Pesquisadores e acadêmicas destacaram que, na base da pandemia do covid-19, encontra-se a extensão incontrolada e exponencial do modo de vida capitalista industrial por todo o mundo. Analisar a causas é importante para compreender onde estão os problemas e orientar as saídas tendentes e prevenir outras pandemias.
Por Lilian Celiberti | Revista BRAVAS n.12
Pesquisadores e acadêmicas destacaram que, na base da pandemia do covid-19, encontra-se a extensão incontrolada e exponencial do modo de vida capitalista industrial por todo o mundo. Analisar a causas é importante para compreender onde estão os problemas e orientar as saídas tendentes e prevenir outras pandemias. As massivas mudanças no uso do solo, a deflorestação e a urbanização levaram à fragmentação do habitat e a criação de ambientes favoráveis para a propagação dos vetores de doenças de animais a seres humanos, como o coronavírus. A alteração dos ecossistemas, a massificação da pecuária industrial e, em geral, a destruição do sistema ecológico são algumas das expressões de uma lógica baseada no crescimento e no “desenvolvimento infinito” que começam a ser percebidos como um problema, e deixam a descoberto que o decrescimento material não é uma mera hipótese, mas uma realidade que está se concretizando devido ao esgotamento das reservas de petróleo. Evidencia-se, assim, a necessidade de abrir um debate acerca das transições do modelo capitalista depredador e extrativista.
Imaginar a transição para um novo paradigma que reverta os valores dominantes e abra caminhos de esperança rumo a uma vida digna de ser vivida – como diz Amaia Pérez Orozco – supõe uma mudança de tal envergadura que a pergunta mais urgente é como e o que fazer para percorrer esse caminho? Mas difícil é se pensamos a partir do Uruguai, este pequeno lugar no mundo com uma direita neoliberal que quer arrasar com muitos dos direitos conquistados e uma esquerda dominada por uma racionalidade desenvolvimentista neoextrativista. A volta às ruas depois da quarentena nos coloca diante, por um lado, de leis mais repressiva e criminalizadoras e, por outro, de uma situação social dramática nas condições de vida. A isso se agrega uma guerra contra o feminismo e a cultura dos direitos humanos, liderada pela cruzada fundamentalista do novo partido Cabildo Abierto, que faz parte da coalizão do governo.
Durante alguns meses, o confinamento paralisou e desacelerou a produção mundial com enormes efeitos e custos sociais. A pergunta é se as reflexões abertas nos levam a repensar as práticas de produção e consumo ou voltar à “normalidade” do consumo daqueles que podem. As condições de desproteção que gerou a pandemia despertaram milhares de ações de solidariedade que, como em outros momentos de nossa história recente, mostra a melhor cara da sociedade. Entretanto, não necessariamente, estas práticas podem gerar mudanças permanentes nas formas de produzir e consumir para desenvolver estratégias sustentáveis de uma economia social e solidária. A necessidade de assumir um paradigma de decrescimento em uma relação mais harmoniosa com a natureza não faz parte do vocabulário, nem do horizonte de milhares de ativistas solidários, embora com muitas e muitos nos encontramos em várias causas comuns.
É um tempo de crise muito difícil e, por isso mesmo, é fundamental fortalecer o tecido social para dar passagem a formas de organização coletiva que coloquem no centro a sustentabilidade da vida. É urgente implementar, com imaginação, espaços coletivos para (re)inventar resistências à cultura capitalista em todas suas manifestações consumistas, individualistas, violentas, racistas, colonialistas e patriarcais. Experimentar campos de (re)existências na comunidade, nos bairros e nos territórios para construir outras formas de viver mais próximas a um imaginário transformador que incorpore os eixos de ação política que tem sido gerido a partir da militância ecologista e ecofeminista.
