A luta por autodeterminação reprodutiva é um dos pilares da luta feminista em toda a sua trajetória e em todos os lugares deste mundo. No artigo especial do Março de #lutafeminista, Talita Rodrigues analisa o contexto da luta pelo direito ao aborto e a necessidade de termos mais aliados à ela.
| Artigo de Talita Rodrigues* | Edição e Revisão: Fran Ribeiro |
A luta por autodeterminação reprodutiva é um dos pilares da luta feminista em toda a sua trajetória e em todos os lugares deste mundo. Temos lutado há décadas para avançar na construção de uma sociedade em que as mulheres sejam sujeitos de si mesmas e que a liberdade e a justiça sejam estruturantes das relações sociais de gênero, raça e classe. Assim, o direito ao aborto é central para alcançarmos a autodeterminação e a justiça reprodutiva, imprescindíveis para a vivência democrática que queremos para todas as mulheres e outras pessoas que gestam no país. Porém, temos vivido tempos difíceis nesta luta, temos perdido mais do que avançado. Nossas estratégias têm sido barrar os retrocessos e segurar a onda conservadora que passa derrubando de forma avassaladora tudo que a gente constrói a passos lentos, no ritmo possível diante da necessidade de pensar tática e estrategicamente os passos a seguir.
Temos um inimigo bem declarado, aqueles e aquelas fundamentalistas, conservadores, de direita, de extrema-direita, os ditos cristãos e cristãs. Temos também desmascarado a hipocrisia ao longo do tempo e mostrado que por trás dos discursos pró-vida, o que se opera de fato, o seu objetivo final, é a implantação de políticas de morte, necropolíticas, contra nós, mulheres, sobretudo negras e empobrecidas. Escancaramos o ódio deles às meninas e mulheres, quando em meio a pandemia da COVID-19, religiosos e políticos da bancada cristã de Pernambuco, perseguiram uma menina de 10 anos que precisava realizar um aborto para salvar sua vida, no dia 16 de agosto de 2020 em frente ao CISAM. Denunciamos também o desejo perverso de controlar os nossos corpos e a nossa reprodução a favor da manutenção do poder e da dominação masculina e racial sobre nós e sobre toda a estrutura da sociedade.
Na década de 1980 conseguimos barrar a proposta de grupos religiosos que defendiam o direito a vida desde a concepção com o objetivo de impedir o aborto em qualquer situação. Nossa vitória garantiu que nós, mulheres, tivéssemos respeitado o direito ao aborto nos casos previstos em Lei, segundo o Código Penal de 1940. Conquistamos também o direito ao aborto de fetos anencéfalos e investimos energia para garantir a construção e implementação de políticas públicas de atenção a saúde reprodutiva, incluindo os serviços de aborto legal. Formamos profissionais de saúde e pautamos o debate na sociedade. Somos parte fundamental da construção do SUS e das políticas de atenção à saúde das mulheres. Em meio a tudo isso, seguimos barrando retrocessos, agora, com avanços cada vez mais lentos e com a necessidade de resistência cada vez mais intensa.
Nos últimos anos, recuamos, por mais que não queiramos aceitar esse dado da realidade. Mesmo que não tenham aprovado o famigerado Estatuto do Nascituro, eles institucionalizaram a violência e legitimaram a “caça às bruxas” dentro e fora dos serviços de saúde através de normas técnicas nefastas; de projetos de lei inconstitucionais, que amedrontam ou fortalecem tendências dentro dos serviços de saúde; de posições públicas contrárias ao aborto de figuras importantes; de políticas de desinformação via redes sociais; assim como pela territorialização de suas pautas e ataques aos direitos das mulheres de forma coordenada em diversos municípios do território nacional.
A capilarização da ação do fundamentalismo religioso em todos os recantos deste país, através de igrejas e rádios evangélicas que se utilizam de discursos pré-moldados para destituir direitos conquistados, e precarizar ainda mais a vida da população, atacando principalmente os direitos das mulheres, é uma estratégia de controle de corpos e subjetividades para a manutenção do poder, domínio e exploração patriarcal, racial e capitalista. Já vimos outras estratégias de imposição de poder ao longo da história e o domínio sobre o corpo, a sexualidade e a reprodução das mulheres é central em todas elas.
