Por Ana María Méndez, Ana Cristina González Vélez, Catalina Martínez y Mariana Ardila, em Políticas del Cuerpo, na Revista Bravas.
“… o acontecimento da concepção e inclusive o eventual desejo não implica um projeto e, menos ainda, desejo de maternidade” (PITCH, 2003, p. 83)
Mais de 90 organizações e 150 ativistas da Colômbia têm se unido para eliminar o delito de aborto (consentido) do Código Penal colombiano. Esta mobilização legal está sendo liderada pelo Movimento Causa Justa[2] que recentemente apresentou uma demanda perante a Corte Constitucional colombiana para declarar inexequível o artigo 122 do Código Penal, que penaliza parcialmente o aborto no país. Neste artigo, explicamos como começou esta mobilização legal e quais são as principais estratégias que o movimento tem articulado para alcançar este objetivo.
O marco constitucional atual
Em 2006, com a sentença C-355 do 2006[3], a Corte Constitucional resolveu que o artigo 122 do Código Penal, que tipificava o aborto como delito em qualquer circunstância, significava uma carga desproporcionada para as mulheres e, portanto, uma violação de seus direitos fundamentais. Outra consideração feita pela Corte foi que deviam ser explicadas exceções extremas ao uso do Direito penal para proteger os direitos da mulher grávida. Assim, a Corte Constitucional colombiana despenalizou o aborto em três circunstâncias: 1) quando a continuação da gravidez constitui um perigo para a vida ou a saúde integral da mulher, certificada por um médico ou um psicólogo; 2) quando a gravidez implicar má formação fetal incompatível com a vida, certificada por um médico; e 3) quando a gravidez for o resultado da violência sexual, devidamente reportado às autoridades oficiais.
Sem dúvida nenhuma, a sentença C-355/2006 representou um marco no reconhecimento dos direitos das mulheres por, pelo menos, três razões. Em primeiro lugar, porque a Corte limitou o uso do poder punitivo do Estado quando uma mulher decide não continuar com uma gravidez e se encontra em alguma das três circunstâncias mencionadas. Segundo, porque a Corte centrou o debate na obrigação do Estado de respeitar, proteger e cumprir os direitos fundamentais da mulher, em particular, o direito à autodeterminação reprodutiva e à dignidade humana. E em terceiro lugar, porque, a partir desta decisão, a Corte Constitucional enquadrou o reconhecimento dos direitos reprodutivos em um enfoque baseado nos direitos humanos, e reconheceu que o aborto, em qualquer das três exceções, constituem um direito fundamental da mulher.
De fato, com a jurisprudência constitucional subsequente[4], a Corte reconheceu e ratificou que a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) nos termos da sentença C-355/2006, converteu-se em um direito fundamental das mulheres. Como direito fundamental, o tribunal superior constitucional estabeleceu que requeria o maior grau de proteção e, portanto, estabeleceu um conjunto de obrigações para que as autoridades garantam o acesso aos serviços de aborto. Apesar deste enorme avanço, o delito de aborto não foi eliminado completamente. Isso significa que um aborto realizado fora destes três motivos ou exceções poderia ser classificado como um delito que poderia resultar em uma pena privativa da liberdade de 1 a 4 anos para a mulher.
El Movimiento Causa Justa
Desde que a sentença C-355/2006 foi emitida, as organizações de mulheres têm trabalhado arduamente para implementar o marco constitucional. Temos promovido várias estratégias para fazer cumprir as três causas despenalizadas, que abarcam as campanhas midiáticas, a formação no marco de direitos a profissionais médicos, administrativos e, inclusive, judiciais, a mobilização para difundir o marco jurídico, os litígios estratégicos[5], e o assessoramento jurídico às mulheres que enfrentam barreiras no acesso aos serviços, entre muitos outros. Apesar de todos esses esforços, as barreiras para acessa à atenção do aborto não têm desaparecido, e, inclusive, algumas barreiras, como a criminalização das mulheres no país, aumentaram[6]. Pesquisas recentes realizadas pela Universidade dos Andes e A mesa pela Vida e pela Saúde das Mulheres concluem que, desde 2006, os índices de criminalização aumentaram apesar de haver uma despenalização parcial[7].
