Na próxima edição dos Cadernos de Crítica Feminista (no prelo), focaremos o debate sobre Democratização da Comunicação e Direitos das Mulheres. Neste artigo, trazemos a análise de Bia Barbosa e Iara Moura, integrantes da Coordenação do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e a Rede Mulher e Mídia. O texto apresenta dados do cenário midiático no Brasil, dentro de um quadro regulatório complexo e desfavorável ao exercício do direito à comunicação.
Por Bia Barbosa e Iara Moura*
A globalização tem acentuado fortemente o processo de concentração da mídia em grandes organizações corporativas, nas mais diferentes regiões do planeta. Há 25 anos, por exemplo, 50 corporações dominavam o mercado de mídia nos EUA. Eram 23 no início da década passada. Hoje são cinco. No Brasil, a situação – apesar de contrariar a Constituição de 1988 – não é diferente, como bem descreve Fábio Konder Comparato:
“A vida política, como todas as formas de relacionamento social, pressupõe a organização de um espaço próprio de comunicação. No regime democrático, esse espaço é necessariamente público, no sentido etimológico da palavra, porque o poder político supremo (a soberania) pertence ao povo, e é ele que deve, por conseguinte, decidir em última instância, se não diretamente, pelo menos por meio de representantes eleitos, as grandes questões de governo. Na realidade, porém, a organização do espaço público de comunicação – não só em matéria política, como também econômica, cultural e religiosa – faz-se, hoje, com o alheamento do povo ou a sua transformação em massa de manobra dos setores dominantes. Assim, enquanto nos regimes autocráticos a comunicação social constitui monopólio dos governantes, nos países geralmente considerados democráticos, o espaço de comunicação social deixa de ser público, para tornar-se, em sua maior parte, objetivo de oligopólio da classe empresarial, a serviço de seu exclusivo interesse de classe.” (Comparato, 2001)
Leia-se o “a serviço de seu exclusivo interesse de classe” como a compreensão e utilização dos meios de comunicação de massa como um espaço de produção e reprodução de ideologia. Ao realizarem seus valores de uso, as mercadorias informação e entretenimento, produzidas pela grande mídia, veiculam ideologia. Quando as grandes empresas de mídia vendem seus produtos, não estão apenas vendendo as bases de seu sustento material, mas também suas concepções de mundo, seus valores. Diante do poder que os grandes grupos de comunicação têm de transmitir seus conteúdos, muito maior do que o poder de qualquer cidadão sem acesso aos meios de produção e veiculação de comunicação, a desigualdade na disputa ideológica se torna brutal. Instaurando, com seu poder, um espaço público autoritário, a mídia e sua monofonia destruíram a relação horizontal própria da democracia clássica. São poucas vozes falando e uma massa passiva ouvindo, sem poder exercer seu direito à liberdade de expressão e à comunicação.
Segundo informações do Epcom – Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação, apenas quatro redes privadas nacionais de televisão aberta e seus 124 grupos regionais afiliados controlam 843 veículos de comunicação. Seu vasto campo de influência se capilariza, por exemplo, por 248 emissoras de televisão, 245 emissoras FM e 65 jornais.
A análise do cenário midiático no Brasil também mostra um quadro regulatório complexo e desfavorável ao exercício do direito à comunicação. O Código Brasileiro de Telecomunicações é de 1962, modificado em 1967 durante a ditadura militar, e reduzido a fragmentos depois da aprovação da Lei Geral das Telecomunicações (lei 9.472/1997), que manteve válidos no antigo código apenas os artigos relativos à radiodifusão.
Mais de 25 anos desde sua promulgação, os principais artigos da Constituição Federal relativos à Comunicação Social também permanecem sem regulamentação – entre eles, o que impediria o oligopólio dos meios de comunicação (art. 220) e o que criaria exigências mínimas de programação para as emissoras de rádio e televisão (art. 221). A ausência de regulamentação também atinge o art. 223, que estabelece o princípio da complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal na radiodifusão, resultando hoje no fato de as emissoras serem majoritariamente controladas por empresas privadas.
Paralelamente, rádios comunitárias são perseguidas como criminosas e seu processo de legalização é sujeito a regras limitantes, que estabelecem o máximo de uma frequência por localidade, alcance máximo de um quilômetro de raio e proíbem publicidade comercial como meio de sustentação dos canais. Recentemente, em virtude da escolha do padrão de TV digital para o país, o governo federal cedeu aos lobbys do setor privado e, ignorando as pesquisas nacionais e a possibilidade de desenvolvimento da indústria nacional, abandonou a oportunidade histórica de incluir mais atores na mídia e democratizar as comunicações.
