Mulheres da América Latina ‘sob pressão’ para aceitar cesáreas durante a pandemia

Montse Reyes y su bebé durante una videollamada
Foto: Fernanda Ruiz, gentileza de openDemocracy

As mulheres enfrentam uma crise de violência obstétrica agravada pela Covid-19, apesar das leis contra o maltrato e a medicalização excessiva*.


Por Diana Cariboni / Daniela Rea / Lydiette Carrión , em Políticas del cuerpo, na Revista Bravas Nº13.

A investigação de openDemocracy encontrou, além disso, múltiplos relatórios de maltrato, proibições de acompanhante e negativas de assistência em casos de emergência, a pesar da existência de leis contra a violência obstétrica e a medicalização abusiva em vários países. A América Latina já tinha a maior taxa de cesáreas do mundo, estimada em 40% de todos os nascimentos, mesmo que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomende que não ultrapassem 15% e insiste em que só devem ser praticadas quando as razões médicas justifiquem.

​A OMS reiterou esta recomendação em suas pautas sobre o parto durante a pandemia publicadas em março e acrescentou, também, que as mulheres devem contar com uma companhia de sua escolha ao parir, receber um tratamento digno e respeitoso, informação clara, sedação adequada e apoio para amamentar se desejarem. A prática de cesáreas, induções, episiotomias e outros procedimentos que não seja medicamente necessária, ou que não conte com consentimento informado, está proibida por leis nacionais ou estaduais contra a violência obstétrica em, pelo menos, oito países latino-americanos, entre eles Argentina, Equador, México, Uruguai e Venezuela.

​A maioria destas leis garante uma companhia no parto, coabitação com o recém-nascido e apoio para amamentar. Porém, ativistas pela saúde materna asseguram que nem essas normas nem as pautas da OMS eram suficientes para proteger estes direitos inclusive antes da Covid-19. E a pandemia não fez mais que piorar as coisas. Na Argentina, Margarita Goñi, do grupo ativista O Parto é Nosso (EPEN, sigla em espanhol), disse que “em março e nas primeiras semanas de abril”, quando o governo decretou o isolamento obrigatório, em alguns hospitais, “começou-se a citar indução ou diretamente cesárea por estar de 38 semanas de gravidez”, embora as pautas do próprio Ministério da Saúde estabeleçam que “é importante evitar cesáreas injustificadas”.

​Violeta Osorio, do grupo de direitos humanos Las Casildas, acrescentou: “Se diz às grávidas que é melhor programar uma cesárea que entrar em trabalho de parto no meio de um pico de Covid-19. Mas isso é contraditório com a necessidade de não saturar o sistema de saúde, dado que uma cesárea implica mais tempo de internação e insumos”.

​No Equador, Sofía Benavides (também do EPEN) disse que seu grupo reuniu testemunhos de 26 mulheres que deram à luz durante o surto de Covid-19. Treze delas disseram que se viram obrigadas a parir “sozinhas” pelas restrições que proibiram os acompanhantes, e quinze disseram que não puderam ter contato precoce pele com pele com os recém-nascidos. Benavides também descreveu que uma clínica privada “oferecia: ‘venha sozinha, se você for fazer uma cesárea, não lhe damos quarto, a mantemos em zona de observação e lhe cobramos 1.200 dólares’. A grande vantagem é que lhe permitem permanecer com o bebê”.

​No México, o ginecologista e obstetra Christian Mera, do Grupo Médico Pró-parto Natural, prevê que as estatísticas mostrarão “em abril e maio um aumento nas cesáreas”, impulsionado pelo “medo de os hospitais se saturarem”, um medo “contraditório porque a cesárea tem maiores riscos e, no caso do COVID-19, soma-se o risco da hospitalização e infecção”, observou.

Em toda região, “os níveis de cesáreas chegaram a ser extremamente altos, inclusive nas mulheres sem COVID-19”, disse a openDemocracy Bremen de Mucio, assessor regional em saúde materna da OMS e a organização Pan-americana da Saúde (OPS).

