Suicídio a partir do sujeito e das relações sociais

Por Elisa Zaneratto Rosa, no BrCidades

Chegamos ao final de setembro, Setembro Amarelo, como o qualifica a campanha que cada vez mais ganha espaço e amplitude na medida em que adensa a mobilização das pessoas em torno da temática do suicídio. Tal mobilização tem suas razões de ser: os índices de suicídio, como revelaram pesquisas recentes, cresceram no Brasil, na contramão da diminuição de ocorrências em âmbito mundial. Esse crescimento concentra-se em alguns grupos populacionais, provocando-nos a olhar para a complexidade da questão.

Se muitas vezes entendemos o suicídio como derivado de um processo de “adoecimento mental” das pessoas, instiga pensar as razões pelas quais a sua incidência aumenta quando olhamos a população a partir de recortes étnico raciais, etários, regionais ou mesmo aqueles relativos ao lugar que elas ocupam no mundo do trabalho. Muito já se debateu, por exemplo, sobre as altas taxas de suicídio entre indígenas. Mais recentemente, a observação do crescimento significativo de casos de suicídio entre adolescentes e jovens brasileiros tem mobilizado nossa atenção. Em pesquisa lançada na última semana no estado de São Paulo, os números relativos aos suicídios cometidos por policiais ganharam destaque na mídia. Afinal, por que estariam essas pessoas mais adoecidas? Que doença é essa que nos acomete de forma distinta em função de onde vivemos, do que fazemos, da nossa condição de vida?

A provocação serve para olharmos para o fenômeno do suicídio antes como expressão de uma condição de sofrimento intenso do que de uma patologia. Assim temos, em verdade, defendido que sejam olhadas todas as situações outrora significadas como doenças mentais. Sem recusar o fato de que estamos diante de situações intensas de sofrimento, que requerem cuidado e atenção, ao contrário, trata-se de não reduzir essa experiência a um fenômeno que seja tomado de forma natural, como afecção que se instala nos corpos humanos. Colocar a doença entre parênteses, como nos ensinou Franco Basaglia, importante psiquiatra da Reforma Psiquiátrica italiana, para olhar a pessoa, o sujeito. Ao olhar o sujeito, encontramos uma existência concreta, que se tece no corpo social, nas relações, sob condições específicas e determinadas, ganhando assim sua singularidade. Portanto, falar de suicídio e mobilizar a população para uma perspectiva de ação e atenção comprometida com sua prevenção significa, necessariamente, falar dos sofrimentos humanos. Esses sofrimentos são singulares, mas são também sofrimentos do nosso tempo, do nosso espaço, das condições que se configuram para a vida humana em sociedade, das políticas que promovemos para que a atenção e o cuidado necessários sejam possíveis.

O recorte social dos suicídios

As altas taxas de suicídio entre indígenas nos levam a pensar muitas coisas: que sofrimentos se impõem a essa população, resultantes dos nossos modos históricos de produção de vida social, que insiste em perpetuar seu genocídio, o assassinato de seus povos e a aniquilação de sua cultura? Que relação existe entre esse sofrimento, expresso nas situações extremas como suicídio, e a centralidade da questão da terra na constituição dos povos indígenas, da produção de suas vidas, de suas identidades, de sua condição humana? Como nossas políticas e práticas de cuidado e atenção em saúde mental têm sido capazes de abarcar as especificidades dessas experiências de sofrimento e, antes até, como temos garantido para essa população políticas públicas de cuidado e atenção em saúde, além de outras políticas de acesso a direitos? Em tempos de recusa explícita do Estado a demarcação de terras indígenas, onde as disputas em torno do capital mobilizam a centralidade dessa temática na plataforma política do atual governo federal, numa perspectiva de total oposição às reivindicações históricas dos povos indígenas, se quisermos prevenir suicídio, precisamos incluir essa dimensão.

