Curso Caleidoscópio 2024 centra o debate na luta em defesa da água como um bem comum

Realizado entre os dias 21 a 23 de agosto deste ano, o Curso Caleidoscópio reuniu mais de 40 mulheres de diferentes regiões do estado de Pernambuco para momentos de intercâmbio em torno da luta por justiça socioambiental

Texto: Fran Ribeiro | Fotos: Lara Buitron | Comunicação SOS Corpo

Representantes de diferentes movimentos compartilharam lutas e desafios para a organização das mulheres. Foto: Lara Buitron/SOS Corpo

Nos dias 21, 22 e 23 de agosto, o SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia, realizou mais uma edição do Curso Caleidoscópio, atividade político-pedagógica que integra o Programa de Formação Feminista do Instituto. Com o tema “Água como bem comum: Injustiças Socioambientais e as lutas das mulheres”, o curso juntou militantes de diferentes movimentos sociais, coletivos, redes e organizações para um intercâmbio de experiências e estratégias no enfrentamento cotidiano das desigualdade e injustiças ambientais, tendo a água como foco central da luta.  

Foram 40 mulheres, moradoras de cidades da Região Metropolitana de Recife, do Sertão do Pajeú, do Agreste, além de Mata Sul e Mata Norte, que construíram juntas reflexões a partir da metodologia proposta pela equipe que coordenou a atividade, composta pelas educadoras do SOS Corpo Analba Brazão, Mércia Alves e Talita Rodrigues. 

Aula pública do Caleidoscópio recebe convidadas para refletirem sobre água como um bem comum

Na noite do dia 21 de agosto, na sede do SOS Corpo, aconteceu a aula pública de abertura do curso. O debate, que foi mediado por Analba Brazão e Talita Rodrigues, teve como convidadas a provocar reflexões a partir do intercâmbio de experiências, militantes, ativistas e pesquisadoras que vivem ou atuam em territórios onde a água é um bem comum que tem sido explorado pelo projeto neodesenvolvimentista em curso no país. 

Mércia Alves, Joana Mousinho, Cristiane Faustino, Talita Rodrigues e Nyg Kaingang.

Na mesa estiveram a coordenadora estadual da Articulação Nacional das Pescadoras (ANP) Joana Mousinho; Nyg Kaingang, da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA); Cristiane Faustino, do Instituto Terra Mar; e Mércia Alves, pesquisadora do SOS Corpo. 

Abrindo a mesa, Mércia Alves trouxe a reflexão de como a água, mesmo sendo um bem coletivo, impacta a vida das mulheres e suas comunidades de maneiras desiguais e diferentes pelas dimensões de classe, de vivência da identidade de gênero e da dimensão racial. A questão da água, de acordo com a pesquisadora, tem relações sociais e políticas que se conectam ao modelo de desenvolvimento, que é predatório e imprime na grafia das cidades, das zonas rurais, territórios de preservação ambiental, os territórios tradicionais e dos povos originários uma perspectiva mercadológica que produz o racismo ambiental. Para essa lógica neoliberal de desenvolvimento, a terra, o ar, os rios, o mar, a floresta, os frutos,  vegetais e a água são fontes de privatização e de apossamento com objetivo de gerar lucro para o mercado do capital. 

Já Joana Mousinho, da coordenação estadual da ANP, começou sua contribuição dizendo que “falar em água é falar em vida”. Pescadora desde que se entende por gente, ela fez uma profunda reflexão sobre como antigamente os problemas eram menos complexos, mesmo com toda a dificuldade em reconhecer as mulheres como pescadoras artesanais. Se antes os órgãos de regulação e fiscalização dos territórios de pesca cumpriam o seu papel, hoje as competências mudaram de instâncias administrativas, agravando as desigualdades nos territórios pesqueiros  e os crimes ambientais por disputa de poder político. “Hoje o que mais se tem é cerca nas águas, proibindo da gente passar pra pescar e a turma desviando o curso do rio”, denunciou. 

Joana Mousinho, da Articulação Nacional das Pescadoras.

Nyg Kaingang, da ANMIGA, trouxe a partir da experiência da ancestralidade sua contribuição para o debate. Lembrando da resistência dos povos originários que há 524 lutam em defesa da terra, dos biomas e da água, reforçou a compreensão de que defender a água é defender a vida. Para os povos indígenas a água é um bem coletivo e um bem sagrado, já que além de manter as pessoas e a natureza vivas, ela também traz consigo seres visíveis e invisíveis. Os territórios indígenas vivem no cotidiano a luta em defesa da vida do planeta e as mulheres indígenas têm intensificado sua luta política nos últimos anos em torno da emergência climática, por serem os povos, os guardiões e protetores do meio ambiente. A luta e o alerta têm sido levantados pelas mulheres indígenas em articulações e instituições do Brasil e também internacionais. 

Para fechar a mesa do debate, Cristiane Faustino, do Instituto Terra Mar, iniciou a reflexão trazendo o conceito de bem comum, que são aqueles bens que não tem um dono específico, mas que são de usufruto de todas as pessoas e que devem ser gerenciados para a garantia desse direito coletivo. “Bens comuns são vitais para a existência das pessoas”, reforçou. Contudo, o acesso a esses bens comuns que são vitais para a vida, não é igual para todo mundo. E este é o problema imposto pelo modelo neoliberal de desenvolvimento, que tem os mega empreendimentos como grandes favorecidos a este acesso. Um exemplo disso, que foi apresentado por Cristiane, é o caso da indústria de energia eólica, que tem gerado profundos impactos e injustiças socioambientais em territórios litorâneos, privatizando terras e o ar, e que agora quer expandir para o mar a exploração da energia. 

