Por Arthur Castro, no Jornal Dois. Republicado por Outras Mídias.
No texto de hoje, pretendo jogar luz sobre um dos maiores acontecimentos da atualidade e que, mesmo estando diariamente nos noticiários, é pouco falado e aprofundado mesmo no meio progressista e de esquerda.
Quem são os Curdos?
O povo curdo é uma etnia que existe há milênios e está espalhado ao longo de quatro países: Turquia, Iraque, Síria e Irã. O seu sonho é a construção de um país próprio, o Curdistão, o que é brutalmente combatido por todos esses governos da região, negando o direito à sua própria língua e cultura.
No Iraque, de maioria árabe, a população curda foi vítima de uma tentativa de limpeza étnica liderada por Saddam Hussein, membro do Partido Baath¹, que chegou a utilizar armas químicas contra civis. Após a queda do governo, o Curdistão iraquiano recebeu uma relativa independência, sendo governado pela família Barzani, uma burguesia alinhada ao liberalismo, ao imperialismo ocidental e à Israel. Por outro lado, no Irã (de etnia persa), todas as organizações curdas são proibidas. O país vive uma ditadura religiosa e fundamentalista controlada pelo clero xiita², que reprime com violência as lutas por autonomia. Todos os anos, militantes curdos são condenados à pena de morte.
Na Turquia é onde se encontra grande parte da comunidade curda, alinhada à partidos de esquerda. O Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) era uma organização stalinista que combatia, por meio de terrorismo e guerrilha, pela construção de um Curdistão socialista, até que Abdullah Öcalan, seu líder, foi preso em uma operação da CIA. Na prisão, teve acesso aos escritos de Murray Bookchin e se inspirando em suas ideias, desenvolveu o Confederalismo Democrático.
O Confederalismo Democrático
Murray Bookchin foi um anarquista norte-americano que desenvolveu diversas ideias no campo socialista. Uma delas foi defendida em sua obra “Ecologia Social”, na qual afirmava a importância do ambientalismo para a esquerda; outra foi o “Municipalismo Libertário”, que significava a mudança da luta de classes do sindicato para os bairros³.
Öcalan, tendo acesso a essas propostas, construiu sua própria: combinou os escritos de Bookchin com outros elementos, produzindo um programa político inovador conhecido como Confederalismo Democrático. Essa proposta incluía a organização de assembleias e conselhos populares, por democracia direta, que funcionariam de baixo para cima com delegações controladas pelas bases.
Também entendia que a busca pela conquista do Estado não seria positiva, pois promoveria um nacionalismo étnico e militarista, e defendeu que o povo curdo construísse organismos políticos independentes e alternativos com cotas de participação para as diversas etnias. Öcalan também viu no patriarcado um grande problema, e o feminismo passou a ter um local de destaque, colocando a mulher como protagonista da libertação social e coletiva.
Gradualmente, o PKK rejeitou a linha pró-soviética e aderiu ao novo modelo. Apesar de em 2012 terem apresentado uma oficina no Encontro Anarquista de Saint-Imier, Suíça, nunca se afirmaram anarquistas, por considerarem que sua ideologia possui diversas inspirações, incluindo o marxismo.
A Guerra Civil Síria e a Revolução
Em 2011, manifestações explodiram no Norte da África e no Oriente Médio, e foram conhecidas como Primavera Árabe. Na Síria, o governo de Bashar Al Assad, do Partido Baath, reprimiu com extrema violência; a situação se radicalizou e o país mergulhou em uma guerra civil.
O governo Assad é nacionalista e muçulmano xiita, e conta com apoio do Irã, da Rússia e da China. Acusado pelo uso de armas químicas, por bombardear civis e pela prisão indiscriminada de opositores. Uma das cenas mais chocantes foi um vídeo mostrando crianças vítimas de gases lançados pelos soldados.
A oposição, os rebeldes sírios, são formados por uma diversidade de milícias armadas, em sua maioria fundamentalistas religiosas ligadas à Al-Qaeda e à Irmandade Muçulmana. O principal apoio vem da Turquia e da Arábia Saudita, que por serem países sunitas, querem enfraquecer os rivais religiosos; também recebem apoio de Estados Unidos, União Europeia e Israel. Onde as milícias rebeldes conquistaram o poder, perseguições religiosas e opressão às mulheres se tornaram lei. Há também suspeita de uso de armas químicas.
Diante desta situação, a população curda do norte da Síria viu a oportunidade de se tornar independente. O Partido da União Democrática (PYD) assumiu o controle da região e, inspirando-se no PKK, iniciou um processo revolucionário, socialista, ecológico e feminista. A situação militar passou para os braços armados YPG e YPJ, o segundo sendo exclusivamente formado por mulheres. Tanto o Governo quanto os rebeldes rejeitaram a atitude e tentaram tomar o controle da região, mas foram expulsos.
