Os novos trabalhos serão para todos e todas? Emprego e desigualdades de gênero em tempos de coronavírus

O “futuro” do trabalho, rapidamente, como se ingressássemos em um filme de ficção, se converteu em presente.

Por Alma Espino, em Políticas del cuerpo, na Revista Bravas Nº13.

Um dos primeiros e grandes impactos da pandemia provocada pelo coronavírus, assim como das medidas preventivas para evitar sua propagação, foi o de mostrar com enorme nitidez as desigualdades sociais e econômicas, a pobreza, a deterioração das políticas públicas de saúde ou sua carência, e o conjunto de desafios que temos pela frente. Com relação às medidas de prevenção, existe certo consenso de que o distanciamento social, a quarentena – inclusive da de caráter obrigatório – seriam algumas das mais efetivas. A hashtag #ficaemcasa opera como palavras mágicas às quais todas as pessoas podemos apelar e devemos obedecer para não ficar doente ou morrer. Porém, o subúrbio de Buenos Aires pode fazer quarentena? As panelas populares no Uruguai conseguem alimentar de forma solidária aqueles que necessitam, mas levando-as adiante se rompem várias, senão todas, as normas de segurança sanitária.

Quem pode fazer quarentena? Quem pode ficar em casa, como nos dizem todos os canais de TV na América Latina? Nos âmbitos nacionais, tomar este tipo de medidas supõe definir previamente quais são os postos de trabalho imprescindíveis para o funcionamento da sociedade e, na medida do possível, da economia. Também supõe determinar quais são os empregos que podem ser realizados em casa e, de maneira muito importante, qual é a situação da proteção e da segurança social com a qual se conta para que o país possa suportar e sustentar estas medidas.

O COVID-19 já tem efeitos sobre a economia mundial e a de cada um dos países, com consequências graves a curto e longo prazo, tanto na oferta quanto na demanda a nível geral e setorial. Estamos diante de um processo de falências de empresas, de redução do investimento privado, menor crescimento econômico, menor integração em cadeias de valor, deterioração das capacidades produtivas e do capital humano, maior desemprego, menores salários e investimentos. Em consequência, é lógico estimar que a pobreza e a pobreza extrema irão aumentar.

A intensidade e profundidade dos impactos gerados por esses fatos dependerão das condições internas de cada economia, da evolução do comércio mundial, da duração da epidemia e das medidas sociais e econômicas que se tomem para prevenir o contágio. Em princípio, os organismos internacionais já estão revisando a baixa da taxa de crescimento da economia mundial. O volume do comércio internacional, que em 2019, havia caído 0,4% no caso de intercâmbio de bens[1], seguramente se contrairá novamente. E esta contração terá um efeito sobre as cadeias globais de valor, acrescentando a tendência que se vinha observando na diminuição dessas cadeias[2]. Isso se repercutirá fortemente no nível de empregos e salários. Portanto, embora a problemática seja planetária, as decisões de política, tanto no plano econômico quanto sanitário, estarão inevitavelmente ligadas às condições de cada economia e cultura. Assim, definir qual será a nova configuração de nossas sociedades também dependerá das condições prévias, estruturais, de cada um de nossos países.

Embora o mercado de trabalho esteja se vendo afetado – tanto nos países de nossa região quanto no resto do mundo –, há diferenças segundo setores e tipo de relações de trabalho. Nos países da América Latina, convivem passado e presente, bolsões de modernidade e grandes porções de população que não pertencem ao mercado de trabalho assalariado dos livros de texto; esses setores, muitas vezes, não contam com proteção social, subsidio por desemprego ou por doença e, mesmo nos casos nos quais estes subsídios existem, são absolutamente insuficientes para superar longos períodos de inatividade. Para sociedades com estas características, os impactos da pandemia estão sendo devastadores em termos de desenvolvimento. Novamente, fala-se de anos de desenvolvimento perdido.

