Relatar minha vivência partindo de uma referência audiovisual é estimulante e, inclusive, útil como ponto de partida para pensar que coisas mudaram no deserto australiano, do qual pouco sabemos se não por meio de documentários ou histórias sobre animais e insetos mortais. O primeiro que direi é que o deserto é tudo menos o que imaginamos que é.
Por Sofía Villalba Laborde, em Cuerpos Políticos, na Revista Bravas Nº13
Quando estreou o filme As aventuras de Priscilla, rainha do deserto em 1994, eu tinha apenas 4 anos. A vi quando já me encontrava aqui, no mesmo lugar que as personagens e vivendo a experiência mais inesperada.
O filme é uma interessante contribuição audiovisual em relação à luta das pessoas LGBT+. A história transcorre na Austrália, entre Sidney e o “outback”, o deserto do Território do Norte. As personagens são três drag queens e a trama tem a ver com suas trajetórias pessoais, com uma permanente remissão à discriminação, violência e, em particular, à exclusão por parte do entorno familiar em que vivem as pessoas dentro desse coletivo.
Igual às personagens, atravessei a rota Stuart Highway que une o Estado do Sul com o do Norte e cruzei o país de ponta a ponta. É uma rota onde predomina a aridez e as formações rochosas. O deserto australiano se caracteriza pela terra de cor vermelha, as altas temperaturas durante o dia e as temperaturas abaixo de zero no inverno. Sim, como bem mostra o filme, é verdade que há muitíssimas, muitíssimas moscas.
Entre uma ampla variedade de répteis e aracnídeos, a rota do deserto tem alguns pequenos povoados, comunidades e também os conhecidos hotéis de rota, chamados em inglês “roadhouses”. Acho que um dos lugares mais impactantes é Coober Pedy, um povoado construído de forma subterrânea devido às altas temperaturas, onde uma das personagens vive uma cena de violência física.
Foto: Sherlyn Saadi
Visibilizando estereótipos
As três drag queens aceitam o desafio de realizar um show na cidade do meio do deserto sabendo que isso não só implica uma travessia longa e árida, mas também a possiblidade de que seu show não seja aceito pelo público. E é aqui onde me parece interessante me deter e conversar sobre alguns estereótipos que atravessam o filme.
Minha primeira observação a respeito tem a ver com que o filme mostra um claro contraste entre as mulheres e homens da cidade e as pessoas que habitam o deserto. É verdade que há determinadas vivências, linguagem e inclusive expressões culturais que são particulares desta região e não das cidades, porém isso não significa que no outback alguém tenha que viver, necessariamente, mais discriminação que na cidade.
Outro estereótipo é o de mostrar mulheres ou identidades não hegemônicas viajando por longas rotas. O manejo de um automóvel, enfrentar um acidente e, inclusive, entrar em um bar para beber se mostra como um desafio para quem opta pela rota do deserto.
O terceiro estereótipo – e o mais preocupante – é a forma com que se mostram as populações indígenas. Isso não é algo próprio do filme, mas que existe a nível geral, e se trata de uma romantização que assenta suas raízes na discriminação e invisibilidade que estas pessoas sofreram inclusive em espaços institucionais.
No Estado do Norte, 35% da população corresponde aos “Aboriginals” – sua denominação em inglês –, que vivem não apenas na cidade de Alice Springs, mas também em comunidades das zonas remotas e isoladas do deserto. Essa população teve que sustentar um estado de permanente luta e resistência por seus territórios, conseguindo recentemente, em 1992, que fosse oficialmente revogado o princípio “Terra nullius”, que estabelecia que o território australiano se encontrava desocupado quando chegaram os britânicos. Porém a população indígena sofreu um deslocamento não apenas a nível territorial. Em 2007, durante o governo do Primeiro Ministro Kevin Rudd, foi apresentada uma desculpa nacional e, no ano seguinte, uma desculpa às “gerações roubadas”, o sequestro massivo de bebês que ocorreu entre os anos de 1869 e 1976 por parte do governo australiano. Não só neste filme, mas em várias expressões audiovisuais e artísticas, é possível notar a romantização das populações indígenas, mostrando somente a parte artística e cultural de suas comunidades. Elas são representadas quase exclusivamente realizando cantos que fazem parte de sua tradição, fogueiras e danças. Não quero dizer com isso que o filme deveria ter abordado esta problemática, mas quero chamar a atenção sobre o chamativo e preocupante que é este padrão de abordagem da vida das populações indígenas, que se repete em todas as partes do mundo, em todas as épocas.
Há mais de uma década, o Estado australiano desenvolve políticas públicas nas comunidades, tais como a chamada “Intervenção do território Norte” ou a “Responsabilidade compartilhada”. Este tipo de intervenções se apresenta como urgentes devido à desigualdade que vive esta população em termos educacionais e de saúde, que resulta na necessidade de estabelecer restrições no consumo de álcool e no acesso a determinados espaços recreativos, especialmente visando à proteção da infância. Assim, das diversas formas de gerar e implementar políticas públicas, a escolhida pela Austrália é o tipo de política “de cima”, que não incluem em seu desenho a voz da própria população sobre a que será implementada. Isso dá conta do paternalismo e indiferença que sente o país para com sua própria população indígena, que se traduz em uma vulnerabilidade dos direitos humanos histórica e alarmante. Quando pensamos no conceito de desenvolvimento, é possível colocar a Austrália dentro da lista de países candidatos a cumprir com esse modelo. Contudo, deveria realizar-se urgentemente uma revisão do que isso significa, já que a forma de fazer política pública – especialmente em torno desta população – também deveria fazer parte do que se entende como “desenvolvimento” na hora de pensar na organização de um país. O desenvolvimento não deveria ser medido apenas em termos econômicos.
Foto: Sherlyn Saadi
26 anos e vários quilômetros mais tarde
Terminar 26 anos depois, de forma inesperada, dormindo nos mesmos lugares que as personagens do filme – no hotel Lasseters, por exemplo – foi para mim emocionante, mas, sobretudo, foi uma experiência que me interpelou muito. Se o destino não me trouxesse até aqui, nunca teria me dado conta da histórica e sustentada vulnerabilidade de direitos da população indígena australiana.
O isolamento do deserto é algo latente todos os dias, que se acentua quando pegas a carteira e te das conta de que aqui o dinheiro não se usa no cotidiano, porque o capitalismo não resiste com facilidade às altas temperaturas e à aridez do meio do nada.
Isso não é algo a que estejamos acostumadas. Cada noite, quando as luzes se apagam e se acende o céu, ver a via láctea me lembra onde estão as prioridades. Cada lugar considerado reserva natural tem uma mistura de mistério geográfico com história e espiritualidade; cada lugar sagrado conserva intacta uma energia que pode ser sentida, como em Devils Marbles, quando o pôr do sol ilumina as formações rochosas e os “sonhadores” que ali descansam se entregam para a noite.
A 26 anos deste filme, não tenho nenhuma dúvida de que as situações de abuso, discriminação e violência vividas pelas personagens poderiam se repetir hoje em dia. Porém isso não acontece só no deserto: essa é a parte mais interessante. Priscilla é um filme que mostra, com uma coloração estereotipada, o antagonismo da cidade com o outback. Mas é um relato bastante fiel sobre o direito de ser quem somos e de transitar pelas rotas que queiramos.
As mulheres e dissidências sexuais e de gênero podemos viajar sozinhas, podemos consertar carros que se quebrem na rota, podemos entrar em um bar no meio do deserto para tomar uma cerveja embora, 26 anos mais tarde, continuem nos olhando duas vezes quando nos veem chegar.