Fundamentalismos: projeto contra a vida das mulheres

Grupos cristãos alcançaram as esferas mais altas de poder, e têm projeto político, de raízes coloniais, que destrói diversidade cultural e subjuga mulheres. Entidades feministas, indígenas e religiosos lançam campanha para enfrentá-los

Por SOS Corpo, na coluna Baderna Feminista, do site Outras Palavras | Ilustração: Stephanie Pollo

A cena de dezenas de pessoas ajoelhadas com terços na mão, rezando em frente à portaria principal do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (CISAM), na cidade de Recife no último domingo (16), e os gritos e atos violentos contra uma menina de 10 anos, que carregava em seu corpo infantil uma gravidez resultante de estupro, é tão repugnante quanto reveladora de como o fundamentalismo nos imputa a um projeto de nação sombrio. A cena daqueles homens e mulheres, fanáticos conservadores, evidencia que o fundamentalismo não é uma ideologia ou um discurso moral: é uma força política, econômica, cultural e religiosa com práticas de violência e discursos de ódio e crueldade que questionam a própria condição humana. Evidenciam a perversidade de um grupo político que manipula e usa da fé para disseminar ações institucionalizadas e discursos de ódio que sustentam o sistema patriarcal, capitalista e racista.

O fundamentalismo é uma ideologia profundamente conservadora. É uma força econômica e política organizada (em instituições religiosas, grandes conglomerados de comunicação, partidos políticos, grupos auto-organizados…) e cada vez mais consolidada nos poderes do Estado (executivo e legislativo, sobretudo) e nos territórios, em associação com outros poderes. E o fundamentalismo se traduz na prática concreta, na palavra e no gesto violento dos(as) fundamentalistas, eles mesmos, contra grupos, corpos, territórios materiais e imateriais de povos, e valores éticos e emancipatórios e os grupos que os professam. Nega a pluralidade e a diversidade e ameaça a vida democrática.

O fundamentalismo têm alcançado diferentes esferas da vida social não só no Brasil, mas como uma ideologia aliada à ultradireita conservadora e neoliberal em todo o mundo. Neste caso que repercutiu aqui no Brasil e no exterior, além de fiéis conservadores, a ação violenta foi fortemente estimulada por políticos pentecostais, como os deputados estaduais de Pernambuco Joel da Harpa (PP), Clarissa Tércio (PSC), o pastor Clayton Collins (PP) e a vereadora do Recife, Michele Collins (PP). Todos usaram e abusaram da fé para alçar cargos públicos em casas legislativas, formando a conhecida bancadas da bíblia, cujo projeto se vincula com as bancadas da bala e do agronegócio.

Assim como uma organização criminosa, a força fundamentalista tem uma articulação profunda, não se expressando apenas pelo seu viés religioso, mas é nele onde a esfera da opressão patriarcal mais se consolida. São com dogmas religiosos que seus agentes defendem a criminalização, a submissão e o sacrifício das mulheres em nome de Deus, para controlar nossos corpos e nossa força de trabalho. O fundamentalismo está presente na imaterialidade e na materialidade de nossas vidas e representa um projeto de morte à vida de meninas, mulheres, crianças, comunidades tradicionais de terreiro, pessoas LGBTQIA+ e nas experiências daquelas e daqueles que pensam outros projetos de mundo. Uma violência que se justifica a partir de pressupostos bíblicos universais. Contudo, o fundamentalismo em seu viés religioso é apenas uma das frentes em que esta ideologia atua.

O fundamentalismo representa um poder fortemente organizado, com doutrinas estratégicas, a exemplo da teologia da prosperidade, que prega um individualismo capitalista, profundamente patriarcal e racista, com a ideia de que toda a riqueza é reservada aos fiéis por Deus. Estão impregnados também nas instituições públicas, que garantem a estabilidade deste poder. Ao longo das últimas décadas de ascensão fundamentalista na região latinoamericana, vimos como o discurso de ódio e o abuso de poder político via religião se associaram a setores armados da sociedade, como as milícias e o tráfico de drogas, para atuar nas comunidades mais periféricas e nos territórios tradicionais. As estratégias, baseadas em um discurso divino de “salvação”, têm sido comuns e em muitas vezes, impostas através de ações violentas, como nos casos de ataques a terreiros de candomblé e umbanda. Cada vez mais presente no interior do Estado, vem disputando o controle e a gerência de fatias do fundo público destinado a política de combate às drogas. Vimos ainda o fundamentalismo ganhar espaços na mídia hegemônica com seus grandes conglomerados de comunicação. O fundamentalismo vêm atuando sistematicamente para controlar os corpos e vidas das mulheres, para criminalizar comunidades desassistidas pelo Estado, para atacar a diversidade de pensamento e de modos de existir no mundo.

