Sujeitos do feminismo fazem suas leituras de conjuntura e apresentam suas estratégias para o momento de retomada democrática e enfrentamento aos fundamentalismos locais
Estamos em março, mês de luta das mulheres. Nós movimentamos o país nos últimos anos resistindo à uma conjuntura tenebrosa, mas também criando caminhos para o bem-viver a partir de nossas experiências juntas. O 8 de março é uma experiência deste tipo, onde há esforço de articulação em torno de uma ação unificada. Encarar os desafios de fazer um ato deste tipo juntas é experimentar em menor escala as adversidades do fazer política. É desafiante.
E este é um ano de muito desafio para nós, que fazemos movimento de mulheres e movimento feminista. É necessário reconstruir o que foi destruído, ao mesmo tempo que se avança nessas mesmas políticas que estão sendo resgatadas, para superar suas limitações e enfrentar a situação de desigualdades e violências em que as mulheres se encontram. E ainda enfrentar a o ofensiva anti-trans (e anti-feminista) se alastrando como uma doença que gera engajamento, lucro e promove divisão dentro próprio movimento.
Este ano, conversamos com alguns expoentes da luta pernambucana para entender o contexto da luta das mulheres neste momento. Perguntamos qual a leitura que fazem da vitória eleitoral de esquerda no Executivo ao mesmo tempo em que as casas legislativas ainda estão tomadas pelo fundamentalismo. Quais as principais pautas que defenderão este ano? Qual relação vão manter com o governo e legislativo local? E qual as estratégias do movimento feminista para avançar a luta das mulheres?
Hoje apresentamos a entrevista com Rosa Marques. Ela começou sua trajetória política em vários movimentos. Foi do grupo Solano Trindade, com Inaldete Pinheiro; instituiu um grupo chamado Mulheres Negras de Camaragibe e no inicio do ano 2000 compôs a primeira Articulação de Negros e Negras de Pernambuco. Hoje, seu principal espaço de atuação política é a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco (RMNPE), cujos princípios de luta são o enfrentamento ao racismo e às violências e a construção do bem-viver. Rosa também compõe a Articulação Permanente de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres e milita na Articulação Nacional de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) representando a RMNPE.
[SosCorpo] Diante das perdas recentes, qual a leitura do movimento de mulheres negras sobre a retomada democrática?
A luta contra o racismo é secular, perpassa vários contextos desse país. Ainda estamos iniciando um governo de esquerda depois de um período em que se instaurou o exercício do ódio sem nenhum pudor. Ódio pelas pessoas negras, mulheres, pessoas LGBTQ+ e povos originários. O próprio governo atuou de forma qualificada para promover o ódio e conseguiu fazer com que as pessoas odiassem inclusive a si mesmas. A gente percebe através do projeto “Eu voto em Negra”, de formação de candidatas e parcerias para incidência com parlamentares eleitas, que a as mulheres negras e trans acessaram estes espaços, mas são marcadas com veemência pela violência política, do governo anterior, com sua negação do , estruturada pelo racismo, patriarcado e lesbotransfobia. e das mulheres, reverberou na inserção das mulheres negras dentro dos parlamentos.
No âmbito institucional, as políticas públicas voltadas para as mulheres e para a população negra foram totalmente desarticuladas, junto com a própria democracia no país. Então, pensar o governo atual é lembrar que ele está dentro da estrutura que foi deixada, que ainda tem seus recursos e orçamentos amarrados pelo governo anterior.
E aí pensar o governo atual nessa conjuntura de aumento de pobreza, das violências, da insegurança alimentar, da insegurança enquanto pessoa é bem complexo. Perspectivas temos, mas a gente sabe que leva tempo. Sabemos que ninguém muda uma estrutura em quatro anos. Na primeira eleição do governo Lula dele, foram quatro anos para reorganizar a casa e, no segundo ano é que foi possível visualizar as políticas mais contundentes e seus efeitos, como a redução da pobreza.
Acho que ele deu o recado perfeito no dia do primeiro de janeiro: na posse, ele colocou vários grupos de pessoas subindo a rampa para dizer “o que você renegou, eu estou trazendo de volta”. Foi simbólico, e aí, agora que o governo está em curso, é preciso que haja mais diálogo, mais escuta às demandas dos movimentos sociais e recurso para as políticas públicas. Um dos gargalos para a melhoria de vida da população negra é o orçamento do Ministério Igualdade Racial. Se não tiver orçamento equivalente à demanda da política pública que precisa ser implementada, vai ser difícil frear toda a violação aos direitos da população negra nesse país. Lula já retomou as bolsas de CAPES, MEC, portanto é provável que o governo dele vá incentivar a retomada das cotas nas universidades, pôr mais ênfase nas ações afirmativas. Mas é preciso investir recursos! Podemos ter os melhores Ministros, sem orçamento e sem uma equipe técnica preparada para [o trabalho] não vai funcionar.
[SOS Corpo] E aí está também o desafio de ter tido uma resultado eleitoral de esquerda no Executivo, enquanto a direita ainda continua forte no Legislativo.