Quanto à situação do direito ao aborto no Brasil, sabemos que ele é permitido em três casos: risco de vida para a pessoa gestante, gravidez decorrente de estupro e anencefalia fetal. Sabemos ainda que apesar de todos os nossos esforços e lutas, ele ainda não conseguiu ser implementado em sua integralidade. Muitas mulheres, meninas e outras pessoas que gestam precisam desses serviços e ainda continuam sem acesso, ou tendo um atendimento de péssima qualidade, muitas vezes sofrendo violência e criminalização quando tentam acessá-los.
A distância deste direito é ainda maior para meninas e mulheres negras, assim como para pessoas trans masculinas, não binárias e intersex. Muitas de nós têm suas vidas interrompidas ou dramaticamente impactadas pelas barreiras de acesso ao aborto legal. Outras mais, muitas mais, têm suas vidas impactadas e interrompidas por gestações indesejadas em que o aborto legal não é sequer uma possibilidade, pois não é direito, levando-as à insegurança, à ilegalidade e à criminalização. Somos muitas, somos diversas, com incontáveis histórias e trajetórias. Clandestinas. Criminalizadas.
No dia 28 de fevereiro deste ano, às vésperas do mês de luta feminista, o Ministério da Saúde do governo Lula lançou uma nota técnica orientando o cuidado em casos de abortamentos de gravidez avançada – um nó que foi dado nos serviços de aborto legal no governo Bolsonaro quando lançou uma Nota Técnica orientando o abortamento até 21 semanas em desacordo com o que está previsto na Lei Penal, que não impõe limite de semanas para a interrupção gestacional. Cabe ao Ministério da Saúde orientar e criar condições para que os serviços de saúde cumpram a Lei e não criar barreiras que a obstacularizem.
Neste sentido, a Nota Técnica conjunta N°2 do Ministério da Saúde de 28 de fevereiro de 2024, buscava corrigir uma falha e garantir direitos, porém, foi ferrenhamente atacada pelos setores fundamentalistas da extrema-direita, alvo da desinformação e do ódio misógino. A Nota foi publicada na noite do dia 28 e na manhã do dia 29, a informação falsa que Lula tinha permitido o aborto até os 9 meses de gestação tinha se espalhado na linha de transmissão de evangélicos e católicos fundamentalistas como pólvora. Diante da repercussão, o governo recuou e em menos de 24h a Nota foi derrubada.
Desde a década de 1940 não temos limite gestacional para a realização do procedimento de aborto legal no Brasil. Em 2024 tivemos a primeira Nota Técnica escrita pelo Ministério da Saúde orientando sobre os cuidados para garantir este direito em gestações avançadas e em menos de 24h tudo foi desfeito. O governo, dito progressista, recuou diante da pressão não só da oposição, mas principalmente de seus aliados fundamentalistas.
Este assunto reverberou nas páginas feministas e em algumas páginas de movimentos ligados à saúde ou aos direitos de crianças e adolescentes, mas não teve força suficiente sequer para virar pauta no campo da esquerda democrática, para fazer barulho nas redes ou nas ruas. Este episódio não foi suficiente para ganhamos adesão de outros setores na construção de um março de luta feminista potente que reivindique a retomada da Nota Técnica e a garantia absoluta e inegociável dos direitos reprodutivos das mulheres.
Nós, feministas, seguimos de pé, lutando e resistindo nas trincheiras pelo direito ao aborto, autodeterminação e justiça reprodutiva no Brasil. Sabemos quem são os nossos inimigos. Mas, a pergunta que está sem resposta é: quem são os nossos aliados?
*Talita Rodrigues é é mestra em Saúde Coletiva pela FIOCRUZ/PE, pesquisadora e educadora do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia.