Texto por: Carmen Silva, Joana D’Arc, Nilde Souza, Vera Silva, integrantes da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB)
Somos um movimento nacional, organizado na maioria dos estados com agrupamentos estaduais, que reúnem diversos tipos de organizações de mulheres: grupos populares, núcleos acadêmicos, secretarias de sindicatos e federações, organizações políticoprofissionais, ONGs, coletivos, e ainda muitas outras mulheres que não se encontram nestes tipos de organização. Somos jovens e mais velhas; negras e não negras; da capital e do interior; trabalhadoras sempre e, às vezes, desempregadas; heterosexuais, lésbicas e algumas sem necessidade de definições sexuais; com muito tempo neste movimento ou recém-chegadas. Somos todas mulheres feministas, enfrentando no cotidiano a violência, a exploração do nosso trabalho e a dominação dos nossos corpos, a maioria enfrentando o racismo cotidiano.
Resistimos sempre, construindo outros modos de vida, compartilhando com outras nossos desejos e reflexões, articulando coletivamente nossas lutas, chorando nossas derrotas, comemorando nossas conquistas. Seguimos
em frente, rejeitando toda norma que impeça nossa liberdade e todo poder que nos oprima. Seguimos juntas construindo no dia a dia as nossas lutas, mostrando nas ruas nossa cara, exigindo nossos direitos, perseguindo nossos sonhos.
Para nós, o racismo é o sistema de poder que cria, justifica e legitima a dominação e opressão das pessoas brancas sobre as negras e que, para se manter, renova-se continuamente, ordenando todas as dimensões da vida em sociedade e se expandindo por toda a sociedade em suas dimensões – econômica, política, jurídica,
cultural e religiosa.
O patriarcado é o sistema de dominação dos homens sobre as mulheres em todos os âmbitos da vida, instituindo normas, valores e bases materiais da dominação e exploração das mulheres. A divisão sexual do trabalho, o uso da violência como instrumento de dominação, o controle do corpo e da sexualidade feminina, a heteronormatividade e os obstáculos à participação política das mulheres são alguns dos seus instrumentos.
O capitalismo é o sistema que se organiza através da exploração da força de trabalho e da apropriação, por uma minoria, das riquezas produzidas pelo trabalho da maioria. Uma das principais características do capitalismo é seu caráter expansionista, marcado pela apropriação privada dos bens naturais para exploração, geração de lucro, negação e dizimação das diversidades culturais.
Para nós, o Estado brasileiro é um espaço contraditório mas tende a favorecer a acumulação e concentração de riquezas e apenas compensar os efeitos negativos que ela produz. Muitas políticas e projetos governamentais se voltam para isto, é o caso dos benefícios fiscais para empreendimentos empresariais; projetos de desenvolvimento que causam danos sociais e ambientais; e a arrecadação de impostos que favorece os ricos, brancos e a elite masculina.
Nossa luta contra o racismo é pauta que vem ganhando força, fruto de uma disposição política e da ação das mulheres negras, maioria das mulheres que integram nosso movimento, sendo necessário enfrentá-lo na sua articulação com o capitalismo e com o patriarcado. Nosso debate nacional (em Brasília, 2011, com 800 participantes) chamou a atenção para a importância de se divulgar a história do povo negro porque muitas pessoas negras ainda não conseguem se ver como tal. As mulheres negras, por sua vez, são guardiãs de valores civilizatórios, embora ainda careçam do devido reconhecimento.
Do nosso ponto de vista, a democracia só acontecerá se incluir na sua pauta a luta contra o racismo, compreendendo que as mulheres negras não são ‘público para atividades’, e sim sujeitos políticos e precisam
ser tratadas como iguais. Além disso, foi discutida a necessidade de fazer o debate sobre a história do feminismo sem datá-lo a partir dos anos 1970, pois isto ajuda a ver o feminismo só a partir das mulheres brancas de classe média. O feminismo na América Latina é de muito antes, e as lutas das mulheres negras são dos 500 anos do Brasil. Também foi ressaltada a importância deste debate para as mulheres indígenas.
Neste encontro de 2011, se estabeleceu que as lutas antirracistas a serem assumidas por nosso feminismo são: contra a intolerância religiosa, no sentido da defesa da liberdade de culto; garantia dos territórios quilombolas; cotas para a população negra; implementação da Lei 10.639/03; republicação da lei que criminaliza o racismo; por uma educação não sexista e antirracista; pela implementação das políticas públicas
de saúde, com ênfase nas doenças que acometem a população negra; valorização do trabalho doméstico; aprofundamento da luta pela reforma da previdência; entre outras. Na plenária de 2016 e 2017, se acrescentaram as lutas contra o genocídio da juventude negra, contra a política de drogas e o encarceramento das mulheres.
Para viabilizar estas lutas é preciso dar visibilidade às desvantagens, injustiças e exploração que as mulheres negras sofrem (número de assassinadas, as que não têm acesso às políticas, etc.); fortalecer as organizações de mulheres negras no interior de nosso movimento; realizar ações públicas como, por exemplo, ação
de constrangimento nos shoppings (“dar vexame”) para repudiar as violências sofridas pela população negra naqueles espaços; enfrentar o debate do racismo institucional e denunciá-lo principalmente nas relações
de trabalho no mercado privado, e manter viva a campanha contra a violência a partir da referência ao cabelo: “Solte seus cabelos e prenda o racismo”. Campanha Nacional da AMB pelo fim da violência contra as
mulheres negras “Solte seus cabelos e prenda o racismo”, construída em oficinas nacionais entre militantes da AMB em 2010, lançada em 2011 no Encontro Nacional da AMB e posteriormente na tenda da AMB na III
Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres.
Precisamos criar espaços, no âmbito de nosso movimento, para as militantes fortaleceremsua identidade racial, discutindo a experiência do racismo; buscando formação para resistir ao racismo individualmente
e para saber lidar coletivamente com este problema; desenvolver estratégias pedagógicas sobre como abordar a questão da negritude na política de formação de nosso movimento; discutir o poder no âmbito
organizacional da AMB para saber onde estão as mulheres negras e qual a estratégia de ampliação deste poder nas organizações e movimentos; aprofundar o diálogo e alianças com as organizações de mulheres negras e apoiar também participando de encontros entre mulheres indígenas e negras (diálogos), pois há organizações negras e militantes negras em nosso movimento, que é misto quanto à raça.
Um desafio importante é a articulação entre antirracismo e luta feminista anticapitalista. O capitalismo é um sistema baseado na exploração. Ele se realiza de forma imbricada com o patriarcado e o racismo. Enquanto
perdurar a contradição capital/trabalho, não há como haver liberdade e autonomia para as mulheres, mas a superação desta contradição não nos dá nenhuma garantia de superação da opressão das mulheres. Por
isto, articular o feminismo antirracista com a discussão de classe é condição imprescindível para impulsionar as lutas feministas de enfrentamento ao capitalismo e formular, a partir do feminismo, qual a sociedade que a
gente quer.
Nossa ética anticapitalista caminha no sentido de que queremos ser o que queremos ver na sociedade, daí a proposição de sintetizarmos as lutas anticapitalistas num projeto popular feminista para a defesa da vida das mulheres. Isto inclui o debate sobre o consumismo, a produção da pobreza, e a exploração existente também
entre mulheres, por conta do racismo e das relações de classe. Precisamos construir o caráter antipatriarcal, antirracista e anticapitalista em cada uma de nossas lutas, de forma articulada, no plano local até o plano
internacional. É neste processo de lutas e auto-organização que fortaleceremos o feminismo antirracista da AMB.