Em 2018, A Mesa pela Vida e pela Saúde das Mulheres[8] começou a construir uma estratégia para conseguir a eliminação do delito de aborto, seu principal objetivo desde princípios de 1998. A despenalização total do delito do aborto necessitava de argumentos muito sólidos e, por isso, este foi o ponto de partida. Ao longo dos primeiros anos de trabalho, A Mesa começou a construir um conjunto de argumentos e instou outras organizações para unir forças rumo a este objetivo. Durante este tempo, a partir das organizações defensoras dos direitos sexuais e reprodutivos, temos nos centrado em fortalecer os argumentos principais que logo alentariam o debate público sobre a eliminação do delito do aborto do Código Penal[9].
Em fevereiro de 2020, o Movimento Causa Justa foi lançado publicamente e começaram a ser implementadas estratégias como a difusão de argumentos, o trabalho pedagógico com diferentes públicos, as campanhas de comunicação ou produção de mensagens políticas e a análise de cenários jurídicos, entre outros.
Além disso, Causa Justa queria ampliar seu alcance recolhendo a experiência de outras organizações nesse campo e o fez, convidando-as para se unir ao movimento. Hoje em dia, somamos mais de 90 organizações e mais de 150 ativistas, o que torna a Causa Justa o primeiro e mais importante movimento que luta pela eliminação do delito de aborto na Colômbia. Cada vez mais, expressões e aliados de diversas origens, idades e regiões do país continuam se unindo ao Movimento Causa Justa.
A estratégia legal
Durante estes 14 anos de implementação da sentença C-355/2006, a Corte Constitucional colombiana tem mantido a proteção do direito ao aborto. Com mais de 20 sentenças, a Corte tem estabelecido uma multiplicidade importante de modelos constitucionais que reforçam as obrigações de respeitar, proteger e cumprir este direito. Por exemplo, a Corte determinou: i) que não é necessário que uma vítima de violência sexual apresente uma queixa para ter acesso ao serviço; ii) que as autorizações de terceiros ou juntas médicas desnecessárias sejam consideradas práticas proibidas; iii) que, inclusive, se a vida do embrião deve ser protegida, não há um reconhecimento de um direito constitucional à vida antes do nascimento e os direitos constitucionais das mulheres grávidas sempre prevalecerão. Estes princípios, igualmente a muitas outras normas estabelecidas na jurisprudência da Corte Constitucional, converteram-se na base de políticas públicas e protocolos médicos para acessar aos serviços de atendimento médico do aborto.
Pelo contrário, o Congresso não tem feito nenhum progresso sobre a matéria. Durante várias ocasiões – nos anos de 2006, 2014 e 2018 –, a Corte Constitucional tem incentivado o Congresso a regulamentar o acesso aos serviços de aborto, sem nenhum sucesso. O movimento feminista também apresentou 9 projetos de lei para avançar nesse assunto, com o mesmo resultado. Pelo contrário, houve várias iniciativas legislativas para limitar o aborto – até dezembro de 2020 identificamos 56 projetos de lei –, incluída a criação de uma “Comissão Pró-vida” como uma bancada política no Congresso.
Adicionalmente e, a pesar dos progressos já realizados na jurisprudência constitucional e outros regulamentos, a aplicação do direito ao aborto ainda tem muitas dificuldades. Organizações como A Mesa tinham acompanhado até 31 de dezembro de 2020 mais de 1300 casos de mulheres que se deparavam com as barreiras. Depois de quase 15 anos de luta pela plena aplicação das três exceções, ficou claro que o fato de que o aborto continuasse sendo um delito tipificado cria grandes dificuldades para proporcionar um acesso efetivo, inclusive sendo legal em três causas. Contudo, temos muitas razões para argumentar que a coexistência do aborto como delito e como direito cria uma situação profundamente ambígua para os prestadores de serviços, para as mulheres que precisam fazer um aborto, para a opinião pública e para a sociedade em geral.
Entre 2018 e 2020, a Corte Constitucional resolveu três casos importantes sobre o aborto (sentenças SU-096/2018, C-088/2020, C-089/2020). Com estes casos, começou a se conhecer nos meios de comunicação e no movimento que vários magistrados estavam preocupados com as barreiras que continuam impedindo a plena aplicação do direito ao aborto. Mais ainda, sabia-se que havia uma proposta de uma sentença que despenalizava o acesso ao aborto nas primeiras 14 semanas de gestação por vontade da mulher. Embora esta posição não tenha conseguido a maioria dos votos dos magistrados, pelo menos 4 ou 5 dos 9 togados da Corte revelaram que estavam abertos para estudar possíveis avanços. O Movimento Causa Justa sabia que havia uma oportunidade de propor avanços na Corte, para ir mais além dos motivos já reconhecidos em 2006.