No Uruguai, que em meados de julho registrava cerca de 1.000 casos de COVID-19 e umas trinta mortes, o Ministério da Saúde foi acusado de fazer vista grossa quando vários centros de saúde suspenderam temporariamente os acompanhantes em partos, contrariando a lei.

Na Venezuela, duas mulheres jovens que deram à luz em maio em maternidades públicas de Caracas, relataram ter permanecido “sozinhas” e “assustadas” até que lhes deram alta, depois de passar por procedimentos sobre os quais não foram consultadas, como ruptura de membranas (o que se conhece como romper a bolsa), indução e episiotomia (corte na abertura vaginal).

Mujeres embarazadas en la entrada de un hospital materno en Ciudad de México Foto: Fernanda Ruiz, gentileza de openDemocracy1/1

Sozinhas e mal informadas

A partir de março, openDemocracy entrevistou dezenas de mulheres e organizações não governamentais, parteiras e obstetras da Argentina, Equador, México, Uruguai e Venezuela, que detalharam experiências de parto na pandemia que parecem infringir tanto as pautas internacionais quanto as leis locais.

A maioria das mulheres disse que tive que parir sem acompanhantes de sua confiança, proibidos pela COVID-19. Isso “multiplica o risco de maltrato” em países onde a violência obstétrica “sempre está presente”, advertiu a parteira mexicana Nuria Landa, do grupo Nove Luas.

Várias mulheres denunciaram também abuso verbal de um pessoal do hospital superlotado, enquanto outras parturientes disseram que foram separadas de seus bebês e não puderam amamentá-los.

As infrações à guia da OMS e às leis se apresentam tanto em hospitais públicos quanto privados. “Não nos mataram com dignidade”, assim é como Lidia Cordero descreve o que sentiu ao ficar sozinha em trabalho de parto em uma sala de emergências de um hospital público de Huixquilucan, México, onde assegura que não lhe deram informação necessária para entender o que os médicos faziam com ela.

“Literalmente, fomos as contaminadoras do hospital”, disse Montse Reyes, que teve uma cesárea programada em maio em uma clínica privada do México. Reyes assegura que após o nascimento ela e seu bebê deram positivo no teste do Covid-19, mas o pessoal não lhe informou os resultados até que lhe deram alta, após passar dois dias em isolamento. Não a separaram da recém-nascida, mas ambas foram colocadas “em uma zona isolada detrás de uma porta de vidro” e “ninguém queria ter contato conosco. Eram 11 horas da noite e eu não tinha tomado nem um copo de água desde as 10 horas da noite do dia anterior”, relatou. “Me senti abandonada. Foi uma mistura de angústia e dor”, explicou Daniela Echeverría, no Equador. Embora tenham lhe permitido estar com seu esposo, os deixaram sozinhos na sala de partos durante três horas; depois disso, ela sofreu uma laceração vaginal e seu bebê tinha engolido líquido amniótico e mecônio, sinal de sofrimento fetal.

Echeverría acredita que o pessoal foi reduzido pela pandemia e a única equipe de plantão (uma médica e duas enfermeiras) estava atendendo outro parto. No Uruguai, a coordenadora do Grupo pela Humanização do Parto e Nascimento, Laura Vega, disse que sua organização recebeu “70 denúncias em todo o país”.

A ausência de informação clara é um assunto que se reitera nos testemunhos recopilados por openDemocracy. Duas mulheres que foram fazer cesárea em duas cidades uruguaias em abril (antes de que o governo revertesse a proibição de acompanhantes em maio) disseram ter se enterado no último momento que dariam à luz sem seus esposos. “Nem sequer me perguntaram. A ginecologista disse a meu companheiro que não era conveniente que entrasse na sala de cirurgias”, disse Anahí Oudri. Andrea Fernández sustentou: “Nesse momento não conseguia discutir. Tinha terror à cesárea, e você sabe que, se você não ganha a discussão, não é bom ver caras feias”.