Assista abaixo a íntegra do debate: 

Rodas de vivências, memórias, prosas e intercâmbio de experiências marcam os demais dias do Caleidoscópio

No segundo dia do curso, 22 de agosto, a coordenação da atividade separou a manhã para uma metodologia onde a memória e a vivência de cada participante, individual e coletiva, em torno da água foram compartilhadas. O objetivo da foi suscitar a reflexão, situando na experiência das mulheres, a relação da água como um direito humano e fundamental para a sustentação das nossas vidas. 

Marcadas por dimensões interseccionais de gênero, raça, classe e geração, as mulheres trouxeram para a roda lembranças da infância, de como era o acesso ao saneamento básico ou como em alguns territórios, o acesso à água era por meio de rios, açudes e fontes. Era através do contato com a natureza que a vida prática cotidiana acontecia: lavar roupas, panelas, dar banho nas crias, pegar água para levar para casa, já que em algumas realidades, ter água encanada era quase um sonho. 

Curso Caleidoscópio reuniu 40 mulheres de diferentes movimentos, organizações, redes e coletivos de Pernambuco em intercâmbio de experiências.

A dinâmica da vida nas cidades mudou muito e isso também foi destacado nas trocas. Era o chafariz que antes jorrava água e hoje, seco, está em estado de degradação. Ou ainda, como a falta de saneamento básico e a falta d’água causaram a precarização da vida, com a recorrência de doenças parasitárias e as arboviroses. Houveram também relatos do medo da força da água da chuva, das cheias dos rios e consequentes alagamentos, ou ainda, o controle na distribuição e acesso à água. 

Esse passeio pela memória da relação das mulheres com as águas serviu para fazer as conexões entre o passado e as lutas que travamos hoje para garantir o acesso a esse bem comum. De entender como a água é usada como moeda de negociação política, com a compra e venda de votos para poder acessá-la. Pensar a história da distribuição da água é pensar na história do desenvolvimento do capitalismo e os impactos na vida das mulheres. 

À tarde, a partir de reflexões feministas antirracistas e anticapitalistas, a prosa seguiu, com aportes de educadoras do SOS Corpo, que contribuíram com o debate. O objetivo foi ampliar a discussão sobre as desigualdades e as injustiças socioambientais provocadas por um modelo de desenvolvimento que mercantiliza o acesso aos bens comuns. De como, na relação das mulheres com a natureza, nós somos, historicamente, quem mobiliza na luta por direitos básicos, já que somos responsabilizadas de maneira impositiva pelos sistema capitalista, patriarcal e racista pelo trabalho de cuidados, pelo trabalho doméstico e pela gestão do uso da água na residência, reforçando a divisão sexual do trabalho. 

Nos dia 23, as desigualdades provocadas pelo modelo de desenvolvimento das cidades também foi repercutido nas falas das participantes do curso, sobretudo os impactos vivenciados pelas mulheres e suas famílias que vivem em bairros periféricos ou territórios carentes de infraestrutura. A população negra favelada passa por um processo de controle estrito do uso da água, enquanto os bairros de classe média e alta, muitas vezes, vizinhos das favelas, tem uso à vontade da água e a garantia do tratamento de esgoto, o que deixa visível o racismo ambiental cotidiano que alguns territórios vivenciam. 

Participantes leem síntese do acumulado dos debates em relatoria gráfica, feita for Letícia Carvalho.

Assim como nos casos de racismo ambiental, o capitalismo de mercado é um dos causadores da falta de água ou está no centro de disputas por privatização das fontes e nascentes em muitos dos territórios. As participantes denunciaram ainda como a pandemia mudou a dinâmica do abastecimento em alguns lugares e como o sucateamento dos serviços públicos de tratamento e distribuição da água tem provocado a intensificação dos processos de privatização. E não são só os serviços públicos que são apossados pelo interesse do capital.

A privatização de territórios pesqueiros avança a passos largos, modificando a dinâmica, empobrecendo comunidades, aumentando ações criminosas de ameaça à resistência das  pescadoras e pescadores, como o que está em curso em Maracaípe, no litoral sul de Pernambuco. Por lá, a privatização da praia já ganhou repercussão na mídia e é acompanhada pelo Ministério Público. Há ainda o uso exacerbado e sem controle da água por grandes empresas, sejam do agronegócio ou do extrativismo, estas que são as principais causadoras do desabastecimento nas cidades e que a partir do selo de responsabilidade ambiental, maquiam os danos causados à natureza e aos territórios usurpados. 

Mas, mesmo diante dos impactos do modelo de desenvolvimento predatório, as mulheres travam lutas em defesa desse bem comum, a partir de atuações aliançadas politicamente entre movimentos e organizações para o fortalecimento da luta por justiça socioambiental. A resistência está presente nas cidades, assim como em territórios indígenas, ribeirinhos, áreas de proteção ambiental, territórios rurais de agricultura familiar, ocupações populares e urbanas. 

Participantes leem síntese do acumulado dos debates em relatoria gráfica, feita for Letícia Carvalho.

As lutas são puxadas pelas mulheres, enfrentando os impactos do sexismo, racismo e desigualdades de classe nas condições de vida. O intercâmbio de experiências entre os movimentos sociais presentes deixou evidente como o processo de luta e autoorganização das mulheres se faz aliado a uma pedagogia feminista que bebe da memória e da história como elementos modificadores da realidade. A partir da conscientização coletiva sobre as causas da precariedade da vida, as mulheres encontram motivos para organizar a luta por políticas públicas que melhorem as condições de vida nos territórios. 

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