Como seria a sociedade se o cuidado estivesse no centro da economia e da vida social?

No Curso Nacional Espiral Feminista “O mundo do trabalho e a vida das mulheres”, realizado pelo SOS Corpo entre os dia 21 e 23 de março, debateu entre outros assuntos, a perspectiva do cuidado em diferentes dimensões da vida cotidiana. 

| Texto e fotos: Fran Ribeiro/SOS Corpo|

Participantes do Curso Espiral Feminista.

E se a gente colocasse o cuidado no centro da economia e da vida social, como é que seria a sociedade? Essa pergunta gerou reflexões profundas no grupo de mulheres que participou do Espiral Feminista, curso nacional do SOS Corpo, realizado em Recife entre os dias 21 a 23 de março de 2024. 

Com o tema O mundo do trabalho e a vida das mulheres, o curso foi coordenado pelas educadoras do SOS Corpo Rivane Arantes, Betânia Ávila e Daniela Rodrigues. A atividade educativa foi direcionada para um público específico, já que um dos objetivos era dialogar com trabalhadoras vinculadas a diferentes movimentos, redes, coletivos e ONGs sobre a ampliação do contexto de informalidade e precariedade das relações de trabalho e os impactos na vida das mulheres, suas famílias e comunidades. 

Reunimos cerca de 50 mulheres de diferentes categorias da classe trabalhadora de diversas cidades do país. Estiveram presentes mulheres da RENFA, AMAS LGBT, Coletivo de Mulheres Criando Moda, Casa Laudelina de Campos Melo, CRIOLA, REDEH, Rede de Mulheres de Nova Friburgo, Articulação de Mulheres Brasileiras, Sindicato das Assistentes Sociais do Maranhão, CUT, Articulação Nacional das Pescadoras, Associação de Prostitutas e Profissionais do Sexo, Fórum de Mulheres de Pernambuco, Sindoméstico Bahia, FENATRAD, Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, Feira das Mulheres Pretas, Movimento de Mulheres Camponesas, Associação de Mulheres Ambulantes da Economia Popular de Recife, CONTAG, CONTAR, Casa da Mulher do Nordeste, Associação de Catadoras de Materiais Recicláveis e Liga Brasileira de Lésbicas. 

Com uma metodologia de exposição dialogada, Betânia Ávila conduziu o debate a partir da perspectiva e análise feminista sobre o mundo do trabalho. Por este fio a educadora apresentou o conceito de cuidado, suas dimensões éticas e como ele é central nas relações de trabalho produtivo e reprodutivo e na vida cotidiana, como uma necessidade humana para se viver em sociedade. Trazer elementos que permeiam essas dimensões foram importantes para aprofundar as reflexões. 

Betânia Ávila fez o aporte para debate sobre o cuidado na centralidade da vida social.

Em seu aporte, Betânia explicou como o poder dominante vai destruindo as relações de cuidado e solidariedade, uma vez que o projeto neoliberal coloca o lucro na centralidade da vida social e econômica e a partir disso, valores, concepções e as relações vão sendo moldadas, individualizando cada vez mais a vida cotidiana, os problemas e as soluções. Se na centralidade do projeto político do capital está o lucro, o que a classe trabalhadora produz, sobretudo as mulheres, ela não usufrui. 

No mundo, o trabalho também é uma forma de relação, mas na maioria das vezes, essa relação é de exploração e o cuidado é usado de maneira perversa pela classe dominante. Tudo que as pessoas fazem sem cuidado prejudica, explora e afeta de maneira perversa a outra pessoa. Essa dimensão da exploração do trabalho das mulheres pode ser vista nas relações onde o trabalho envolve o cuidado. O afeto é usado para confundir e explorar, como acontece corriqueiramente no trabalho reprodutivo exercido pelas trabalhadoras domésticas. O cuidado tem uma dimensão ética que estrutura as relações sociais, inclusive as relações de trabalho. 

Vivemos hoje no mundo um desafio ético, uma crise humanitária provocada pelo modelo capitalista de sociedade que tem em seu projeto político, econômico e social o extermínio de corpos dissidentes, negros e indígenas, onde o lucro promove a desumanização, a violência, os desapossamentos e violações dos territórios. Diante disso, não tem como desconsiderar as dimensões de classe, raça e gênero no debate sobre cuidado, já que a interseccionalidade das relações determinam quais são as experiências de vida e de trabalho que serão invisibilizadas, quais trabalhadoras terão seus direitos violados e não garantidos. 

