Entre os dias 19 e 22 de outubro, militantes feministas de diferentes cidades e estados brasileiros se reuniram em Chã Grande, no Agreste pernambucano, para quatro dias de exposições, debates, rodas de autorreflexão e grupos de trabalho que tiveram como inspiração os feminismos e a luta antissistêmica. O Espiral Feminista, curso de formação feminista nacional de caráter teórico-político organizado pelo SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia, reuniu mais de 50 mulheres engajadas em organizações e frentes de luta do movimento feminista brasileiro.
Conferência de Abertura do Espiral Feminista com Betânia Ávila: contexto político mundial. Assista!
Em um contexto mundial de antifeminismo pungente, de avanço sobre os direitos conquistados pela classe trabalhadora em diferentes lugares do mundo, de grande obscurantismo e combate ao desenvolvimento do pensamento das ideias, das artes, da cultura, da educação, o Espiral Feminista se apresenta como contraponto e como forma de fortalecer a luta feminista no processo de resistência democrática. Se por um lado o neoliberalismo avança, por outro, vivemos um contexto de grande crescimento, expansão e aprofundamento do movimento feminista. O movimento feminista no Brasil hoje é uma das forças dos movimentos sociais populares que mais cresce, sendo um movimento absolutamente fundamental também na construção de uma nova perspectiva social.
Para disputar esse momento de ataque à educação e à todas as dimensões públicas da educação no Brasil, o Espiral Feminista objetivou o fortalecimento da prática e do pensamento crítico feminista a partir das elaborações e pesquisas feitas pelo SOS Corpo. Na programação formativa do curso aconteceram momentos de análise da conjuntura política mundial, do momento político brasileiro e de como o movimento feminista é estratégico para a defesa da democracia no país.
Conferência de Abertura do Espiral Feminista com Carmen Silva: momento político brasileiro. Assista!
Para isso, foram articulados elementos fundamentais para o movimento, especialmente a necessidade de aprofundar seu caráter antirracista, antipatriarcal e anticapitalista como parte indissociável da luta feminista dentro dos processos de contestação e resistência dos movimentos sociais contra a alçada do fascismo e do neoliberalismo na América Latina. Segundo Carmen Silva, integrante do SOS e uma das coordenadoras do curso, o Espiral Feminista foi proposto em “um momento da luta feminista que nos exige ter mais instrumentos para pensar o mundo”.
Autoconhecimento para organizar a resistência
Pensar o mundo exige um esforço de autorreflexão e essa foi uma das metodologias propostas pelo Espiral. De acordo com Vera Soares, da cidade de São Paulo, militante feminista e da educação pública, a autorreflexão e análise do atual cenário da luta feminista foram pontos importantes que ajudaram na compreensão do que está posto hoje como estratégia para o movimento.
“Acho que a construção do que significa o sistema foi uma sistematização brilhante que junta, tanto a contribuição e todos esses elementos que a gente acaba repetindo como mantra, gênero, raça e classe. Então, deixar de ser mantra e virar uma elaboração, uma construção, ao meu ver, foi importante para compreender em que momento da luta estamos. Ao mesmo tempo, eu achei fantástica a ideia de recuperar um grupo de autorreflexão. Fantástico saber que a gente pode retomar isso, com outros aprendizados”, avaliou a ativista.
O exercício de autorreflexão é um instrumento de potência para o feminismo. A partir do processo de fala e escuta com o objetivo de entender a multiplicidade da experiência do ser mulher, buscando assim um afastamento da essencialização da categoria, politiza-se o olhar sobre as experiências das mulheres diante do sistema-mundo racista, capitalista e patriarcal. Para Emanuelle Costa, da União Brasileira de Mulheres e do coletivo de Mulheres Negras da Paraíba, entender-se dentro do sistema foi um dos pontos-chave do curso.
“Contextualizar e falar sobre a política no mundo e como isso reflete aqui, o que está acontecendo aqui no Brasil e como isso reflete em nós mulheres, como foi a atividade que trouxe a questão do ser mulher, de como a gente se descobre mulher nessa sociedade, como foi essa descoberta, de como o feminismo contribuiu nessa descoberta e de como a gente se percebeu feminista diante disso tudo. Foram várias provocações, eu ainda estou me sentindo provocada. Todos os momentos tem valido a pena, um curso muito intenso, e de fato, muito político mesmo”, pontuou Emanuelle.
Entender o feminismo como um processo de autoconhecimento permite perceber o caráter político das opressões dentro das relações sociais nas quais as mulheres se localizam, amplia a ideia de democracia como uma forma de organizar a vida social e permite perceber ainda como o atual sistema quer a permanência das desigualdades sociais, em especial a desigualdade de poder nas relações sociais entre mulheres e homens para manter a dominação do patriarcado sobre a vida das mulheres.
