*Por Fran Ribeiro e Déborah Guaraná.
Agosto de 2019 foi um mês histórico para o movimento de mulheres no Brasil. A Jornada Política das Mulheres em Brasília – que contou com as Marchas das Margaridas e das Mulheres Indígenas, lançamento da Frente Parlamentar Feminista Antirracista com Participação Popular, Plenária da Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto, além de vários encontros, reuniões, ocupações, plenárias e atos políticos – reverberou no movimento feminista de uma maneira potente, ganhando repercussão para além dos jardins murados brasilienses, principalmente por conta de um intenso trabalho colaborativo de jornalistas empenhadas(os) em fazer jornalismo de maneira independente.
Apesar da grandiosidade das manifestações, a Jornada teve pouca repercussão nas mídias tradicionais. Sendo uma das forças responsáveis que influenciaram no golpe em 2016, historicamente, os grandes meios de comunicação representam os interesses da classe política dominante. No Brasil, o monopólio da mídia pode ser identificado pela falta de pluralidade e diversificação do conteúdo, o que influi diretamente para formação da opinião pública e na polarização política. Atualmente no país, os 50 veículos de TV, rádio, mídia impressa e online de maior audiência pertencem a 26 grupos de comunicação – grupos esses que possuem interesses econômicos, políticos e religiosos e negócios nos setores da educação, saúde, nos setores imobiliário e financeiro, do agronegócio e de energia, segundo os dados da pesquisa “Quem controla a mídia no Brasil?”, realizada pelo Coletivo Brasil de Comunicação – Intervozes, em parceria com a organização Repórteres Sem Fronteiras.
Esses interesses ditam qual o sentido da comunicação que meios disseminam, desde o enaltecimento de algum dos setores – vide a campanha da rede Globo em defesa do agronegócio – à criminalização dos movimentos sociais, uma vez que a narrativa colocada pela mídia em grandes manifestações como as vistas em Brasília, é sempre a de que as mobilizações sociais atrapalham a vida das pessoas, uma mentira estrategicamente plantada pelo discurso midiático com o objetivo de marginalizar as pessoas que se organizam para contestar e denunciar as desigualdades sociais.
Porém, quem pôde estar presente em Brasília naquela semana de agosto (e quem não pôde também) conseguiu ver, ouvir, ler, sentir a força que as mulheres indígenas, trabalhadoras do campo, das águas, das florestas e das cidades demonstraram nos seis dias de ações em defesa da democracia, da vida humana e dos territórios, e de reconhecer nelas uma luta contínua e igualmente histórica por direitos e soberania, através de comunicadoras e comunicadores engajadas/os com as lutas sociais por meio de meios de comunicação independentes e alternativos, que nos últimos anos, têm colocado a comunicação popular e política como uma trincheira na luta contra os sistemas que geram as desigualdades.
Enquanto projeto político que propõe uma mudança radical das relações de poder na sociedade, onde as mulheres sejam sujeitos ativos de sua própria história, o feminismo pauta a produção de conhecimento situado, que desloque as mulheres da situação que nos foi imposta por um sistema econômico que é de dominação e exploração. Feminismo é, sobretudo, revolução. É uma luta diária de encantar mentes a partir do projeto de sociedade que vislumbra o fim das hierarquias. E isso se dá também por meio da disputa de narrativas, de contar outras histórias, colocando no centro da história as mulheres em sua diversidade.
Foi com essa inspiração que a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), através de sua Coletiva de Comunicação, organizou uma proposta ousada: promover uma grande ação política de incidência a partir da produção de comunicação feminista na cobertura das Marcha das Mulheres Indígenas e da Marcha das Margaridas.
Comunicação em rede: feminista, popular e antissitêmica
A comunicação é um elemento chave na auto-constituição do movimento feminista enquanto sujeito político. Ela se torna fundamental por permitir que a expressão das mulheres em condições de desigualdade econômica, étnica e racial imprima uma interpretação da realidade desde um outro olhar, o que situa a comunicação como uma ação política. Dessa maneira, a comunicação feminista amplia a luta pela pela democratização da comunicação no Brasil.
Foi a partir dessa compreensão que surgiu o projeto de comunicação colaborativa de caráter feminista pela AMB. De acordo com Cris Cavalcanti, militante feminista do Fórum de Mulheres de Pernambuco (FMPE) e da AMB, solidificar uma comunicação feminista é democratizar a informação “isso vem acontecendo de um tempo pra cá e cada vez com mais força envolvendo comunicação, artivismo, uma comunicação antissistêmica”, pontuou.
“A gente fez uma cobertura com cerca de 25 companheiras feministas colaborando em diferentes espaços da comunicação. Uma cobertura que a gente construiu e vem construindo dentro da Articulação de Mulheres Brasileiras na intenção de descolonizar cada vez mais os nossos discursos e democratizar mesmo a informação, a forma e a representação dessa informação. Essas mulheres precisam estar na comunicação e elas estiveram, o que foi muito positivo pra gente isso”, explicou Cris que participou da coordenação geral do projeto e na cobertura audiovisual das Marchas.
Participaram da ação comunicadoras de coletivos e organizações feministas como o SOS Corpo, o CFEMEA, a Casa da Mulher do Nordeste, do Fórum de Mulheres de Pernambuco, da Universidade Livre Feminista, do Coletivo Motim, da AMB Rio de Janeiro, além de comunicadoras independentes e que não faziam parte especificamente da Coletiva de Comunicação da AMB, mas que atenderam ao chamado para montar uma rede ampla. A rede contou ainda com apoio de comunicadoras internacionais que difundiram o conteúdo pela América Latina, como a Articulación Feminista Marcosur.
