Terceirização: a economia ameaçando a autonomia das mulheres

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Por Rivane Arantes (*)

O PL 4330/2004 de autoria do Dep. Sandro Mabel (PR/GO) que pode ser votado por estes dias no Congresso Nacional pretende regulamentar a terceirização na iniciativa pública e privada. A terceirização é um mecanismo que permite empresas contratar temporariamente outras, ao invés de contratar diretamente os trabalhadores e trabalhadoras, para executar um serviço antes realizado diretamente pelo seu quadro de pessoal. O PL 4330 não é, somente, uma ameaça à classe trabalhadora em geral – 22% do total de trabalhadores/as formais no Brasil são terceirizados, mas sobretudo, é uma ameaça à nós mulheres, já que somos a parte da classe trabalhadora mais empobrecida, que ocupa os postos mais precários de trabalho e as primeiras a serem demitidas em momentos de crise.

Apesar dessa prática ter se multiplicado na maioria das empresas, inclusive nas públicas, a terceirização tem implicações nefastas para esses setores da economia. Sem dúvida é um mecanismo que dá sinal verde para a privatização, superexploração e flexibilização dos direitos trabalhistas, à medida que se permite demitir sem muita justificativa, diminuindo as bases da nova contratação. A ideia abstrata de ‘crise’ e a ‘necessidade’ de corte de gastos já é suficiente para substituir os trabalhadores/as permanentes por temporários, com menor salário, menos benefícios e condições de trabalho inferior.

Estudos do DIEESE informam que a terceirização provoca rotatividade, extensão da jornada de trabalho, menor remuneração e acidentes de trabalho (de 10 acidentes de trabalho, 8 ocorrem em terceirizadas), jogando no lixo a um só tempo, o princípio constitucional da dignidade humana e do valor social do trabalho, toda a ideia de trabalho decente articulada pelos mecanismos internacionais de direitos desigualdade nas relações de trabalho.

Isso se dá porque na lógica desse sistema que nos incorpora subordinadamente, seremos nós mulheres as que ‘aceitarão’, por absoluta ausência de alternativa, realizar as mesmas tarefas em condições bem mais precárias, desprotegidas e desumanas. Não nos esqueçamos que 30% das famílias brasileiras já são chefiadas por nós e que nessa condição, realizamos em torno de 30 horas de trabalho não remunerado (trabalho doméstico), ou seja, 3 vezes mais que o tempo gasto com as mesmas tarefas pelos homens (IPEA).

No caso dos serviços públicos, as consequências nos parecem ainda piores, por três outros motivos: a permissão de terceirização de atividades fins através da privatização dos bens comuns; a supressão da responsabilidade solidária do Estado e a dificuldade de controle social. Explico-me: a terceirização é hoje orientada precariamente pelo Enunciado 331 do TST que apenas permite esse tipo de contratação de pessoal, no âmbito do Estado, para atividades meio, ou seja, aquelas tarefas que dão suporte (alimentação, limpeza, segurança, transporte…) às atividades principais, chamadas de atividades fins.

O PL 4330 permite que se terceirize também essas atividades, o que vai causar implicações severas, principalmente na realização dos serviços públicos essenciais (saúde, educação, transporte, seguranças…), fragilizando a estrutura do Estado pela execução de política públicas através da iniciativa privada, o que já vem ocorrendo com a privatização dos bens comuns, a exemplo da água, e se aprofunda com a fragilização das carreiras públicas e da qualidade dos serviços.

Outro problema diz respeito à responsabilidade solidária da empresa contratante, ou seja, hoje, o Estado contratante deve se responsabilizar pelas dívidas trabalhistas deixadas pela terceirizada, é uma forma mínima de proteger os trabalhadores/as nessa relação, já que ele não consegue regular o mercado. O PL suprime essa obrigação, literalmente abandonando os trabalhadores/as à própria sorte.

E, por fim, a questão do controle social. No caso do serviço público, a terceirização tem uma relação direta com a intensificação da privatização dos serviços públicos, o que para nós mulheres, é uma grave ameaça à implementação dos nossos direitos, pensando que a iniciativa privada obedece a lógica do consumo mercantil e não a do direito orientada pelo bem comum, transparência, universalidade, laicidade e não discriminação. Quando o serviço público é pulverizado em iniciativas privadas, mais dificuldade a sociedade civil tem de obter informações para o monitoramento das ações, responsabilização pelos abusos e ilegalidades.

A terceirização não é mais um fantasma. Para nós mulheres já é uma experiência bem presente de nossa incorporação subordinada no mundo do trabalho produtivo. Pesquisas apontam que as maiores empresas de terceirização do mundo se dedicam aos serviços, tipo de trabalho majoritariamente desenvolvido por nós mulheres e, nas áreas de segurança, telemarketing e limpeza, tarefas que também, pela divisão sexual e racial do trabalho, são preponderantemente realizadas por nós mulheres e negras. Basta ver o que já está ocorrendo com as trabalhadoras domésticas, maior categoria de trabalhadoras mulheres do Brasil, que segue sem todos os direitos trabalhistas garantidos, em que pese a aprovação da EC da equiparação, em amplo processo de substituição por outras trabalhadoras temporárias (diaristas). E aqui está uma última consequência do PL, a cisão no interior da própria categoria de trabalhadores/as, à medida em que a terceirização, ao criar relações de trabalho distintas para uma mesma função, cinde a unidade e a luta da categoria.

Não é de hoje que nós, mulheres trabalhadoras, somos submetidas a exploração e opressão. É da natureza do capitalismo, esse sistema que a tudo e a todos/as captura e incontornavelmente se conecta com o patriarcado e o racismo, sugar nossa capacidade física, intelectual e artística, mas também, nosso tempo, corpos, modos de ser e fazer, sem nos compensar com justiça e sem nos reconhecer como sujeitos.

É lamentável lembrar que muitas conquistas têm sido perdidas em nome da garantia dos interesses privados e, a pretexto – pasmem – do ‘desenvolvimento e mais emprego para o país’. Sendo maioria da população brasileira, maioria entre a população economicamente ativa, e tendo maior escolaridade que os homens, nós mulheres, injustamente continuamos ocupando os postos de trabalho mais precários, com menor remuneração, jornadas extensivas, e realizando quase exclusivamente o trabalho doméstico e de cuidado da família, sem direito à creches e outros mecanismos que nos permitam enfrentar a dupla jornada e garantir autonomia financeira.

Não temos dúvida de que a terceirização tem gênero, raça e classe. Seremos nós mulheres, negras a vivenciar mais essa experiência de exploração e opressão. Por isso, somos contra esse projeto de lei. Ele nos fragiliza como parte majoritária da classe trabalhadora, nos rouba a condição de sujeitos, e impede a construção de uma sociedade mais justa para nós mulheres, negras e em situação de pobreza. NÃO AO PL 4330/2004!

Foto: Agência Câmara

(*) Rivane Arantes integra o coletivo do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, a Articulação de Mulheres Brasileiras e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM-BR).

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