Liberta Elas

Por Carla Batista, na coluna Mulheres em Movimento do FolhaPE.

Liberta Elas

Soube da existência do Liberta Elas no dia em que compartilhamos nossas leituras de Presos que Menstruam, da jornalista Nana Queiroz, no encontro mensal do clube de leitura Floriterárias. Uma das suas integrantes esteve presente e aliamos o debate do livro, que é uma reportagem sobre a vida de mulheres privadas de liberdade em diversas regiões do país, com a experiência do coletivo no trabalho em presídios de mulheres em Pernambuco. Importa saber que existem pessoas que estão atentas ao que acontece nestes espaços, pensar que o isolamento pode ser rompido e de alguma forma ser observado e traduzido para fora dos seus muros de contenção.

Num segundo encontro com integrantes soube que o coletivo se formou no segundo semestre de 2018, ano em que realizaram as primeiras oficinas de afeto que incluíam a distribuição de kits de higiene. A formação do Coletivo é de psicólogas, advogadas, sociólogas e comunicadoras que têm como propósito levar atenção, cuidado e troca para dentro dos presídios femininos da Região Metropolitana do Recife.

Em 2019 tiveram um pequeno projeto aprovado pelo SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia, o que foi um impulso importante para que pudessem articular um número maior de atividades. No Presídio do Bom Pastor foram oficinas de grafite (com Pixegirls), de trança, de turbantes (com Negra Dany), oficinas jurídicas em parceria com a Defensoria Pública (DPU) e Grupo Robeyoncé da Faculdade de Direito do Recife. Neste caso, além das informações sobre tramites jurídicos, a equipe pesquisa sobre os processos para aquelas não estão informadas e chega a representar alguns casos. Organizam também as rodas de escuta sobre maternidade. De forma geral se destacam as preocupações daquelas que, tendo filhos, estão com as mães ausentes. Não se pode negar que a prisão destas mulheres muitas vezes funciona como um desestruturador de toda a família.

Na Colônia Penal Feminina de Abreu e Lima realizaram, por ocasião do 8 de março (8M), oficinas de auto-cuidado (com Resenhas de Maria), em que ofereceram tratamento com argila, hidratação da pele e maquiagem. Um estímulo à autoestima, ao olhar amoroso pra si mesma. Aí promovem também um clube de leitura e de convite ao exercício da expressão. Para isso selecionaram textos que se aproximassem mais da realidade das mulheres que ali estão e trabalham com elas a interpretação dos textos. A dinâmica da vida prisional impede que a participação não seja tão rotativa quanto gostariam, mas há aquelas que são assíduas.

A leitura é uma atividade importante para a ressocialização e acreditam com ela poder contribuir com o que está reconhecido pela Lei de Remição de Pena pelo estudo e pelo trabalho (12.433/11) à qual se vincula a Recomendação de nº 44 do Conselho Nacional de Justiça, que inclui a remição por leitura. Explico: a leitura de um livro no prazo de 22 a 30 dias, acompanhada da produção de uma resenha, que precisa ser aprovada, pode diminuir em 4 dias uma pena. Cada apenado/a pode resenhar até 12 livros por ano, dentro de uma lista pré-definida, que o Liberta Elas gostaria de ampliar para a inclusão de textos que criem maior identidade, como os que utilizam nas oficinas. Veja como o “cuidar de si” aí é proposto de forma combinada: o cuidado do corpo e o do pensar. É um belo jeito de aproximar a liberdade, tanto de forma concreta quanto abstrata, visto que a leitura, se pode diminuir prazo de pena, é também uma forma de fazer o pensamento fluir livremente. Como se sabe, ler o mundo, educa.

Integrantes do coletivo Liberta Elas
Integrantes do coletivo Liberta Elas – Crédito: Divulgação

De outro extremo do globo a russa Nadya Tolokonnikova, uma das (ex?)integrantes do grupo punk Pussy Riot, relatou o período em que esteve na prisão em Um Guia Pussy Riot para o Ativismo. Para recordar: ela e 4 companheiras foram detidas após a apresentação de “uma oração punk: virgem Maria, mãe de Deus, leve Putin embora!” na Catedral de Cristo Salvador, em Moscou. Em dezembro de 2013, quando foram soltas, fundaram a organização Zona Prava (Zona dos Direitos) que tem como missão lutar pela reforma do sistema carcerário e acabar com a atual corporação policial. Ajudam presos/as a escrever reclamações e petições, abrir processos, ter acesso a profissionais de saúde e contribuem para que os casos mais graves (câncer, AIDS) consigam liberdade condicional, além de realizar trabalho educativo com as equipes de carcereiros e policiais. Por Nadya ficamos sabendo que na Rússia a maioria das pessoas que está nas cadeias foi detida em função da guerra às drogas e o segundo grupo mais numeroso é o de mulheres que reagiram à violência doméstica com as próprias mãos, diante da ausência de proteção do Estado, isto é, que agiram em legítima defesa.