O desemprego e o subemprego estão aumentando; essas tendências se intensificarão porque a qualidade do trabalho está sendo reduzida (diminuição de salários e menos acesso à proteção social). A perda de rendimentos no trabalho está sendo traduzida em um menor consumo de bens e terá maiores impactos em certos segmentos mais vulneráveis, como o dos trabalhadores e trabalhadoras desprotegidos e migrantes, com os conseguintes aumentos na desigualdade (OIT, 2020).

Em particular, o emprego feminino se verá fortemente prejudicado nos postos de trabalhos associados ao comércio exterior, particularmente naquelas relações de maior precariedade das cadeias globais de valor nos quais costumam estar situadas as mulheres. A isso se agrega a queda da atividade – tanto pelo distanciamento social quanto pelo fechamento de fronteiras – nos setores que tenderam a se prejudicar em primeiro lugar por estas medidas, tais como os serviços, o comércio e o turismo, nos quais há grande número de trabalhadoras mulheres.

Por outro lado, a segregação trabalhista determina uma alta participação laboral feminina no setor de saúde[4]. O aumento de demanda nos sistemas de saúde deu lugar a extensas jornadas de trabalho e ao risco de estar mais exposto ao contágio do vírus, e isso afetará, especialmente, um grande grupo de trabalhadoras. Por sua vez, as mulheres que trabalham nesse setor continuam tendo a seu cargo pessoas dependentes ou que necessitam de cuidados em seus lares, o que aumenta suas sobrecargas de trabalho e estresse.

A crise sanitária e econômica que atravessamos está acelerando algumas mudanças estruturais relacionadas com a chamada Revolução 4.0 (vinculada à automatização das tarefas e o uso de inteligência artificial no campo produtivo-trabalhista), e estendendo seus impactos a outros âmbitos. O distanciamento social e a quarentena impulsionaram o aumento de consumidores pela internet, inclusive por parte daqueles que nunca tinham utilizado este tipo de mecanismos, o isolamento leva a que a comunicação e o intercâmbio aumentem através das redes sociais. Também atividades de entretenimento aumentaram o uso de internet – o consumo de Netflix e Prime Vídeo se duplicou – e boa parte do ensino se realiza mediante sessões virtuais organizadas pelo Zoom (Illouz, 2020).

Finalmente, a quarentena, confinamento ou distanciamento social questionaram dois aspectos cruciais da vida em sociedade tal como a conhecíamos até finais de 2019. Estes estão relativamente relacionados com a revolução tecnológica que atravessamos e o futuro do trabalho, e com algumas das perguntas que viemos fazendo nos últimos anos.

Todos os estudos ou pesquisas partem de algumas interrogações, tais como: haverá trabalho para todos e todas que queiram ou necessitem trabalhar? Que tipo de trabalhos e em que condições? Mudarão as relações de trabalho como as conhecemos?

O teletrabalho, os trabalhos em plataformas digitais, mas, geralmente, todas as atividades que possam deslocalizar-se do lugar de trabalho coletivo e fixo – tendência que vinha avançando –, já se vê que poderia prevalecer em mais setores de produção e serviços, e em mais regiões. As empresas e os países que disponham de maior avanço tecnológico poderão aumentar suas vantagens em relação às empresas e países que se encontrem atrasados, em particular as MIPYME (CEPAL, 2020b).

A preocupação para que haja emprego para todos se justifica porque é a principal fonte de rendimentos e, portanto, a forma de se assegurar ao menos parte da sobrevivência na sociedade capitalista, mas também está relacionada com um paradigma que responde à cultura dominante. Este se traduz em que o trabalho remunerado se assume como o eixo que estrutura a vida dos seres humanos. As feministas pensamos que, para as mulheres como coletivo, isso não é e nem foi precisamente assim. As mulheres estruturamos nossas vidas, nossos horários, nossas trajetórias, nossos desejos, em função, principalmente, das tarefas domésticas e de cuidados em nossos lares e na comunidade mais próxima, respondendo a tudo aquilo que a cultura patriarcal espera de nós. A tudo isso somamos as tarefas remuneradas, quase como peregrinas, em um mercado de trabalho pensado e organizado por e para os homens. Portanto, nos encontramos sempre em meio da tensão entre família e emprego, entre família e mercado, entre a culta e os objetivos e desejos pessoais.