Diferentes perspectivas para transformar a realidade
Tendo a educação popular feminista como metodologia de trabalho, o Espiral Feminista apresentou aportes teóricos que permitiram situar as lutas do feminismo no Brasil. Desafiado a agregar as mulheres em torno da construção de um mundo onde todas e todos possam viver bem, o movimento tem como tarefas históricas o enfrentamento ao sistema patriarcal, capitalista e racista. Para consubstanciar a luta, o curso trouxe as contribuições do feminismo negro, do feminismo materialista, do feminismo lésbico e do feminismo popular para fundamentar a resistência no confronto dentro do cenário de caos que se arquiteta para o Brasil diante da crise do sistema capitalista que está instalada. Para Cleuza Pedrosa, do Coletivo de Mulheres Raimunda Luzia de Souza, do Mato Grosso do Sul, o feminismo popular traz, na sua prática, a possibilidade de ampliar o diálogo com as trabalhadoras para amplificar também a luta feminista no enfrentamento ao sistema.
“O feminismo popular advém do feminismo que nós, enquanto mulheres negras, periféricas, mulheres que no dia a dia, já desenvolvem esse feminismo lá. Agora a gente não desenvolve com a teoria acadêmica, mas na prática, todo dia, a gente já faz o nosso feminismo na luta das mulheres no dia a dia, para contrapor esse sistema racista, machista e homofóbico que está aí, e que impede o bem viver das mulheres negras e de todas as trabalhadoras. Então eu achei interessantíssimo o debate sobre o feminismo popular, ajudou demais na compreensão e a ajudar a gente a continuar desenvolvendo o nosso trabalho e continuar aglutinando mais mulheres para a nossa luta”, enfatizou Cleuza.
Conhecer os diferentes feminismos permite, segundo Bibiana Serpa, militante feminista da Articulação de Mulheres Brasileiras, compreender a diferença como potência do feminismo enquanto movimento social, o que instrumentaliza também a luta. “Eu acho que foi muito importante porque a gente trabalhou diferentes perspectivas do feminismo. A gente falou sobre feminismo materialista, feminismo negro, o feminismo lésbico, o feminismo popular… e acho que a gente entender a nossa pluralidade de ação, de pensamento e prática faz com que isso nos potencialize e que a gente possa se entender enquanto movimento social a partir dessas diferentes perspectivas contemplando as diferentes lutas que essas perspectivas trazem pra gente”, apontou a participante do Rio de Janeiro.
De acordo com Maria Betânia Ávila, integrante do SOS Corpo e uma das coordenadoras curso, o Espiral Feminista surge como possibilidade de contribuição do Instituto em criar meios para organizar a luta e de criar um pensamento coletivo que seja capaz de ler o mundo criticamente, e, a partir disso, formular estratégias políticas para o fortalecimento e expansão do movimento feminista em defesa dos direitos das mulheres e da possibilidade de um aprendizado coletivo para enfrentar os desafios postos aos movimentos populares.
“Eu acho que organizar um curso feminista nacional é algo absolutamente necessário e fundamental nesse contexto para fortalecer esse movimento, para criar espaços de debate e de construção de pensamento coletivo.Trazemos para esse curso, assim como para os outros, o nosso acumulado, aquilo que vem da prática política, que vem das nossas reflexões e das nossas pesquisas, o que vimos acumulando como pensamento crítico, como análise da realidade. Mas ao propor isso, ao expressar isso no curso, nós também temos o diálogo que vem das companheiras que participam, ao mesmo tempo também aprendemos com elas e vamos nós todas reestruturando esse pensamento e pensando como que avançamos na construção de uma teoria crítica, numa análise crítica radical desse contexto que estamos vivendo. Então eu acho que é muito bacana que, tanto o SOS Corpo como outras organizações feministas estejam investindo nesses processos de educação, de arte. É também uma maneira de estar se contrapondo a esse período obscurantista que nós estamos passando. Esse curso foi uma experiência muito gratificante para nós do SOS, espero que tenha sido para todas as companheiras que participaram, que vieram de vários lugares do Brasil”, avaliou Betânia Ávila.
Programa de Formação Feminista
O SOS Corpo propôs, ao longo do ano de 2019, um Programa de Formação Feminista com o objetivo de compartilhar as elaborações do Instituto, trocar experiências e tecer novas elaborações de forma colaborativa com todas as mulheres para fortalecer o movimento feminista e construir o feminismo popular, antirracista e anticapitalista. Além do Espiral Feminista, tivemos processos de formação locais, como o Fontes e Veredas e o Caleidoscópio, este último onde vieram convidadas para trazer outras perspectivas para ampliar as reflexões acerca dos temas que atravessam a vida das mulheres, como explica Maria Betânia Ávila.
“Esse curso parte de uma programação maior, temos cursos menores e mais locais, cursos que convidamos pessoas para trazerem contribuições que vão deslanchar os processos de debate e reflexão, então é parte de uma programação do SOS enquanto Instituto. A nossa proposição é que essa programação possa estar no ano que vem aí anunciada e disponível, como parte das nossas propostas de aprendizado coletivo e produção coletiva de reflexão do pensamento crítico feminista”, enfatizou.
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