Para Déborah Guaraná, integrante do SOS Corpo, militante feminista do agrupamento da AMB em Pernambuco, e que esteve à frente das produções audiovisuais e da RádioZap, “a comunicação da AMB foi pensada primeiro em formato de rede, tem muita gente contribuindo do campo e de casa, de vários lugares do Brasil. A gente tentou garantir que a gente conseguisse fazer uma comunicação popular, numa perspectiva de comunicação contra-hegemônica, porque isso aqui – uma marcha que por mais que reúna 100 mil pessoas – ainda é relegado a um lugar de não história. A gente tá garantindo que a nossa história seja contada, que a nossa história alcance mais pessoas”, contou Guaraná.
E o alcance foi sentido pelo quantidade de conteúdos produzidos sobre a atividades. De acordo com os dados levantados pela coordenação geral da cobertura, foram feitas no período das Marchas, 15 matérias para sites, 29 postagens de instagram e 25 postagens de facebook, 09 postagens de twiiter, cerca de 300 vídeos brutos, 1000 fotos, dois vídeos editados e mais de 20 mil alcances com mais de 3 mil envolvimentos nas redes sociais. Para um movimento social dentro do atual contexto de perseguição no Brasil, esses dados revelam muito do poder e força que o feminismo e o movimento de mulheres tem ganhado nas ruas e nas redes sociais.
Participando da difusão de conteúdo pelas redes sociais e sites, Cristina Lima, da secretaria executiva da Universidade Livre Feminista e militante da AMB, foi uma das comunicadoras que participaram da rede colaborativa atuando de casa. De João Pessoa, na Paraíba, a feminista trabalhou junto à equipe que garantiu a divulgação do que era produzido, além de receber e distribuir vídeos, fotos e relatos das militantes dos agrupamentos da AMB de todo o Brasil que, mesmo não sendo da comunicação, contribuíram e muito na produção de conteúdo da comunicação feminista.
“Ter uma equipe em campo e não estar em campo, mas fazer parte dessa equipe construindo a comunicação, viralizando as informações, criando a gente como sujeito de comunicação nesse processo foi uma experiência bastante rica. Acho que eu nunca vivi na AMB, na coletiva de comunicação, esse formato foi inteiramente novo. E saber que a gente tava só num pedacinho, que tinha toda uma estratégia colocada, a RádioZap, tudo que tava rolando, os registros de vídeo, imagens, todas as companheiras da AMB que também enviaram imagens e ajudaram a construir essa comunicação, que não foi só essa equipe pequena, mas o resultado desse trabalho também vem de todas as militantes da AMB”, avaliou a paraibana.
RádioZap, conectando quem estava perto e quem estava longe ao mesmo tempo
Sem dúvida alguma, uma das ações previstas no plano de comunicação que contribuiu para a disseminação do que estava acontecendo durante as Marchas foi a RádioZap, uma experiência de comunicação popular de longo alcance. Para Rayane Noronha do Coletivo Leila Diniz, agrupamento da AMB no Rio Grande do Norte, a RádioZap foi uma das estratégias que contribuiu para a democratização da informação produzida por nós mesmas, o que proporcionou uma visão completamente diferente da mídia hegemônica.
“Eu acho que a gente produzir e protagonizar o nosso próprio processo de produção de comunicação é essencial pra luta. A comunicação é imprescindível para qualquer disputa, correlação de forças. Então, se a gente não consegue se comunicar a gente também não consegue alterar as estruturas e pela comunicação a gente consegue fazer isso, pela fotografia, pelo vídeo, pela RádioZap. Então é uma estratégia imprescindível e eu acho que é uma sacada muito grande pra gente conseguir também acessar outras mulheres de outras localidades, que estão aí conectadas no whatsapp e às vezes tem dificuldade de chegar uma informação, de ler um texto, então eu acho que foi uma sacada muito boa”, afirmou Rayane.
*Fran Ribeiro e Déborah Guaraná integram o SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia. Este texto faz parte da cobertura colaborativa realizada pela Coletiva de Comunicação da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), em parceria com Universidade Livre Feminista (ULF), organizada especialmente para cobrir a Marcha das Mulheres Indígenas e Marcha das Margaridas.
Expediente – Coordenação Geral: Cris Cavalcanti (PE); Texto: Fran Ribeiro (PE), Gabriela Falcão (PE), Carmen Silva (PE); Laura Molinari (RJ), Carolina Coelho (RJ), Raquel Ribeiro (RJ), Angela Freitas (RJ), Rosa Maria Mattos (RJ), Thays Andrade (CE), Milena Argenta (DF) e Priscila Britto (DF); Fotos: Carolina Coelho (RJ), Rayane Noronha (RN) e Fran Ribeiro (PE); Vídeos: Déborah Guaraná (PE), Cris Cavalcanti (PE), Fran Ribeiro (PE), Milena Argenta (DF), Carolina Coelho (RJ) e Raquel Ribeiro (RJ); Edições: Déborah Guaraná (PE) e Coletivo Motim (RN); Diagramação: Déborah Guaraná (PE), Bibiana Serpa (RJ), Cris Cavalcanti (PE) Sites e Redes Sociais: Cristina Lima (PB), Cris Cavalcanti (PE), Analba Brazão (PE), Emanuela Marinho (PE), Luna Costa (RJ); Produção: Mayra Medeiros (PE) e Masra Abreu (DF);