Os novos trabalhos/empregos serão para todos e todas? A experiência por que estamos passando pode resultar em que as dificuldades para empregar mão de obra devido às restrições sanitárias terminem fomentando o investimento em automatização e robótica[5], mas também em que os trabalhadores que cumprem com serviços de entrega de produtos (“delivery”), normalmente jovens, sem proteção social, migrantes, (“que incomodam e perturbam com suas motos e bicicletas ao “normal tráfego de carros”) se convertam em imprescindíveis. De todo modo, seguirá existindo um conjunto de trabalhos – principalmente aqueles ligados aos cuidados –, que só são concebíveis nas mãos de seres humanos.

Será possível conciliar os tempos da vida e do mercado? As mudanças no mundo do trabalho remunerado facilitarão a correspondência no trabalho não remunerado entre homens e mulheres? As mulheres, durante este período e devido às medidas de prevenção de forma remunerada ou não remunerada, absorvem a maior carga de cuidados. Nos lares, devido à organização da reprodução social, as mulheres dedicam diariamente o triplo do tempo ao trabalho doméstico e de cuidados não remunerados em comparação com o que dedicam os homens às mesmas tarefas, e são, basicamente, as responsáveis pelas crianças[6]. Portanto, o resultado de tudo isso é a sobrecarga de tempos de trabalho para as mulheres, o que se agrava em lares de menores rendas nos quais, ao ter mais dependentes por lar, as demandas de cuidados são maiores.

[1] Devido à progressiva acumulação de barreiras comerciais desde princípios de 2018 (principalmente entre os Estados Unidos e China). Página 4, CEPAL 2020a

​[2] A crise econômica de 2008-2009 produziu a fusão ou a redução de várias cadeias de valor (ou seja, reduziu-se a segmentação da cadeia de valor e inclusive excluíram-se alguns países dela). https://www.wto.org/spanish/res_s/booksp_s/aid4trade13_chap3_s.pdf

​[3] Em 2019 o crescimento médio foi apenas 0,1% e estimando-se para 2020 um magro 1,3%. O desemprego de 8,1% em 2019 passaria a 8,4% em 2020. https://www.ilo.org/americas/oficina-regional/direcci%C3%B3n-regional/WCMS_740031/lang–es/index.htm

​[4] Segundo dados de CEPAL (2020b), as mulheres representam 72,8% do total de pessoas ocupadas no setor da saúde.

​[5] Algumas empresas de alta tecnologia já aumentaram o uso de ferramentas de inteligência artificial para enfrentar a falta de trabalhadores pelas quarentenas (CEPAL 2020ª)

[6] Em 23 de março de 2020, cerca de 154 milhões de crianças e adolescentes se encontrava temporariamente fora das escolas fechadas por causa do COVID-19. CEPAL 2020b

Referências

OIT  (2020), “Covid-19 y el mundo del trabajo: repercusiones y respuestas”

Illouz, E. (2020) El coronavirus y la insoportable levedad del capitalismo. https://nuso.org/articulo/coronavirus-capitalismo-emociones-illouz/?utm_source=email&utm_medium=email

 CEPAL (2020b) La pandemia del COVID-19 profundiza la crisis de los cuidados en América Latina y el Caribe. https://www.cepal.org/es/publicaciones/45335-la-pandemia-covid-19-profundiza-la-crisis-cuidados-america-latina-caribe

CEPAL (2020ª) América Latina y el Caribe ante la pandemia del COVID-19. Efectos económicos y sociales. Informe Especial COVID-19. N°1. https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/45337/4/S2000264_es.pdf

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