Dos mujeres embarazadas esperan que las controlen en un hospital materno en Caracas, Venezuela Yadira Pérez, gentileza de openDemocracy1/1

Uma crise global

Em todo o mundo, a investigação de openDemocract identificou infrações às pautas da OMS em, ao menos, 45 países desde que começou a pandemia. Esta evidência procede de testemunhos diretos, de ONG e de outros meios jornalísticos.

Na América Latina, os toques de recolher e as restrições ao transporte pelo coronavírus levaram a que muitas mulheres perdessem controles de gravidez, tivessem que caminhar longas distâncias para chegar a um hospital ou inclusive se viram obrigadas a partos em casa, não planejados e arriscados. Em maio, nossa repórter na Venezuela viu uma mulher com uma gestação de 31 semanas a quem foi negada inicialmente assistência em uma maternidade pública de Caracas. Foi transferida horas mais tarde a outro hospital, mas seu bebê estava morto.

No Equador, durante o mês de abril, negou-se assistência a duas mulheres com emergências obstétricas várias vezes em salas de urgência de hospitais públicos de Guayaquil, segundo a advogada feminista Ana Vera, do grupo de direitos sexuais e reprodutivos Surkuna. A cidade estava naquele momento submersa na crise do Covid-19. “Tive que intervir diretamente chamando autoridades do Ministério da Saúde Pública” para que lhe “dessem antibióticos a uma” e uma “transfusão de sangue” à outra, disse Vera a openDemocracy.

Também em abril, Nuria Landa, a parteira mexicana, recebeu chamadas telefônicas de emergência de duas mulheres que estavam fazendo trabalho de parto em suas casas, após serem rejeitadas por um hospital reconvertido para atender casos de Covid-19 sem prévio aviso. Outra mulher, em Guadalajara, México, relatou a openDemocracy que tinha parido sem complicações em sua casa em abril, mas, no dia seguinte, sentiu-se mal e foi ao hospital para que lhe fizessem um teste de coronavírus, que, em princípio, lhe foi negado, segundo disse.

“A doutora introduziu em mim mais forte os dedos, girou dentro de mim”, disse a mulher, que assegurou ter sido repreendida pelo parto domiciliar e informada de que tinha restos de placenta e necessitava de uma curetagem. Isso foi incorreto, segundo explicou, quando um segundo médico ordenou uma ultrassonografia, assim como um teste de coronavírus (que deu positivo).

A mulher denunciou seu caso às autoridades como uma violação às normas sobre maltrato médico em seu estado (que não conta com uma lei contra a violência obstétrica). Entretanto, não está claro se essas autoridades vão investigar sua queixa, e ninguém dos ministérios de saúde da Argentina, Equador, México, Uruguai e Venezuela respondeu as consultas de openDemocracy. A defensoria pública do Equador disse, em maio, em resposta a nossas perguntas, que não tinha recebido nenhuma denúncia de violência obstétrica durante a pandemia. Esse gabinete não respondeu novas perguntas para atualizar esses dados em julho.

Enquanto isso, uma porta-voz da Alta Comissionada das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, disse que seu gabinete “também recebeu relatórios preocupantes sobre os direitos humanos das mulheres e meninas grávidas no contexto da pandemia de Covid-19”.

“Nos preocupa que, em todo o mundo com sistemas de saúde sobrecarregados, se desviem com frequência os recursos para serviços de rotina como os da saúde materna. Documentar esses incidentes é um primeiro passo crucial para expor o problema. Os estados devem adaptar sem demoras suas práticas às pautas da OMS”.

Contribuíram com este artigo Magda Gibelli (Venezuela) e Agostina Mileo (Argentina).

Una mujer embarazada camina en un vecindario de Caracas durante la cuarentena por el COVID-19 Foto: Yadira Pérez, gentileza de openDemocracy1/1

* Este artigo foi originalmente publicado em OpenDemocracy e é reproduzido com autorização

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