No Brasil uma das vozes mais conhecidas e inspiradoras dos movimentos pelo fim do encarceramento é a da filósofa norteamericana Angela Davis. Em Uma Autobiografia relatou os seus primeiros 28 anos de vida, inclusive a época em que esteve presa e que já refletia sobre a questão que mais tarde irá desenvolver em outros trabalhos teóricos e fundamentados em pesquisas, a exemplo de Estarão as Prisões Obsoletas? Ambos livros, publicados recentemente por aqui, são referencias para compreender a história dos movimentos pela abolição das prisões, no qual as integrantes do Liberta Elas se incluem. Ângela Davis faz um histórico que permite visibilizar um fio condutor entre a escravidão nos Estados Unidos e o que leva a que a maioria de presidiários/as daquele país sejam pessoas negras, o que não é diferente no Brasil. É dela a referência abaixo para abolicionismo penal:

“(…) o complexo industrial-prisional** é muito mais do que a soma de todas as cadeias e prisões do país. É um conjunto de relações simbióticas entre comunidades correcionais, corporações transnacionais, conglomerados de mídia, sindicatos de guardas e projetos legislativos e judiciais. Se é verdade que o significado contemporâneo da punição é formado por meio dessas relações, então as estratégias abolicionistas mais eficazes precisam contestar essas relações e propor alternativas que as desmontem. O que significaria, então, imaginar um sistema no qual não seja permitido que a punição se torne a fonte de lucro corporativo? Como podemos imaginar uma sociedade na qual a raça e classe não sejam causas determinantes primárias de punição? Ou uma sociedade na qual a própria punição não seja mais a preocupação central na administração da justiça? (…) colocando o desencarceramento como nossa estratégia global, tentaríamos imaginar um continuum de alternativas ao encarceramento – a desmilitarização das escolas, a revitalização da educação em todos os níveis, um sistema de saúde que ofereça atendimento físico e mental gratuito para todos e um sistema de justiça baseado na reparação e na reconciliação em vez de na punição e na retaliação”(DAVIS, 2019, pgs 115 e 116).

O Brasil, assim como os EUA, tem uma das maiores populações carcerária de mulheres do mundo, entre 2000 a 2018 esta população aumentou em 700%. A maioria (62%) são prisões relacionadas ao tráfico de drogas. A maioria é negra, a maioria não chegou a acessar o ensino médio. Apenas 7% dos presídios são exclusivamente femininos, 90% das unidades mistas e 49% das femininas são consideradas inadequadas para gestantes. Estes dados foram divulgados em novembro de 2018, a partir de um estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas. Em 2015 outra pesquisa levantou que a chance de suicídio é 20% maior entre as mulheres encarceradas. A distribuição indiscriminada de medicamentos para “acalmar” mulheres que acontece em presídios no Brasil é também citada por Davis e Tolokonnikova.

Os países e os continentes são diferentes, mas parece que a lógica que alimenta os sistemas de encarceramento se assemelham. Em todos os lugares raça, classe social e gênero determinam as prisões e a situação de desumanização a que encarcerados/as estão expostos/as. Em nome da justiça, a ausência de direitos e a violência são uma constante. “No caso das mulheres, a continuidade de tratamento que recebem no mundo livre para o universo da prisão é ainda mais complicada, já que elas também enfrentam na prisão formas de violência que enfrentam em casa e nos relacionamentos íntimos” (DAVIS, 2019, p 86).

O Coletivo Liberta Elas publica mensalmente uma coluna na Carta Capital aonde as integrantes abordam ideias que defendem e o trabalho que realizam. No link a seguir você pode acessar um desses artigos em que elas abordam a negação da escuta e arbitrariedade de uma prisão por porte de drogas:

É importante que organizações como o Liberta Elas, Zona de Direitos, pesquisadores/as, movimentos abolicionistas e antiproibicionistas existam, não é mesmo? Você pode participar e/ou contribuir. O Coletivo recebe doações de materiais de higiene, roupas, maquiagem, livros, que possam ser partilhados entre as detentas. Entre em contato se você gostaria de colaborar através do Facebook: Liberta Elas, Instagram: libertaelas e da vaquinha https://www.vakinha.com.br/vaquinha/liberta-elas-ajuda-a-gente-a-continuar-nossa-acoes

Ainda fico me questionando sobre o abolicionismo nos casos de crime contra a vida, feminicídios, ou de estupros de vulneráveis… São debates que precisamos fazer.

Para terminar ofereço a você a música Libertação com Elza Soares e Baiana System (do recém lançado Planeta Fome). https://youtu.be/sreEWWmb0vE

** Se refere aos EUA, aonde as prisões estão privatizadas.

As citações entre aspas são do livro Estarão as Prisões Obsoletas? Angela Davis, Ed. Difel.

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