Em 2020, então, decidimos reunir todos os argumentos nos quais tínhamos estado trabalhando desde 2017 e expor uma demanda de constitucionalidade inovadora e suficientemente madura perante a Corte Constitucional. Nossa afirmação era clara: é necessário eliminar o delito de aborto.
Os argumentos mais inovadores que expusemos perante a Corte Constitucional são:
O uso do direito penal viola o reconhecimento constitucional do aborto como um direito fundamental. Como foi mencionado anteriormente, tem ocorrido uma transformação no discurso constitucional em relação ao aborto. Desde 2010, a Corte Constitucional reconheceu e ratificou que o aborto, sob as três exceções, converteu-se em um direito fundamental para as mulheres na Colômbia. Ao fornecer pesquisas, dados, estatísticas e casos reais, mostramos que a ambiguidade jurídica do aborto como um direito e como delito cria um ambiente hostil para a plena aplicação das normas constitucionais que protegem o direito fundamental ao aborto[10]. Também chamamos a atenção para saber se o Estado respeita, protege e cumpre este direito em lugar de criminalizá-lo, se reduzirá o estigma frente ao aborto e as barreiras para acessar os serviços médicos de aborto. Isso conduz o argumento da criminalização parcial como a barreira estrutural que impede ou previne o pleno gozo do direito fundamental ao aborto.
O uso do direito penal para regular o aborto viola o princípio de igualdade e não discriminação. Cada uma das reivindicações constitucionais aplica um enfoque baseado na igualdade. Em primeiro lugar, demonstramos que a grande maioria das mulheres que enfrenta obstáculos no acesso ao atendimento do aborto são as mais vulneráveis: mulheres de zonas rurais, mulheres jovens, migrantes, mulheres de escassos recursos econômicos[11]. E, em segundo lugar, que o delito de aborto tem sido aplicado de maneira desproporcional e discriminatória contra mulheres mais vulneráveis. Os dados da Procuradoria Geral da Colômbia revelam que:
- 97% das mulheres pesquisadas por delitos de aborto vivem em zonas rurais; quase 20% eram estudantes universitárias; 13% eram estudantes do ensino fundamental e 2,7% se dedicavam ao trabalho sexual.
- 30% das mulheres pesquisadas por delitos de aborto foram vítimas de delitos como violência doméstica, violência sexual ou lesões pessoais.
- Em menos de 4 do total de casos iniciados desde 2006, há suficiente informação sobre as razões que justificaram o aborto. Isso indica que a maioria dos casos penais são iniciados sem considerar se o caso poderia ter sido enquadrado sob uma das causas despenalizadas.
A ameaça de sanções penais para os provedores de atendimento médico viola o direito constitucional para escolher uma profissão ou oficio e a liberdade de exercer um trabalho. Introduzimos o ponto de vista de um ator novo: os provedores de atendimento médico que decidem proporcionar atendimento do aborto. Sob a regulação atual, o delito de aborto também se aplica à pessoa que proporciona o serviço médico de aborto além das três exceções. Nesta linha, argumentamos que, embora os provedores de atendimento médico sejam os chamados pelo Estado para proporcionar abortos sob as três exceções, também podem enfrentar cargos criminais se não interpretarem “corretamente” as normas sobre o aborto. Demonstramos que, de fato, houve dois casos de profissionais da saúde que enfrentam uma responsabilidade penal[12]. Em segundo lugar, também trouxemos pesquisas recentes que mostram que há médicos na Colômbia que se negam a proporcionar atendimento ao aborto, não porque sejam objetores de consciência, mas pelo medo de enfrentar uma denúncia e uma eventual investigação penal[13]. Também falamos de como os provedores de atendimento do aborto costumam ser estigmatizados, enfrentam marginalização e sobrecarga de trabalho. Neste sentido, argumentamos que, com a penalização parcial, o Estado está ameaçando e deixando de cumprir a obrigação de proporcionar as condições idôneas para trabalhar livremente àqueles profissionais da medicina que decidem proporcionar serviços médicos sobre aborto.