Se a gente olhar para o Brasil, a gente sabe que esses espaços estão lotados de fundamentalistas. Aqui, na nossa terra, nós estamos atentas. Desde 2019, a Rede tem acompanhado de perto o cenário político dentro da Câmara Municipal e da Assembleia Legislativa. Esse ano fizemos campanha e vencemos a presidência da comissão de Direitos Humanos da ALEPE. Foi nossa primeira ação este ano para diminuir o poder dos fundamentalistas.
A nossa estratégia, enquanto movimento social, é fazer a formação política para as mulheres negras que estão se dispondo a sair como candidatas, fazer campanha para que sejam eleitas e, durante o mandato delas, acompanhamos o que acontece no espaço legislativo e avaliamos onde é possível incidir. Essa é a forma que a rede encontra para se contrapor a esses fundamentalistas racistas e misóginos.
Mas nós temos tido trabalho dobrado. Já é secular a luta contra o racismo, contra os racistas, contra os misóginos e fascistas nestes espaços, mas agora, nós precisamos criar outras estratégias para lidar com essas subjetividades doentias. Hoje, não tem mais como dialogar com as pessoas bolsonaristas, não há possibilidade de diálogo, porque não há racionalidade. Eles conversam de forma idiota, sem argumentação para fechar o diálogo. Não tem mais a ver com o argumento político, é a doença mental do outro e as subjetividades que a gente ainda não compreendeu. A gente sabe do papel da desinformação e fake news, mas eu acho que ainda merece estudos para a gente entender esse fenômeno no contexto psíquico.
[SosCorpo] E qual é o contexto da luta antirracista agora em Pernambuco?
Vai ser desafiador. A gente tá lidando com uma governadora que foi eleita pela benevolência cristã da sociedade pernambucana, afinal ela ganhou o pleito porque o marido dela morreu.
E, embora ela tenha ficado em cima do muro em relação a sua posição política, tentando subestimar a nossa inteligência, a ponto de pensar que a gente não saberia identificar, dentro do contexto político, qual é a posição dela, nós compreendemos que Raquel Lyra é bolsonarista. Nossa avaliação é de que esse governo já é pior que o anterior, e também de que a situação não tende a melhorar, porque temos um governo bolsonarista aliado a uma ALEPE bolsonarista, o que é bem perigoso para a população preta e periférica pernambucana.
Por isso, a gente vai se armar. A gente vai fortalecer esse lugar de enfrentamento, aproveitando os espaços que a governadora mesmo disse que vai abrir. Uma das decisões que tomamos para este ano foi a de pensar estrategicamente a retomada de nossa participação nos Conselhos, pois acreditamos que eles devem ser paritários e principalmente agora, porque estão sob comando da sociedade civil, devemos assumir seu papel.
[SosCorpo] E que ações o movimento de mulheres negras está planejando nacionalmente?
Estamos atentas! Essa é a palavra. Nós, mulheres negras, estamos atentas para o enfrentamento, para as cobranças e para fazer incidência em todos os casos necessários mesmo no governo Lula. Porque, embora saibamos que é o governo, pra nós, mais democrático, a população negra ainda vive uma situação muito crítica. A gente sabe que o racismo está presente e ele não acabou porque Lula ganhou. Então as mulheres negras estão atentas, acompanhando o cenário e se munindo informações para que a nossa incidência seja qualificada dentro do que se pede para as mudança
A gente também está se preparando para realizar mais uma Marcha das Mulheres Negras. Da mesma forma que naquele ano de 2015 a gente fez um processo, criou uma plataforma, vamos dar continuidade a essa metodologia. Vamos acompanhar como está se dando o ajuste das políticas públicas para nós, mulheres negras, para mostrar o que retrocedeu, avançou, e como é que a gente quer para o país.
[SosCorpo] Como engajar-se na militância através da Rede?
– Para entrar na Rede é preciso primeiro ser uma mulher negra e compactuar com nossos princípios: ancestralidade, identidade e resistência. A gente compreende que estamos aqui porque outras estiveram antes de nós, que a gente precisa se respeitar, reafirmar positivamente a nossa identidade e a nossa resistência. É isso que nos nutre e alimenta o bem viver.
Então, a pessoa que chega, recebe essas informações e nos informa quem ela é e onde ela quer atuar politicamente, afinal o espaço da Rede é de militância, e não de simples participação. Nos dividimos em Comissões de trabalho. É a Comissão de acolhida que recebe as mensagens nas redes sociais e prepara um momento com data específica para receber as mulheres que estão se aproximando da Rede.
Então, a pessoa que chega, recebe essas informações e nos informa quem ela é e onde ela quer atuar politicamente, afinal o espaço da Rede é de militância, e não de simples participação. Nos dividimos em Comissões de trabalho. É a Comissão de acolhida que recebe as mensagens nas redes sociais e prepara um momento com data específica para receber as mulheres que estão se aproximando da Rede.