Instrumentalização do Disque 100 por Governo Bolsonaro fragiliza luta por Direitos Humanos

Após pressão de movimentos sociais, o STF, em decisão publicada no último dia 14 de fevereiro, proibiu o uso do Disque para impulsionar a campanha antivacina. Imagem: Pixabay

Por Lenne Ferreira/Cendhec, em afrontosas.org.br

Uma faixa com a frase “Sejam todes bem vindes” virou foco de uma série de críticas à diretora de uma escola da Região Metropolitana do Recife. O uso da linguagem neutra numa aula virtual também levou uma professora a ser escorraçada na cidade de Vitória.  Ambos os casos, ocorridos em 2021, chamam a atenção sobre a importância do debate sobre a abordagem de conteúdos relacionados a gênero e sexualidade nas escolas públicas, que vem sofrendo com a censura por parte de setores conservadores da sociedade. Há poucos dias, a discussão ganhou um novo capítulo a partir de uma medida do governo federal, que tornou o “Disque 100” um canal para denúncias sobre “ideologia de gênero”, uma narrativa criada pela Igreja Católica e que foi apropriada por políticos evangélicos desconsiderando princípios básicos dos Direitos Humanos.  

Fundado em 1997 por organizações da sociedade civil, o Disque 100 é um serviço público vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) que tem entre as suas atribuições receber, analisar e encaminhar denúncias de violações de direitos. A sistematização desses dados é importante para que gestores públicos, sociedade civil e pesquisadores possam monitorar e coibir violações no país. Mas, no Governo Bolsonaro, o canal passou por uma reformulação e uma das mudanças foi a inclusão da expressão “ideologia de gênero” como motivação para violação de direitos humanos. A medida promove a vigília  a profissionais de educação que abordem temas relacionados com orientação sexual e identidade de gênero nas escolas. 

Falar sobre identidade de gênero na escola não é para ensinar o que a pessoa tem que ser. É ensinar que existem diferenças e que o mundo é diverso”, afirma Alehxya Suzana, da Amotrans-PE.

“Esse governo tem um caráter conservador protofascista, teocrático e que destrói e distorce o que é uma política de igualdade de educação numa perspectiva da igualdade de gênero no âmbito escolar mas também no âmbito da sociedade”. A declaração é da assistente social, educadora do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia, Mércia Alves. Para a ativista, a instrumentalização do Disque 100 representa o “modo operante de um governo que tem um ministério da família que exclui medidas que atendam, de fato, aos princípios éticos dos Direitos Humanos conforme a luta histórica para reconhecer mulheres, população LGBTQIA+ como sujeitos de direitos”. Mércia acredita que esse tipo de política também viola a proteção dos direitos de crianças e adolescentes.  

Diferentemente do que disseminam cristãos conservadores, identidade de gênero não é uma “ideologia” que quer influenciar a cabeça das crianças nem “transformar meninos em meninas”. O conceito está relacionado com a maneira como cada pessoa se enxerga enquanto indivídua (o) e se expressa na sociedade, independentemente do seu sexo biológico e sem se restringir a um “modelo padrão” do que se entende por comportamento masculino ou feminino. Essa ruptura com o que está imposto pelo senso comum desencadeou o surgimento do termo “ideologia de gênero”, que apareceu primeiro em textos doutrinários da Igreja Católica em meados da década de 1990, mas foi resgatado nos últimos anos especialmente por evangélicos. Alguns deles atuam nas esferas de poder promovendo a aniquilação de direitos para a população LGBTQIA+  a exemplo da atual ministra da Família, Damares Alves, que tem colocado sua visão religiosa à frente do bem estar social e respeito à diversidade, como avaliam representantes de movimentos sociais.  

A Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais-PE (Amotrans), fundada em 2018, repudia o uso do Disque 100 para promover o retrocesso de direitos que ainda vem sendo construídos e conquistados. Integrante da entidade, Alehxya Suzana Deca acredita que apenas por meio da educação é possível combater a violência contra pessoas LGBTQIA+.  “Debater gênero e educação sexual na escola é muito importante porque ensina crianças e adolescentes a se relacionarem melhor, a ter um entendimento que todos são iguais, mas o mundo é diverso. Falar sobre identidade de gênero na escola não é para ensinar o que a pessoa tem que ser. É ensinar que existem diferenças e que o mundo é diverso”, afirma a ativista. 

Uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), protocolada no dia 8 de fevereiro pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS) em articulação com ativistas e operadores de direito que atuam na defesa dos direitos humanos. O grupo moveu uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), enumerada 942, que aponta que o governo federal, em total desacordo com a jurisprudência do STF, vem usando o Disque 100 para constranger profissionais de educação, de saúde, demais cidadãos e instituições com perspectivas diferentes às do governo federal em questões como vacinação, identidade de gênero e orientação sexual.

Essa instrumentalização é claramente uma violação que só contribui ainda mais para uma cultura de ódio na sociedade impondo um contexto de obscurantismo, ignorância e perseguição, criminalizando os profissionais em sua atuação constitucional e autonomia acadêmica em sala de aula”, reforça a educadora Mércia Alves.

Para ela, o problema é ainda maior por também criminalizar organizações que atuam em defesa dos direitos no âmbito da comunidade escolar e sócio comunitário.

Disseminação do negacionismo 

Desde o início da pandemia, Ciência tem sido colocada em cheque pelo Governo Bolsonaro e seus seguidores. Foto: Reprodução

Os imunizantes contra a Covid-19 em uso no Brasil são seguros e eficazes, o que foi atestado nas fases 1, 2 e 3 dos estudos conduzidos pelas farmacêuticas, confirmado por cientistas independentes após resultados publicados em revistas científicas e, por último, validado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Apesar de todo tipo de confirmação científica, o governo federal segue endossando o negacionismo e desacreditando a ciência por meio de posicionamentos públicos. Agora, entre as mudanças propostas pelo governo para o Disque 100 está a inclusão de exigência da vacinação como um tipo de violação, que pode ser denunciada ao canal.

“A escola precisa ser uma espaço acolhedor, que aproxima quem a frequenta com a sua realidade”, defende a ativista Juliana Vitorino

Foto: Yane Mendes

Após pressão de movimentos sociais, o STF, em decisão publicada no último dia 14 de fevereiro, proibiu o uso do Disque para impulsionar a campanha antivacina. O órgão também determinou que pastas da Saúde e da Mulher, Família e Direitos Humanos modifiquem notas contrárias ao passaporte vacinal e à obrigatoriedade da vacinação de crianças contra a Covid-19. Outra ação da ADPF alega que o canal tem sido meio recorrente de enfrentamento às posições do STF em temas como vacinação, identidade de gênero e orientação sexual.  Nessa ação, o relator do processo já se manifestou, solicitando informações do Ministério da Mulher da Família e dos Direitos Humanos. Após resposta da pasta, o advogado-geral da União e o procurador-geral da República também devem se pronunciar.

Militante do Movimento Raiz da Liberdade e ativista política, Juliana Vitorino acredita que a não exigência do comprovante de vacinação nas escolas representa a negação da ciência e dos cuidados à população. “Tivemos o líder político do país, em cadeia nacional, negando a vacina. Vimos uma CPI que trouxe provas de que  este líder negou a chegada da vacina, acarretando em milhares de mortes no Brasil. São demonstrações do quanto foi cruel a condução da maior crise sanitária do mundo, tendo continuidade, agora, com deliberações como esta, da não obrigatoriedade de comprovação de vacinação nas escolas”. 

Para a ativista, os métodos utilizados por Bolsonaro remetem ao período da Ditadura Militar, quando a administração do país cancelou o regime democrático. “Vivenciando o hoje, posso pensar que talvez estaríamos vivendo nos anos de chumbo, quando tudo era vigiado e tudo que fosse diferente ao regime estava errado. Mas não estamos em 1964, estamos em 2022. A escola precisa ser uma espaço acolhedor, que aproxima quem a frequenta com a sua realidade”. 

Preconceito promove evasão escolar

O direito à educação para a igualdade de gênero, raça e orientação sexual e identidade de gênero tem base legal na Constituição Brasileira (1988), na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/1996), nas Diretrizes Nacionais de Educação e Diversidade, nas Diretrizes Curriculares do Ensino Médio (art. 16), elaboradas pelo Conselho Nacional de Educação, e na Lei Maria da Penha (2006). 