Diante da ascensão autoritária no Brasil e em outros governos da América Latina, diferentes entidades e organizações lançaram no último dia 17 de agosto a campanha Tire os Fundamentalismos do Caminho Pela Vida das Mulheres. A campanha é fruto de uma articulação entre organizações feministas, organizações religiosas de diferentes matrizes e cooperação ecumênica frente ao avanço dos fundamentalismos em ameaça aos direitos, à democracia e a vida das mulheres. As organizações que lançaram a campanha são a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME); Brot für die Welt (Pão para o Mundo); Centro de Estudos Bíblicos – CEBI; Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC); Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE); Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG); Fórum Ecumênico; Fundação Luterana de Diaconia (FLD); Fundação Rosa Luxemburgo; Instituto PACS – Políticas Alternativas para Cone Sul; Rede de Mulheres de Terreiro de Pernambuco; Red de Teólogas, Pastoras, Activistas e Lideresas Cristianas (TEPALI); Projeto Imigrantes e Refugiados/as: Desafios da Casa Comum; e SOS Corpo Instituto Feminista para Democracia.

Para fazer o contraponto e levar para a sociedade o debate de como é nociva a ação do fundamentalismo, a campanha firma uma aliança histórica entre entidades e movimentos feministas, de luta por liberdade e pela democracia, para mostrar os riscos do projeto de morte desta ideologia para a vida de meninas e mulheres, que temos nossos corpos usados como plataforma política por estes setores. Para eles, os fundamentalistas, nossas experiências não importam. Seu discurso tem como fundamento a ideia de que a vida de nós mulheres não têm valor: só valem quando sacrificadas, o que é a medida mesma do seu desvalor.

Em associação com outros poderes igualmente não democráticos, os fundamentalistas utilizam a violência, a censura e avançam cada vez mais em articulação com as forças neoliberais, formando um amálgama político, ideológico e econômico que estiveram na base do golpe de 2016 e na ascensão de Bolsonaro. Esse poder político tem crescido pelo profundo contexto de insegurança social, de insegurança subjetiva e de violação de direitos, provocadas pela articulação destes mesmos poderes. O fundamentalismo aprofunda práticas racistas, machistas e a violência, como explicitou Verônica Ferreira, integrante e educadora do SOS Corpo, militante feminista do Fórum de Mulheres de Pernambuco e da Articulação de Mulheres Brasileiras, durante o lançamento da campanha.

“O enfrentamento aos fundamentalismos é uma necessidade urgente de levar adiante uma batalha ética contra os desvalores, contra o irracionalismo, contra o negacionismo, contra o racismo, contra a misoginia, contra a translesbofobia, que estes setores defendem como sua estratégia de ascensão ao poder”, declarou Verônica Ferreira.

São objetivos da iniciativa alertar a sociedade de que o caminho que estamos seguindo com o atual governo é de total desvalor à vida, à liberdade religiosa e da crença plural, caminhos necessários para a construção de uma sociedade que tenha na sua base o respeito à diversidade e às diferentes formas de viver o mundo, pilares fundamentais de qualquer sociedade democrática. O projeto político fundamentalista no Brasil tem raízes coloniais profundas e é a base para toda a política de genocídio das populações indígenas e da escravização das populações africanas, povos que até os dias de hoje são alvo desta ideologia. Conforme destacou Elisa Pankararu, coordenadora do Departamento de Mulheres Indígenas da APOINME, a ação religiosa fundamentalista, através das missões cristãs, incentivou guerras entre povos indígenas e esse mesmo discurso de ódio está presente hoje nas declarações do governo que incentivam a invasão das terras indígenas e atrasa a demarcação de tantas outras.