Então o pior aconteceu. A Al-Qaeda do Iraque se rebelou contra a própria organização e fundou uma inteiramente nova: o Estado Islâmico (ou Daesh). Esse grupo, se aproveitando do caos na Síria e das armas deixadas pelos EUA no Iraque (após a invasão), assumiu o controle de metade de ambos os países, e declarou guerra ao mundo todo. O Daesh começou a realizar vídeos mostrando execuções de prisioneiros, promoveu atentados terroristas, escravizou e estuprou mulheres e crianças e se mostrou uma força quase impossível de ser parada.
O novos extremistas decidiram que o primeiro alvo deveria ser a Revolução Curda, associada ao pecado. Cercaram a cidade de Kobane, e por um momento, o mundo inteiro olhou com apreensão. Mas o jogo virou: a brava resistência curda derrotou os terroristas fanáticos e começou a empurrar seus soldados de volta, expandindo a Revolução para mais e mais regiões. Milícias árabes e de outras etnias se juntaram aos curdos, dando origem às Forças Democráticas da Síria (FDS).
Os Estados Unidos, vendo uma oportunidade para se apresentarem como heróis, decidiram oferecer armamento e apoio militar à FDS no combate ao Daesh. A mídia ocidental começou a falar da importância curda na guerra, mas esconderam o caráter socialista e revolucionário da sua sociedade, apresentando como algo nacionalista e até mesmo liberal. Entre 2017 e 2018, o Estado Islâmico foi completamente derrotado.
Toda essa guerra e violência levou milhões de sírios a fugirem para outros países, incluindo na Europa. A grande quantidade de imigrantes fortaleceu partidos racistas e xenófobos de extrema direita, como a Reunificação Nacional na França ou o Alternativa para a Alemanha.
A Estrada até aqui
A Turquia vive sob um governo de direita liderado por Erdogan, um conservador religioso ligado à Irmandade Muçulmana. Diante do fortalecimento da Revolução Curda, que está na fronteira da Síria e da Turquia, ele decidiu endurecer. O governo turco começou a aumentar a repressão à população curda dentro do próprio país, e também a preparar o exército para atacar a região revolucionária na Síria.
A Turquia é o segundo maior exército da OTAN – uma aliança militar liderada pelos EUA – e atendendo ao pedido de seu aliado, Donald Trump anunciou o corte no apoio aos revolucionários curdos. A saída dos Estados Unidos foi um sinal verde para Erdogan iniciar um ataque em massa contra a Revolução, contando com o apoio dos rebeldes fundamentalistas (que sempre foram apoiados pelo seu governo).
Diante desta situação, a FDS iniciou uma aliança militar com Assad para resistirem aos inimigos em comum. O governo sírio pretende usar a ameaça militar turca para forçar o povo curdo a abandonar a Revolução e voltar a se submeter ao antigo regime; infelizmente, por hora, o curdistão sírio não vê outra opção diante do risco de genocídio.
Tudo indica que pode estar sendo construído um grande acordo internacional. A Turquia, vendo que não tem como seus rebeldes vencerem a Guerra Civil Síria, quer o fim da Revolução Curda. Assad quer a unidade nacional síria sob seu controle, incluindo o fim da autonomia curda. Os EUA, a Rússia, a União Europeia e todos os outros governos do mundo estão dispostos a abençoar esse acordo para evitarem novas imigrações.
É urgente que a esquerda não permita que a maior Revolução do século 21 caia no esquecimento. Ela é a prova de que Socialismo e Democracia podem conviver, fora das experiências autoritárias stalinistas e do reformismo socialdemocrata, conciliando anticapitalismo, ecologia e libertação nacional e da mulher.
¹ Baath significa “Socialismo Árabe”. Apesar do nome, se refere à uma ideologia nacionalista, pan-arabista, que busca unificar os povos árabes em torno de uma luta anti-imperialista regional. Ou seja, está distante de representar o que nós entendemos como socialismo (anticapitalismo e socialização dos meios de produção).
² O Islã é dividido em duas vertentes: xiismo e sunismo. Os sunitas são a imensa maioria em quase todos os países muçulmanos. Os xiitas são maioria apenas no Irã, mas tem presença em governos como na Síria e no Iraque. Ambos possuem fundamentalistas e moderados.
³ Bookchin acreditava que a luta por local de trabalho, ou seja, a luta sindical, estava ultrapassada e não servia mais aos nossos tempos. Atualmente, a melhor estratégia seria a organização popular por locais de moradia, como os bairros, promovendo assembleias populares na vizinhança.