Mudanças climáticas e injustiças territoriais: expressões do racismo ambiental

No último artigo da série Março de #lutafeminista, Mércia Alves faz uma análise interseccional sobre os impactos das injustiças socioambientais e as consequências do racismo ambiental na vida das mulheres.

| Artigo de Mércia Alves* | Edição e Revisão: Fran Ribeiro | Artes: Lara Buitron e Oyá Design

Nas ações do movimento feminista em razão do 8 de Março, Dia Internacional de Luta das Mulheres, o tema do enfrentamento ao racismo ambiental esteve presente como uma das lutas pela dimensão que este crime assume na vida das mulheres, conectado à dimensão estrutural do racismo. E isso é real, no campo, na cidade, nas águas e nas florestas!

Nos deparamos cotidianamente com as expressões do racismo ambiental e seus impactos em razão das mudanças climáticas. São alterações na temperatura e no clima, que vem se complexificando nos últimos tempos como resultado de um modelo de desenvolvimento predatório, exploratório nos territórios e das riquezas naturais. Esse é um problema mundial que através de empresas multinacionais promove intervenções nos territórios que contaminam o solo, as águas, as florestas, impactando os modos de vida da população de forma desigual e diferente. Seja nas áreas urbanas ou rurais, são impactos que tem como consequência deslizamentos, enchentes, contaminações de rios e mares. Uma ação humana que incide, pela façanha do capital, sobre a vida nos territórios e que associada aos eventos naturais como as chuvas, torna-se um desastre socioambiental.

Podemos visualizar essas consequências nas ondas de calor com aumento da temperatura, na desertificação de regiões no nordeste e sul do país, nas inundações, deslizamentos de encostas, enchentes, envenenamento de frutos e rios, dentre outros. E ao incidir nesse processo predatório à luz de um modelo de “desenvolvimento” desigual, as consequências afetam populações que pela construção social do racismo, moradores e moradoras de periferias urbanas, são majoritariamente de negros e negras, cerca de 56%1 da população brasileira. 89%2 da população brasileira vivem em áreas pobres e destas, 67% são moradoras de áreas periféricas – favelas, comunidades, ZEIS (Zonas Especiais de Interesse social) nas regiões metropolitanas do país.

E por que falamos de racismo ambiental? O racismo é uma construção social que incide nas relações sociais em suas diferentes dimensões e o ambiental é um desses campos onde visualizamos na vida concreta, a degradação territorial diante da falta de investimento de recursos públicos ou pela anuência para realização de empreendimentos em diferentes escalas. Eles imprimem impactos nos territórios ocupados pela maioria de população negra, indígena, tradicional – pescadores e pescadoras. O que demonstra que nestes espaços onde se produzem danos e crimes ambientais que resultam em tragédias, são lugares ocupados por pessoas que têm determinada cor e sexo. A partir de uma análise interseccional, é possível perceber que o racismo ambiental está na vida real de mulheres negras e pobres moradoras de territórios precarizados.

Os crimes ambientais como Brumadinho, como o derramamento de petróleo no litoral nordestino e as chuvas de norte ao sul do país cada vez mais volumosas são diretamente, consequências da exploração desmedida por empresas nacionais, multinacionais e grandes construtoras, que com suas intervenções promovem alterações, com anuência do estado, do desenho dos territórios, ampliando a presença de fábricas, condomínios de luxo, prédios, gentrificando as cidades.

É preciso olhar o presente e compreender a nossa formação social, que em se tratando da população negra no pós-abolição, foi expulsa dos seus locais de trabalho e moradias. Sem uma política estatal de apoio ou transição, migraram para áreas urbanas e foram forçadas a reconstruírem modos de vida nas periferias das cidades, nas encostas, nos leitos dos rios. Essa dimensão da formação social colonial-racista do Brasil é uma chave de leitura para analisarmos a negritude que habita em locais com moradias precárias, sem água e saneamento ou coleta regular de lixo, sem pavimentação de ruas, transporte precário, sem o direito à terra urbanizada. Em síntese é o racismo ambiental pela ação do capital e do estado, que de forma perversa coloca para esta população a responsabilidade pelas consequências dos desastres ambientais por estarem morando em áreas de riscos.

Por fim, termos o conceito de racismo ambiental como lente para analisarmos os impactos das mudanças climáticas é fundamental, numa perspectiva sócio-histórica, para desvelar o discurso de que os problemas e consequências da crise climática são exclusivamente pela ação individual dos sujeitos com o meio ambiente. Há um modelo de desenvolvimento em curso desde a colonização do país que é predatório, de exploração das riquezas e de corpo, sobretudo indígenas e negros(as), de forma violenta. E essa relação se reconfigura em tempos atuais através de empresas, donas do capital, que promovem a exploração dos bens comuns e naturais, sobre o pretenso discurso da sustentabilidade ambiental, mas que ao final promove o sequestro destas riquezas, promove danos às terras produtivas e de maneira subjetiva, promove danos à população que vive e tem modos de vida naquele local.

Um país que estrutura suas relações na divisão de classe, no racismo e no sexismo revela na sua dinâmica territorial essas relações que são violentas sobre corpos racializados e feminilizados. E o ambiental – como modos de vida – é a materialidade, o concreto dessas relações perversas que nega e naturaliza a pobreza urbana e rural que se configura nos territórios, seja pela precariedade dos serviços sociais e públicos urbanos, seja pela exploração e mercantilização dos direitos.

Essa realidade perversa do racismo ambiental é enfrentada diariamente pela luta organizativa e é secular, porque desde do processo de colonização e escravidão deste país que essa questão se apresenta e se reconfigura no tempo. Nossa luta diária é por um modelo de desenvolvimento menos predatório, compartilhado coletivamente pelo que se produz. Mas o que estrutura esse sistema é a individualidade e o lucro. Por isso nossa luta é todo dia.

*Mércia Alves é doutora em serviço social, educadora e pesquisadora do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia. É militante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e do Fórum de Mulheres de Pernambuco/AMB.

1. Dados do CENSO/IBGE 2020.

2. Dados da pesquisa do Instituto Locomotiva, em parceria com o Data Favela e a Centra Única das Favelas (Cufa). Acesso em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/cerca-de-8-da-populacao-brasileira-mora-em-favelas-diz-instituto-locomotiva/

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