Apesar da expansão da internet e dos impactos altamente positivos da rede em termos de circulação da diversidade de visões de mundo, ainda hoje metade da população brasileira não pode ser considerada usuária da rede mundial de computadores. Assim, a real influência no processo de formação das ideias e costumes sociais do conjunto da população brasileira, e na formação da chamada opinião pública, é em grande parte reservada aos grupos econômicos beneficiados com concessões (públicas, nunca é demais lembrar) de rádio e televisão. As demais organizações sociais estão excluídas deste processo. Como afirma Suiama:
“[…] parece-me inegável que os grupos econômicos beneficiados com as concessões (públicas) e rádio e televisão apropriaram-se do espaço público de comunicação. Assistimos hoje, passivamente, ao monólogo promovido pelos órgãos de mídia, sem a possibilidade efetiva do confronto de ideias necessário ao pleno exercício da democracia (art 1o, inciso V, da Constituição da República)” (Suiama, 2002)
Importante pesquisa realizada em 2013 pela Fundação Perseu Abramo sobre a relação da sociedade com os meios de comunicação de massa revelou que, para 35% dos entrevistados, os veículos representam apenas os interesses de seus donos e, para 32%, os interesses dos mais ricos. Apenas 8% acreditam que a mídia representa os interesses da maioria da população.
Consequências para a vida das mulheres
Neste quadro de alta concentração, apropriação privada dos meios e ausência de diversidade na mídia, as consequências para grupos sociais já marginalizados socialmente – das mulheres às pessoas com deficiência, dos/as idosos/as aos jovens, da comunidade LGBT às classes populares – não poderiam ser diferentes em termos de representação simbólica e midiática. Dia-a-dia se alternam nos meios de comunicação de massa conteúdos ligados a uma visão de mundo elitista, patriarcal, machista, racista, lesbo-homo-transfóbica, pouco comprometida com o respeito aos direitos humanos. Isso porque a busca pela diversidade na esfera pública midiática só se realiza plenamente com a prática da comunicação por todos os diferentes setores sociais. Não basta, assim, as mulheres aparecerem na TV numa proporção e tratamento equânime; é preciso ter mulheres produzindo conteúdos audiovisuais. É preciso ter o povo produzindo seus próprios programas e sua própria mídia. Do contrário, as desigualdades sociais não apenas se reproduzirão no espaço midiático como também passarão a ser legitimadas pelos meios.
Se fizermos um exercício de lembrar os casos mais emblemáticos de machismo na TV brasileira, constataremos que há um lugar comum já estabelecido em nossa cultura, que se reveza entre representações de mulheres como objetos e produtos (sexuais, na maior parte das vezes), super-heroínas “pós feministas”, mães e/ou “cuidadoras” idealizadas, rivais e vítimas. Por outro lado, as chamadas vozes especializadas dos conteúdos jornalísticos ainda são preponderantemente masculinas ou ainda “masculinizadas” pelo discurso midiático. Apesar de sermos maioria nas redações, a referência às mulheres como fontes de informação especializada não chega a 25% do total de pessoas entrevistadas nos telejornais, segundo dados de 2010 o levantamento “Quem faz as notícias?”, resultado de um projeto global de monitoramento dos meios, atualizado a cada cinco anos. Mesmo quando a mídia trata de temas como a violência contra as mulheres, parte não desprezível dos canais o faz de forma a espetacularizar esta violência, muitas vezes a banalizando e, assim, naturalizando-a. Sem falar na invisibilidade seletiva, sobretudo das negras, indígenas e lésbicas e mulheres trans, mas também de nossas reivindicações sociais e políticas.
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* Bia Barbosa é jornalista e especialista em Direitos Humanos pela USP, e mestre em políticas públicas pela Fundação Getúlio Vargas. É integrante da Executiva do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), da Comissão Nacional de Ética dos Jornalistas e é coautora dos livros “A Sociedade Ocupa a TV – O caso Direitos de Resposta e o controle público da mídia” e “A quem pertence o corpo da mulher”. Iara Moura é jornalista formada pela Universidade Federal do Ceará e mestra em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense, com a dissertação “Mulheres sem classe? Mídia e classe social num Brasil em ascensão (2015)”. É autora do Guia Mídia e Direitos Humanos (Intervozes, 2013). Ambas integram a Coordenação do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social (www.intervozes.org.br) e a Rede Mulher e Mídia.