Nas últimas semanas, em nossa região, promoveu-se a divulgação do chamado “Por um pacto social, ecológico, econômico e intercultural para a América Latina” que retoma a proposta realizada por Maristella Svampa e Enrique Viale. É uma iniciativa interessante que permite destacar as ações mais urgentes a serem encaradas frente aos efeitos da pandemia na região: a transformação tributária solidária, a anulação da dívida dos Estados, a criação de uma renda básica universal, a priorização da soberania alimentar, a construção de economias e sociedades pós-extrativistas, e a criação de sistemas nacionais e locais de cuidado. Diz o chamado que é necessária a “criação de sistemas nacionais e locais de cuidado que colocam a sustentabilidade da vida no centro de nossas sociedades. O cuidado é um direito e, como tal, deve incluir um papel mais ativo do Estado e das empresas em consulta e corresponsabilidade permanente com os povos e comunidades. Isso permitirá combater a precariedade trabalhista e alcançar uma melhor repartição das tarefas do cuidado, em termos de classes sociais e de gênero, pois o mesmo recai de modo desigual sobre as famílias e, nelas, sobre as mulheres”.
Contudo, para o feminismo, a proposta de sustentabilidade da vida não se reduz a definir o cuidado como um direito, o que empobrece sua perspectiva tanto do ponto de vista antipatriarcal, quanto ecológica. Sinto-me mais identificada com a perspectiva de Yayo Herrero, que permite ampliar e densificar o conceito de sustentabilidade da vida incluindo a sustentabilidade ecológica e social para dar resposta simultaneamente à interdependência e fragilidade das vidas humanas e à ecodependência da natureza que constitui as bases materiais que sustentam a vida. Diz Yayo “E nossa opinião, este conceito se inclui dentro da ideia mais ampla de sustentabilidade ecológica e social. Sustentabilidade supõe, pois, uma relação harmônica entre humanidade e natureza, e entre humanas e humanos” (Bosch et al., 2005).
Só reinventando a ação política na comunidade poderemos construir outras formas de viver mais próximas a um imaginário transformador. Nesta direção, encontramos pistas para avançar nas ações de muitos movimentos: os agronegócios que buscam formas sustentáveis de produzir, os de consumidores responsáveis, muitos coletivos feministas, a troca, a economia social, “mercados virtuais”, permacultura, hortas urbanas, cooperativas e outras experiências de gestão sustentável em matéria política e ambiental fortalecem esferas de economias alternativas e de autogestão. Estas práticas estão em funcionamento, mas ainda se encontram dispersas e não conseguem produzir as mudanças de paradigmas nos imaginários para além do estado de bem-estar. Estender e aprofundar essas experiências é um desafio para enfrentar a crise que o coronavírus deixa, para disputar a hegemonia neoliberal expressada nas pautas de consumo, e a relação com a natureza.
Trata-se de levar os cuidados e a reprodução da vida a amplos setores das comunidades e da sociedade; de incorporar estas dimensões nas organizações sociais, sindicatos, cooperativas e todo tipo de organização social. As práticas sociais devem expandir-se para além do estado, para tornar possíveis campos relacionais guiados por princípios éticos para a construção do “comum”. A economista feminista Natalia Quiroga destaca que a interação entre a economia social e popular pós-patriarcal e a economia feminista deve centrar suas práticas em uma economia para a vida. Uma economia que cuide de nós. Existem propostas e diretrizes para começar a ensaiar transições socioecológicas em direção a outro modelo de economia e organização social.
Tem que desejar fazê-lo.
Bibliografia
CARRASCO, Cristina. La sostenibilidad de la vida humana ¿un asunto de mujeres? Icaria Editorial: Barcelona, 2001 a.
CARRASCO BENGOA, Cristina; DÍAZ CORRAL, Carmen. Editoras. Economía feminista: desafíos. Propuestas, alianzas. Entrepueblos: Barlenona, 2017.
HERRERO, Yayo. Economía ecológica y Economía Feminista: un diálogo necesario en Economía feminista: desafíos, propuestas, alianzas. Entrepueblos: Barcelona, 2017.
PEREZ OROZCO, Amaia. ¿Espacios económicos de subversión feminista? en Economía feminista: desafíos, propuestas, alianzas. Entrepueblos: Barcelona, 2017.
QUIROGA, Natalia. “Economía Pospatriarcal”. Lavaca, Buenos Aires, 2019.
ROLNIK, Suely. Esferas de la insurrección. Apuntes para descolonizar el inconsciente. Tinta Limón, Colección Naciones Comunes. Buenos Aires 2019
Pacto Social del Sur 2020 https://pactoecosocialdelsur.com/.