Estes e outros argumentos foram construídos com muito cuidado e têm a solidez suficiente para demonstrar à Corte que o debate real sobre o aborto tem mudado e que este tema merece outra revisão constitucional. Depois de quase 15 aos de implementação do marco constitucional atual, temos fortes razões para dizer que o aborto não deve ser uma questão de direito penal, mas uma questão de políticas de saúde ou políticas públicas. Concluindo, nossa demanda foi admitida pela Corte Constitucional em setembro de 2020, o que significa que a Corte considerou que há uma possível controvérsia constitucional que precisa ser discutida.
Avanços na demanda de Causa Justa
É importante destacar que o Movimento Causa Justa não apenas tem como objetivo estabelecer um modelo legal, mas que também busca eliminar as causas do estigma do aborto e fortalecer a mobilização social. Para conseguir, toda a estratégia legal foi construída junto com uma estratégia de comunicação e de mobilização social. Temos conseguido estar constantemente na agenda pública e, inclusive, alguns líderes importantes de opinião, de diversas expertises que não tinham falado sobre o aborto antes, o fizeram, em termos gerais, para apoiar nossa Causa.
Além disso, 114 amicus curiae de especilaistas nacionais e internacionais também estão respaldando nossa demanda perante a Corte Constitucional, dando suas opiniões periciais a partir de diferentes pontos de vista à Corte. Estes documentos provêm de especialistas em direito penal, constitucional e de direitos humanos, profissionais da saúde, líderes de mulheres indígenas, organizações afro-colombianas, organizações LGTBIQ+ e organizações locais, entre outros.
Esperamos que a Corte Constitucional colombiana decida seguir adiante com nossa demanda, convertendo o país em um exemplo destacado na região, constituindo um precedente para os direitos reprodutivos das mulheres e marcando uma nova era na qual as mulheres possam decidir livremente sobre seus corpos sem a ameaça de uma sanção penal.
Se conseguimos que a Corte Constitucional elimine o delito de aborto do Código Penal, a Colômbia passaria – junto com o Canadá – a fazer parte dos Estados que abordam a prestação de serviços de aborto a partir de uma perspectiva de saúde pública e de direitos humanos, e não a partir de um ponto de vista do direito penal, reconhecendo a autonomia reprodutiva das mulheres e seu status como cidadãs plenas e livres para decidir sobre seu projeto de vida.
[1] Este artigo está baseado na apresentação que as autoras fizeram para o seminário virtual no Center on Law and Social Transformation em fevereiro de 2021. O original em inglês pode ser consultado em: https://www.lawtransform.no/publication/blogpost-causa-justa-movement-for-the-elimination-of-abortion-crime-in-colombia/
[2] Ver: https://causajustaporelaborto.org/
[3] Ver um resumo da sentença: https://www.womenslinkworldwide.org/files/1353/extractos-de-la-sentencia-de-la-corte-constitucional-que-liberalizo-el-aborto-en-colombia.pdf
[4] A partir da sentença C-355/2006, a Corte Constitucional colombiana julgou mais 20 de sentenças relacionadas com o direito ao aborto. Ver:
[5] Ver: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/25555761/
[6] Ver: https://ngx249.inmotionhosting.com/~despen5/wp-content/uploads/2019/02/12.-Barreras_IVE_vf_WEB.pdf
[7] Jaramillo Sierra, I.C.; Santamaría Uribe, N. and Forero Mesa, W. A Criminalização do aborto na Colômbia. 2020. Em processo de publicação. Universidade dos Andes. A Mesa pela Vida e pela Saúde das Mulheres. Este estudo analisou bases de dados da Promotoria Geral da Nação com 4.834 casos de aborto entre 1998 e julho de 2019.
[8] Ver:
[10] Ver a Demanda de Inconstitucionalidade na lei penal que regula o aborto na Colômbia.
[11] Ver: https://despenalizaciondelaborto.org.co/wp-content/uploads/2019/12/Libro-IVE-Migrantes.-VF.pdf y https://despenalizaciondelaborto.org.co/wp-content/uploads/2020/12/Inf-tecnico-Covid19-v9-1.pdf
[12] De acordo com os dados proporcionados pela Procuradoria Geral da Nação, do total dos homens indiciados (861), 5,63% correspondem a profissionais de saúde. Entretanto, não se reportam dados acerca de mulheres profissionais de saúde pelo mesmo crime.
[13] Ver: https://globaldoctorsforchoice.org/wp-content/uploads/Stigma-in-abortion-provision-protecting-providers-2.pdf. y https://www.dejusticia.org/publication/lejos-del-derecho-la-interrupcion-voluntaria-del-embarazo-en-el-sistema-general-de-seguridad-social-en-salud/
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