Cerca de 50 mulheres de diferentes locais do país participaram do Espiral Feminista.

Pescadoras artesanais, prostitutas, trabalhadoras de serviços gerais, babás, trabalhadoras rurais, quebradeiras de coco babaçu, trabalhadoras domésticas e catadoras de materiais recicláveis são algumas das categorias de trabalho que, pela informalidade, tem seus direitos impactados pela invisibilidade, pela desproteção social e pela falta de cuidado nas relações laborais. São justamente as categorias que mais cuidam que são as mais exploradas e desrespeitadas em seus direitos trabalhistas e como cidadãs. A consequência disso é a vulnerabilidade, que gera adoecimentos físicos, emocionais e psíquicos. 

Ainda em seu aporte, Betânia Ávila explicou que numa perspectiva feminista e coletiva, o cuidado é contrário de dominação. O cuidado para o projeto político feminista não está apartado do que defendemos sobre a democracia, esta pensada na vida cotidiana, nas dimensões institucionais, mas sobretudo no dia-a-dia, dentro de casa, no trabalho, nas relações interpessoais, coletivas e deve ser defendida e respeitada, sobretudo, dentro e fora dos movimentos sociais.

“O cuidado como transformação do mundo é caminho para a emancipação – Betânia Ávila”

Após o aporte da educadora, seguiu-se um debate entre as participantes, que foram convidadas a interagir com a pergunta: como seria a sociedade em que o cuidado estivesse no centro da economia e da vida social? Instigadas pela explanação da educadora, as participantes trouxeram reflexões ancoradas nas experiências de vida, trabalho e militância. 

Qual é o mundo que nós, mulheres, queremos viver? Para as participantes presentes, com o cuidado no centro teríamos uma sociedade onde tudo que é produzido é compartilhado com quem produz. Seria uma sociedade do bem viver e do compartilhamento dos bens comuns de maneira igualitária e respeitando as relações entre pessoas e com o meio ambiente.

Teríamos uma sociedade que compreende que a divisão justa do trabalho doméstico é central, com relações sociais onde o trabalho produtivo seria valorizado e não explorado, logo, a precarização do trabalho das mulheres não existiria, bem como a situação de informalidade de algumas categorias, uma vez que o trabalho formal e os direitos trabalhistas também estariam no centro da vida econômica e social. Seria garantir a diminuição da jornada de trabalho sem perdas salariais, o que permitiria que as mulheres tivessem tempo para o cuidado de si, de sua saúde física e mental. O trabalho reprodutivo seria melhor equalizado dentro das famílias e a sobrecarga física e emocional das mulheres, amenizado. 

As participantes refletiram sobre como haveria ainda a diminuição da violência contra as mulheres, já que direitos e responsabilidades envolveriam toda a família, isso impactaria na criação dos meninos para serem responsáveis também pelas tarefas e não perpetuar a continuidade da sobrecarga de trabalho reprodutivo nas meninas e mulheres. 

Mas, para que tudo isso fosse possível na dimensão da vida cotidiana das mulheres, de acordo com as participantes do curso Espiral Feminista, seria necessário que o cuidado também estivesse no centro das políticas do Estado. É preciso que os governos garantam a aplicabilidade das políticas públicas e as condições estruturais da vida em sociedade. Com serviços de qualidade, com profissionais valorizados e melhor preparados para lidar com os problemas sociais, os problemas e soluções seriam coletivizados, impactando diretamente na qualidade de vida da classe trabalhadora. 

Além do tema do cuidado, o curso discutiu também sobre seguridade social como direitos a todas as mulheres, sobre os direitos trabalhistas conquistados pelas categorias presentes no curso, auto organização e processos de luta das trabalhadoras. 

Espiral Feminista

O Espiral Feminista tem uma metodologia que prioriza o conhecimento como uma construção coletiva permanente. A partir de um processo que articula a reflexão coletiva à ação prática para mudar o mundo, o curso se banha de fontes que foram elaboradas por pensadoras e intelectuais que vieram antes, como uma espiral ascendente que nunca volta para o mesmo lugar, mas segue cheia de linhas que se confrontam e se renovam a cada instante.

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