Da mesma maneira, a realidade atual nos convoca a pensar sobre o sofrimento dos adolescentes e da juventude. Não se trata de uma doença que, como epidemia, cresce nesse tempo. Crescem nesse tempo as incertezas sobre suas possibilidades futuras, num país onde o trabalho é cada vez mais escasso e precário. Crescem os desmontes de direitos que fazem recair sobre os sujeitos, cada vez mais, as responsabilidades sobre seu futuro, sobre as negociações que deverão travar em relações de poder absolutamente desiguais e perversas, diante das quais lhes resta o empreendedorismo, tão conclamado por uma sociedade que parece não perceber se desresponsabilizar pelos caminhos garantidos à sua juventude, atribuindo a eles numa lógica competitiva os rumos de seu destino. Crescem as posições fascistas, de ódio e de intolerância, que reduzem o leque relativo à diversidade de modos possíveis de ser e existir como sujeitos para esses jovens.

Poderíamos, aqui, construir reflexões sobre tantos outros exemplos que, tomando os recortes pelos quais analisamos o fenômeno do suicídio, nos levam a problematizar as condições de existência relacionadas aos processos singulares de intenso sofrimento. Afinal, como produzir vida diante dessas condições? Que caminhos temos a oferecer? Por onde é possível trilhar a continuidade da existência? Estarmos atentos, ouvirmos, nos sensibilizarmos, cuidarmos nos implica a corresponsabilização pelo percurso a ser assumido na pactuação da continuidade da vida. Portanto, falar de prevenção ao suicídio hoje é convocação de nossa implicação com o mundo em que viveremos.

Os suicídios e as cidades

Nessa perspectiva, um recorte em específico merece nosso destaque: a distribuição dos casos de suicídio entre as cidades brasileiras repete um dado que há muito vemos se repetindo: aquele relativo à maior proporção de pessoas em sofrimento psíquico grave nos grandes centros urbanos, a prevalência de determinadas patologias e transtornos nesses contextos, dados expressos nas estatísticas. Repetindo o convite feito ao longo desse texto, nos interessa pensar como determinadas formas de organizar a vida, ocupar a cidade, estar em relação promovem saúde ou são geradoras de sofrimento. Nesse sentido, todo o esforço de reconhecer as condições de vida das grandes cidades, em suas múltiplas dimensões, é bem-vindo.

Podemos falar das desigualdades que marcam essas cidades e das vivências que acompanham essas desigualdades. Podemos reconhecer o modo como o Estado atua na gestão dessas desigualdades, por meio de sua face violenta, da repressão policial e dos alvos que elege ao longo da história, operando políticas higienistas. Podemos identificar aspectos que impactam qualidade de vida, do ponto de vista das dificuldades de circulação humana, de acesso a lazer, de condições de trabalho. Devemos, aliás, reconhecer as diversas informalidades que se configuram como possibilidades de trabalho nas grandes cidades. Podemos, ainda, falar de direito ao lazer, de ocupação pública, de garantia de espaços de participação, de pertencimento, de constituição de redes de relação e de solidariedade, tão prejudicados nas grandes cidades. Precisamos, ainda, reconhecer a precariedade de investimento em políticas públicas que possam responder aos desafios das grandes cidades, em sua complexidade, atendendo às necessidades dos sujeitos de modo a legitimá-las como direitos antes de transformá-las em mercadorias e lançá-las ao mercado, exigindo das pessoas a competitividade necessária para sua aquisição. Essas configurações da realidade social que vivemos nas grandes cidades se traduzem como afetos na singularidade de cada existência e mais uma vez transformam, no setembro amarelo, a mobilização pela prevenção ao suicídio na necessária mobilização por uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais equânime.

O convite ao olhar para os sujeitos concretos inseridos em determinadas condições de vida amplia nosso desafio como os parceiros atentos ao sofrimento do outro. Dar as mãos a esse sofrimento é assumir a corresponsabilização pela tessitura de outras vidas possíveis. Se for mais fácil a nossa sensibilização para a parceria na superação a uma doença, a notícia é que a sensibilização precisará nos deslocar de muito lugares, convocando-nos a uma pactuação ética pela defesa da vida, da diversidade, da igualdade. Uma pactuação com a defesa de políticas públicas sociais que garantam às nossas cidades educação, saúde, esporte, lazer, assistência e trabalho como direitos. A ética da vida é, nesse tempo histórico, a ética da defesa de direitos.

Fonte: Outras Mídias.

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