“Não são à toa as declarações do governo que aí está. Foi oficialmente incentivada a invasão de nossas terras e nossos territórios sagrados por garimpeiros, fazendeiros e etc. Em cada território indígena desse país, nós vamos ter exemplos concretos de violências, seja elas assassinatos de nossas lideranças, seja a negação de direitos às políticas públicas, como é o exemplo da própria Covid-19”, comentou a liderança Pankararu, lembrando dos 16 vetos feitos pelo governo Bolsonaro ao Projeto de Lei que assegurava ações emergenciais para populações indígenas e quilombolas durante a pandemia, como acesso à água, alimentos, máscaras e demais recursos de saúde.

“Se faz necessário dizer aos nossos irmãos e irmãs, aos nossos parentes: os nossos inimigos sempre foram declarados, mas agora eles estão mais escancarados, não tem mais ética, não tem mais educação, não tem mais a mínima decência do que vão dizer e do que vão fazer. Então a nós cabe a decência e a força que sempre tivemos de lutar por esse território sagrado, corpo e espírito, não apenas nosso. E é pela força desse nosso espírito sagrado que nós estamos aqui para defender a nossa geração, a nossa descendência futura, as nossas crianças que aqui estão e a nossa palavra”, enfatizou Elisa Pankararu durante sua fala no lançamento da campanha. No último dia 10 de agosto, lideranças Pankararu sofreram ameaças de morte por ex-posseiros que avançam sobre as terras indígenas, localizadas em municípios do Sertão pernambucano.

A ação fundamentalista que se encontra a partir da dominância econômica impulsionada pelas invasões de terras para serem usurpadas por indústrias extrativistas, tem suporte também no racismo institucional, sobretudo por parte do judiciário, quando se trata de casos de intolerância religiosa. “Essa ideologia, esse fundamentalismo hoje encontra amparo no poder. E é por isso que nós sempre vivemos em situação de desvantagem econômica, social, política e ambiental. O racismo é a base das discriminações e dos preconceitos e do fundamentalismo. Um fundamentalismo que induz ao ódio”, contou Vera Baroni, Yábassê do terreiro Ylê Obá Aganjú Okoloiá, fundadora da Rede de Mulheres de Terreiro de Pernambuco e Integrante da Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB).

A denúncia que a aliança de organizações feministas, entidades baseadas na fé de matriz cristã, afrobrasileiras e indígenas apresenta é a de que o fundamentalismo possui diferentes características de atuação, mas, seja na política, na economia ou na religião, a ideologia também é expressão do patriarcado, do racismo e da opressão de classe, que conformam as relações sociais. Para Romi Bencke, teóloga, pastora luterana do movimento ecumênico e atual secretária-geral Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), a campanha além de denunciar os avanços do fundamentalismo na sociedade e os riscos para a vida das mulheres, é de convocar cristãos e cristãs para a autocrítica e para o enfrentamento ao uso da fé cristã por um projeto de sociedade que constrói uma cultura de morte.

“Os fundamentalismos infelizmente no continente latino-americano têm se manifestado por uma matriz religiosa cristã. Então para nós, cristãos e cristãs, serve a um chamado a autocrítica. Mas não uma autocrítica momentânea, mas uma autocrítica permanente. Será que nós queremos que a fé em Jesus Cristo seja associado a atitudes de racismo, violência, exclusão, apedrejamentos públicos? Será que é isso mesmo que nós queremos?”, declarou Romi Bencke.

A transmissão de lançamento pode ser assistida na página Tire os Fundamentalismos do Caminho, no facebook. A campanha está aberta a adesão de outras organizações, clicando aqui. Nele você pode se inscrever também para receber pelo celular os materiais da campanha e saber mais sobre a programação das próximas ações.

Na batalha ética que está sendo travada na sociedade e frente aos poderes políticos institucionais, precisamos nos opor ao fundamentalismo com nossas experiências feministas e de transformação feita por mulheres em diferentes organizações, criando territórios de resistência, resiliência e empatia. O que pode ser visto acontecer em Recife no dia 16 de agosto é um exemplo da experiência feminista em criar redes de proteção e solidariedade contra a palavra e ação violentas dos fundamentalistas.

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