No nono e último artigo de análise das eleições 2022 para a Marco Zero Conteúdo, Carmen Silva avalia a vitória de Lula e os desafios que estão postos para o governo e o campo da esquerda nos próximos anos.
*Por Carmen Silva
Chegamos ao final da eleição de 2022. No domingo parecia que chegava o fim do mundo e não terminava a apuração. Foi muito tenso. Todas as pessoas democratas que acompanharam a eleição e, mais ainda, a apuração, estavam profundamente preocupadas com os destinos deste país. A hipótese assustadora de que Bolsonaro pudesse permanecer presidente do Brasil era por demais catastrófica. Enfim, Lula venceu. Nos envolvemos todes no livre exercício do direito à alegria. Foram muitas comemorações. Apesar da turba bolsonarista ainda estar tentando impressionar com bloqueios nas estradas, o que demonstra que esta transição não será simples, já é hora de avaliarmos o que aconteceu e projetar desafios para o futuro breve que o próximo período pode contemplar.
Importa reconhecer que não obstante nós tendêssemos mais para a crítica, a amplitude política da frente democrática possibilitou a eleição de Lula. Ela conquistou a vitória e gerou condições para que, no decorrer do próximo período, a questão das relações democráticas do trato político entre adversários de ideias não se transforme em polarizações baseadas em anulação do outro, mas em debate de projetos de país. É um sonho? Pode ser. Mas, certamente, sem a vitória de Lula ele não poderia ser sequer sonhado. Nesta seara, muito precisa ser feito para que possamos realmente retomar e radicalizar a democracia, especialmente a participação social, rumo a construção do poder popular.
Os movimentos sociais e, mais precisamente, os movimentos populares serão reconhecidos pelo novo governo como sujeitos políticos com causas próprias e não apenas como apoiadores da linha traçada nos gabinetes do planalto. É um sonho maior ainda? Pode ser. Mas há que se ver que sem os movimentos, coletivos periféricos, comitês populares, a campanha não teria chegado ao enraizamento que chegou. Sem as músicas em todos os ritmos, os piseiros, as mobilizações locais, a produção de material de propaganda próprio, as banquinhas de vira voto, a campanha não teria tomado a dimensão que tomou. É preciso que estes sujeitos sejam ouvidos com suas próprias vozes. E o movimento feminista popular é um deles.
A disputa nas redes sociais, por sua vez, demonstrou a sua importância, mas, ao mesmo tempo, apresentou a dificuldade de uso do todo o potencial tecnológico e pragmático que as redes têm sem que se perca a perspectiva ética da política, que é cara para a esquerda. O mundo paralelo que o bolsonarismo criou é muito dificilmente acessado pelos que transitam na esfera pública como a conhecemos. Neste campo, este momento pode contribuir para a aprendizagem sobre o que de fato acontece massivamente com as pessoas a partir de campanhas sistemáticas de desinformação, manipulação das emoções, articulação simbólica de referências e produção de novas sociabilidades levadas a efeito pelos aplicativos mensageiros e redes sociais com potencial imagético. Vai ser necessário debater o que isso implica no sentimento do que é verdade ou mentira e nas identidades políticas que vão sendo construídas ao longo do tempo e que se manifestam em um momento de enorme fluxo de relações de poder como é o momento eleitoral.
Os desafios que enfrentamos nesta campanha estão vivos: a divergência que bifurcou o país, seguirá. Não que todos os eleitores de Bolsonaro sejam bolsonaristas, não o são. Muitas pessoas foram capturadas pela polarização, pelo antipetismo, pela orientação de voto dada pelo pastor ou pelo patrão e pela desinformação em geral. A campanha mobilizou muitos sentimentos que ainda precisam ser estudados. Mas importa reafirmar que cada eleitor dele tinha um Bolsonaro pra chamar de seu, ou seja, eles trabalharam com a ideia de grupos perfilados e cada perfil de grupo social recebia imagens de Bolsonaro que se adequavam aos seus desejos.
Os mecanismos comunicacionais usados pelo bolsonarismo em quatro anos, e não só na campanha, moldaram o debate eleitoral. Isso desafia a reconstrução do país em bases democráticas, incluindo aí a comunicação pública. É preciso discutir o sistema de comunicação e, mais ainda, a internet, tanto no sentido das desigualdades regionais e sociais de acesso, como na ausência total de padrões éticos que inibam manipulações como as que assistimos. As pessoas, e nossas subjetividades, estão sendo capturadas pelas grandes corporações através dos algoritmos. Produzimos dados para elas e elas manipulam nossas preferências, emoções, sentimentos e linhas políticas gerais. Certamente é possível resistir, mas para ampliar nossa força precisamos garantir uma ambiência a ser gerada pela democratização da internet. Esta é uma pauta fundamental para o próximo período.
Um outro desafio que teve centralidade no reduzido debate programático da campanha foi a questão ambiental, e mais precisamente a Amazônia. Eu diria que se trata de uma questão de justiça socioambiental. A discussão deve ser, na nossa perspectiva, sobre a mudança de padrão da relação entre nós seres humanos e os outros entes vivos, a quem chamamos de natureza. E quais implicações esta relação tem para nossas condições de vida e das futuras gerações. Aqui há muito a ser revisto em relação ao primeiro período do governo petista, e muito a ser feito.
Não é possível neste espaço resgatar todos os desafios que o momento político coloca para a sociedade brasileira. Todavia, quero fechar trazendo à tona o debate sobre o direito ao aborto. Na legítima disputa pelo voto dos contrários, Lula colocou na pauta do último debate de TV esta questão. Ele, que em outros momentos já defendeu que o aborto é uma questão de saúde pública, neste momento trouxe o tema para fazer a crítica ao adversário colocando-o no lugar de defensor. Ocorre que a fala de Bolsonaro, de trinta anos atrás, citada no debate, defendia, a bem da verdade, o controle da natalidade usando como método o aborto. O controle da natalidade, contrário ao planejamento familiar, é uma prática eugenista de impulsionar o desenvolvimento reduzindo a população pobre, majoritariamente preta. Ele foi implantado no Brasil com a esterilização em massa de mulheres negras e submetidas à pobreza na década de 1970, situação que foi confrontada pelo nascente movimento feminista. Lula poderia ter usado o mesmo discurso para expor a tendência nazista do adversário. Para nós, do movimento feminista, o aborto é um direito, fundamentado em nossa autodeterminação reprodutiva e na autonomia sobre nossos corpos. E desta luta não abrimos mão.
* Carmen Silva é socióloga, constrói o SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia, é militante do Fórum de Mulheres de Pernambuco e da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.