Analysis of the Maquiladora Murders”. International Criminal Justice Review 20(4): 349365. doi:10.1177/1057567710380914.

[6] As trabalhadoras têm sido particularmente solicitadas pela indústria orientada à exportação porque, geralmente, estão menos sindicalizadas; em consequência, têm um menor poder de negociação sobre seus salários e condições de trabalho, e frequentemente trabalham em condições laborais deficientes. Ver OIT (2009). A igualdade de gênero como eixo do trabalho decente. Informe VI. Sexto ponto da ordem do dia https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—ed_norm/—relconf/documents/meetingdocument/wcms_106175.pdf.

[7] As zonas de processamento de exportações que têm contribuído para o sucesso exportador de muitos países em desenvolvimento da Ásia Oriental e do Sudeste Asiático e América Central desde o final da década de 1960 têm empregado em grande medida mão de obra feminina. Sem dúvida, um grande número de mulheres tem se beneficiado de novas oportunidades de emprego. Ver Seguino, S. (2009). “The road to gender equality: global trends and the way forward”, en Günseli Berik, Yana van der Meulen Rodgers y Ann Zammit  (eds.), Social Justice and Gender Equity: Rethinking Development Strategies and Macroeconomic Policies. London: Routledge.

[8] Documento completo sobre como as zonas francas se prestam à lavagem de dinheiro https://www.fatf-gafi.org/documents/documents/moneylaunderingvulnerabilitiesoffreetradezones.html.

[9] Os bônus, que serão arrecadados por um ator privado com o apoio do Banco Mundial e ONU Mulheres, foram colocados com os principais gestores de patrimônio e empresas do país sobre a base de uma colocação privada. A taxa de cupom destes bônus será de 3% anual. O Banco Mundial declarou que os investidores esperam um maior impacto social de seu investimento, o que lhes dará um rendimento razoável entre 3 e 4% anual. O diretor do Banco Mundial na Índia acrescentou que os investimentos nesses bônus devem ficar isentos de impostos para atrair investidores (¿?¡!). O banco privado encarregado se assegurará de que as instituições de micro finanças que obtêm os fundos, arrecadados através do bônus de subsistência das mulheres para empréstimos a mulheres empresárias, não cobrem mais de 13% de juros. Atualmente, as micro financiadoras na Índia cobram às devedoras entre 20 e 24%. Os empréstimos de até 150000 rúpias indianas (pouco menos de 2000 dólares americanos) serão desembolsados por micro financeiras. Os rendimentos destes bônus de impacto social, que não estarão garantidos nem cotados no mercado de valores, serão utilizados para ajudar as mulheres rurais dos estados mais pobres do país para que possam estabelecer ou ampliar suas próprias empresas.

[10] A vice-presidenta Marta Lucía Ramírez declarou: “Estamos tramitando com o apoio do ministro da Fazenda a possibilidade de que a Colômbia saia no mercado internacional com os bônus de gênero”, acrescentando que é o único país da América Latina que tem o apoio da ONU para participar deste mercado https://www.larepublica.co/economia/colombia-colocara-bonos-de-genero-en-el-mercado-internacional-3136690. Além disso, utilizam-se não apenas os recursos da ONU Mulheres, mas de outros países doadores. 

[11] Artigo para o jornal The Guardian: “The microfinance delusion: who really wins?” (O engano das micro finanças: quem ganha realmente?) Disponível em: https://www.theguardian.com/global-development-professionals-network/2015/jun/10/the-microfinance-delusion-who-really-wins.

[12] Ver, por exemplo, artigos acadêmicos que apresentam uma visão sociológica deste fenômeno: Masi de Casanova, E. (2011). “Multiplying Themselves: Women Cosmetics Sellers in Ecuador”. Em Feminist Economics, 17(2), pp.1-29. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/13545701.2011.568419?needAccess=true&. Ou uma visão econômica que revela a natureza fraudulenta destas empresas: “Vendas diretas ou de marketing multinível: Exploração de mulheres ou caminho rumo ao empoderamento econômico?”, em Oikos Polis 4(1), pp.77-98. Disponível em: http://www.iies.uagrm.edu.bo/vol-4-no-1-2019-ventas-directas-o-de-marketing-multi-nivel-explotacion-de-mujeres-o-camino-hacia-el-empoderamiento-economico/

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