Esse direito também está previsto nos tratados internacionais de direitos humanos com peso de lei dos quais o Brasil é signatário: a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989), a Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino (1960), a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1968) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), entre outros. 

O próprio Plano Nacional de Educação (2014-2024), em seu artigo 2º, prevê a implementação de programas e políticas educacionais destinadas a combater “todas as formas de discriminação” existentes nas escolas, entre elas, as que se referem às desigualdades de gênero, de raça, de orientação sexual e de identidade de gênero. No mesmo artigo, o PNE prevê a promoção dos direitos humanos e da diversidade na educação brasileira. 

É justamente amparadas pela constituição que os movimentos LGBTQIA+ reivindicam políticas públicas que garantam a permanência desse grupo social no ambiente escolar. O Brasil é o país com o mais alto índice de morte de população trans no mundo, segundo estudos da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Não é possível analisar a exposição à tamanha violência sem emparelhá-la a muralha social que impede o acesso à educação: 82% da população trans sofre com a evasão escolar, de acordo com estudo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).  “A grande maioria das trans e travestis são expulsas da escola muito cedo e não é porque elas não gostam de estudar é porque não nos é permitido pelos alunos, professores que não respeitam o nosso nome social”, comenta Alehxya Suzana, da Amotrans.

A ativista Elisa Aníbal afrima que a proibição de temas como identidade de gênero nas escolas pode levar à evasão escolar. Foto: Acervo SOS Corpo.

A observação da ativista também encontra eco nas lutas de entidades feministas compostas por mulheres trans e cis como o Fórum de Mulheres de Pernambuco. Para uma das integrantes do movimento, Elisa Aníbal, que também faz parte da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), a ideia colocada por esse governo de “ideologia de gênero” é uma afronta a políticas públicas desenhadas anteriormente e construídas por movimentos sociais para tentar minimizar os efeitos das  violência nessa sociedade. 

“A gente sabe que as escolas são lugares de construção de vínculos e identificação das violências. Proibir o diálogo sobre corpo, sexualidade, violência contra mulheres, sejam cis ou trans, é proibir que essas crianças identifiquem se estão sofrendo violências. É importante lembrar que muitas crianças trans, homens ou mulheres, acabam abandonado a escola pela violência que sofrem nesses espaços. A baixa escolaridade tem muito a ver com a relação de violência dentro das escolas. Quando você impossibilita essas discussões no âmbito escolar, você está excluindo essas pessoas do direito à educação, que é universal”, encerra. 

Articulação em defesa de direitos conquistados

Na contramão das decisões autoritárias e antidemocráticas do Governo Bolsonaro, diversos movimentos sociais buscam combater retrocessos que vem gerando impactos na vida de mulheres e meninas. Apesar dos desafios, alguns avanços têm sido possíveis graças à incidência política desses coletivos e maior inserção de seus representantes nos espaços de poder. 

“Observando por uma lupa maior, podemos ver como as casas legislativas pelo Brasil estão  se desenhando de outra maneira. Hoje, temos, ocupando os ditos espaços de poder, a população então marginalizada e historicamente perseguida, negritando também que não é, ainda, o que entendemos como ideal. Esse movimento dificulta o resultado do projeto político do governo federal e de seus aliados”, avalia a ativista Juliana Vitorino.

A produção de pesquisas e levantamentos é outro instrumento que possibilita um entendimento maior sobre os problemas que atingem as mulheres. O Fórum de Mulheres de Pernambuco, por exemplo, está na construção de um dossiê de denuncia que mostra o aumento da violência contra mulheres cis e trans, crianças, adolescentes, a partir de 2020. A ideia é que esse dossiê embase a luta por políticas públicas efetivas e contra a deterioração dos serviços públicos. 

Para Elisa, do FMPE, ações de sensibilização da sociedade civil também têm sido colocadas como estratégia para defesa de direitos. “É muito importante a articulação entre movimentos, manifestações e atos para ocupar as redes e as ruas e conscientizar a sociedade”.

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