O desafio da agenda urbana na Conferência Popular pelo Direito à Cidade
Por Mércia Alves, Assistente Social, educadora do coletivo político profissional SOS Corpo.
Nos últimos 10 dias estamos vivenciando no estado de Pernambuco os inúmeros impactos das chuvas em diferentes lugares, bairros, comunidades, atingindo fortemente áreas de encostas, morros, das cidades na RMR. As perdas são inúmeras e contabilizadas em mais de 128 mortes, 9 mil desabrigades e 24 municípios em estado de calamidade pública. Diante de tal catástrofe, que se repete ao longo de décadas e registra os reflexos, a ausência e a fragilidade de um planejamento urbano para as cidades, visualizamos as reais desigualdades nestes territórios, a cegueira pública diante do déficit quantitativo de moradia, a criminalização das pessoas atingidas pelas enchentes, e o racismo ambiental revelado na tragédia em curso.
Com o objetivo de criar uma articulação nacional entre organizações, movimentos e coletivos engajados na luta urbana em seus território, está acontecendo agora a Conferência Popular pelo Direito à Cidade. A iniciativa é nacional, autogestionada e pretende contribuir com a construção de uma plataforma que traga em sua pauta a agenda das cidades em suas diferentes conexões e articulações no campo da política urbana, dando centralidade aos sujeitos que vivem nas cidades. Ela iniciou hoje, 3 de junho e vai até domingo, dia 5, em São Paulo.
A luta história do movimento de reforma urbana – que data dos anos 1960 e se consolida nas primeiras décadas do século XXI – entende a política urbana como uma ação estatal e um sistema de participação social que, por meio de um amplo debate democrático em conselhos e conferências, definia as linhas e orientações da Política Nacional Urbana – habitação, terra e legalização da posse, saneamento, mobilidade e acessibilidade urbana.
Todo esse processo de luta foi impactado pelo crescente conservadorismo, pela política de governança dos 13 anos do partido de trabalhadores, pelo golpe institucional e midiático de 2016. As eleições de 2018, que levou à presidência um governo de caráter civil-militar-teocrático e protofascista, só acentuaram a onda regressiva no âmbito da política urbana, com a desinstitucionalização do CONCIDADES, desestruturação da política nacional de urbana e seu desfinanciamento. Os ataques às políticas urbanas só colocavam à margem da institucionalidade e do debate político a agenda das cidades, em meio a um crescimento da pobreza, desemprego, fome, famílias sem-teto, violências sexistas, genocídio da população negra, racismo ambiental e o incremento da favelização pela crise econômica, política e sanitária em curso.
Esse cenário, a conjuntura adversa a luta política, em especial a falta de moradia, acesso à água de qualidade, saneamento ambiental, transporte coletivo em condições adequadas, criminalização das lutas e das ocupações urbanas, que afetam de forma diferenciada e desigual os sujeitos que habitam as cidades – do Oiapoque ao Chuí, impulsionou a construção dessa Conferência Popular. Sabemos que, além das desigualdades regionais, o impacto dos modelos de desenvolvimento que mercantilizam as cidades e os bens naturais, diversificam nossas análises sobre as desigualdades de classe, gênero/sexualidade e racial nas vivências territoriais.
É, portanto, essas desigualdades territoriais, interseccionais, além dos ataques regressivos, conservadores política e economicamente, que motivaram a realização dessa conferência popular. Para demarcar na agenda política, promover fortalecimento organizativo, a plataforma urbana, vai ser consolidada através de debate nacional e local cujo resultado será a culminância de um processo desencadeado desde setembro de 2021 com mais 360 adesões à carta de mobilização inicial, 230 atividades preparatórias, e aproximadamente 700 participantes para Conferência Popular pelo Direito à Cidade. Muitos corpos políticos participam da construção e realização dessa iniciativa.
Sabemos que o déficit, a carência por serviços e políticas urbanas que efetivem o direito à cidade, ainda traz em si um valor utópico. Muites de nós sequer tem no seu cotidiano o acesso à água potável. Por isso o déficit em saneamento se complexifica diante das desigualdades regionais e campo-cidade. Assim, se é negado o direito à cidade em um de seus níveis mais primordiais (ir e vir, viver a cidade), a vida política e cultural torna-se um direito distante frente ao sexismo e o racismo, acentuado com a militarização nos territórios e o sequestro e violências políticas institucional sobre os corpos das mulheres das cidades, campo, dos territórios de populações tradicionais e originárias.
Nos interessa neste momento, aproveitando o processo coletivo nacional da conferência popular pelo direito à cidade, demarcar as desigualdades na vida das mulheres, pobres, negras, trabalhadoras, nesta vivência nas cidades. O cotidiano é revelador das desigualdades da vida nas cidades, bairros, favelas, comunidades, em territórios marcados por um ir e vir violento, pelas expressões do patriarcado e racismo na estrutura que constituem essas cidades, cujos traçados, monumentos e símbolos reproduzem a cisão entre o trabalho produtivo e reprodutivo, público e privado, entre o mundo da casa e o mundo da rua, entre a vivência de homens e mulheres, ressaltando as desigualdades nas relações sociais de sexo/gênero.
Essas discrepâncias estão demarcadas na insegurança urbana, nas importunações sexuais no transporte público, no racismo ambiental, no déficit habitacional, na invisibilidade do quesito sexo, raça/cor, vivência sexual na formulação das políticas urbanas e na elaboração de planos e programas e enfrentar as desigualdades interseccionais e intersetoriais neste campo. Pensar numa nova agenda urbana significa reverter a lógica da sua construção. Significa pensar a partir das condições de vida dos sujeitos nas cidades, dando corporeidade às desigualdades nos territórios e, com isso, formular as políticas que atendam às diferentes realidades desta heterogeneidade de vivências no contexto urbano, atendendo às suas complexidades e contradições.
Essa desigualdade de gênero no contexto urbano tem múltiplas expressões e podem ser visualizadas em termos qualitativos e quantitativos ao analisarmos a renda, as condições de moradia, no uso e racionamento d’água, na precariedade do saneamento ambiental na vivência territorial das mulheres pobres, negras e LBT’s. As mulheres são chefes de família em cerca de 47,5% dos domicílios (34,4 milhões), onde 55,5% destes são chefiados por mulheres negras. Sobre elas reside a face perversa das inadequações ou carência habitacional que em tempos de chuvas, desastres, desabrigados e desalojados, revela a feminização da pobreza. Atualmente a cifra do déficit quantitativo habitacional é de 6 milhões de famílias sem casa, destes 60% atinge as mulheres. Esses são os dados oficiais que avaliamos estarem subnotificados diante do crescimento de famílias sem-teto durante a pandemia, e das últimas enchentes na Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Recife.
É preciso desvelar essas desigualdades e enfrentá-las tendo por base as vivências das mulheres em toda sua diversidade e pensando num planejamento e políticas urbanas situados. Há um processo de apagamento histórico da vivência das mulheres por uma tradição de viés tecnicista no planejamento urbano, produzido sem diálogo com os sujeitos e protagonizado por homens cis, brancos, de classe média alta que promovem uma reprodução patriarcal e racista da cidade de concreto.
Portanto, aproveitar esse momento de diálogo presente, com olhos no futuro, por diferentes campos dos movimentos sociais urbanos do norte ao sul do país, na construção de uma nova plataforma da agenda urbana, significa um compromisso em reverter uma ordem, uma cultura política de negação das mulheres como sujeitos políticos nas cidades, de invisibilização de suas lutas e contribuições. Essas mulheres são vozes de resistências em seus territórios, na liderança dos grupos e organizações, na luta por melhores serviços e políticas, denunciando cotidianamente a falta de água, a precariedade da moradia, a falta de medicamentos no posto de saúde, a falta de creches, a violência sexista na sua mobilidade no bairro e dentro dos ônibus, metrôs, no despejo, dentre outras situações de violações e violências. Elas estão lá na luta e resistência, com seus corpos políticos, em sua maioria negras. E as cidades com suas políticas públicas, sociais e urbanas, precisam dialogar com essas vivências e trazendo ao centro deste debate uma plataforma urbana antissistêmica no enfrentamento ao racismo, sexismo, lesbotransfobia e capacitismo.