Mulheres Originárias: Reflorestando Mentes para a Cura da Terra!

Nesta carta-relato, Analba Brazão. educadora e pesquisadora do SOS Corpo, narra um pouco da luta, da energia, sentimentos e caminhos construídos e vivenciados durante sua participação na II Marcha das Mulheres Indígenas, que aconteceu em Brasília, entre os dias 07 e 11 de setembro deste ano.

Militante feminista da Articulação de Mulheres Brasileiras, Analba Brazão destaca a força da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade no enfrentamento às ameaças bolsonariastas que rondaram Brasília naqueles dias que antecederam a realização da Marcha, que percorreu as ruas da capital levando mais de 6 mil mulheres indígenas no dia 10 de setembro.

II Marcha das Mulheres Indígenas, ato dia 11 de setembro 2021, Brasília/DF. Foto: Alass Derivas

II Marcha das Mulheres Indígenas

Mulheres Originárias: Reflorestando Mentes para a Cura da Terra!

Estamos juntas para dizer: PAREM DE VIOLENTAR OS NOSSOS CORPOS TERRITÓRIOS! Mulheres indígenas de todos os estados dizem não ao Marco Temporal! Glicélia Tupinambá)

Eu estive lá! Inicio este relato dizendo o quanto foi vigoroso, para mim vigoroso, além de emocionante, ter participado da II Marcha das Mulheres Indígenas (MMI). Na primeira Marcha, realizada em 2019, escrevi um relato que dizia “Eu estava lá, mas não estava lá! Contava um pouco da minha experiência de não ter ido a Brasília, mas de ter me sentido presente através das fotos, vídeos, conversas telefônicas e também por ter participado de toda a preparação da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) para apoiar politicamente a MMI.

Desta vez foi diferente. Estive presencialmente, junto com outras companheiras que lá estavam, todas alimentando nossas redes para mostrar, através dos vídeos e fotos, o que estávamos vivenciando. Nesta missão buscamos reportar o evento, de modo a permitir às que não puderam estar presentes, se emocionar junto, se sentido lá, mesmo sem estar lá! 

Desta vez, “eu estava lá!” vivenciando os 5 dias no acampamento das mulheres indígenas. Minha vontade era de estar acampada com elas. Mas fui convencida, pelas amigas, que devido às questões de saúde eu deveria me aquietar. Pois bem, me aquietei, mas ia para o acampamento às 8h da manhã, certa de que voltaria para a hospedagem cedo. Qual o quê! Mesmo com toda a secura de Brasília e o calor terrível, não conseguia arredar o pé. Estar lá ouvindo os cantos das parentas, vendo as danças, a diversidade dos povos (em torno de 150 etnias diferentes), me transmitia uma energia inacreditável. Era pura emoção e a esperança que estavam ali na minha frente: a resistência viva e muita coragem para a luta.

O ambiente estava tenso, com bolsonaristas acampados proximamente ao acampamento das mulheres indígenas. Na  primeira noite, do dia 6 para o dia 7 de setembro, entraram com seus ônibus e carretas na Esplanada dos Ministérios fazendo buzinaços que, de tempos em tempos, madrugada adentro, não permitiam que as mulheres indígenas conseguissem dormir. Nesta mesma noite também tentaram invadir o acampamento. Eram dez bolsonaristas. Mas não tiveram sucesso pela eficiência da segurança que protegia as mulheres. Por conta dessa tensão a coordenação da MMI, em acordo com as regionais, decidiram pela não participação no Grito das Excluídas e Excluídos, do dia 7 de setembro, que se realizou na Torre de Televisão. Decidiram permanecer no acampamento, e assim foi.

No dia 7 ainda estavam chegando caravanas dos estados. O acampamento foi organizado por biomas. Havia tendas para cadastramento, por bioma, e também para as companheiras não indígenas. Havia a tenda da saúde, uma tenda de apoio e infraestrutura, uma cozinha central, um espaço enorme para a comunicação, uma tenda de medicina tradicional, outra onde se aplicava massagens e a tenda da AMB, de autocuidado e cuidado coletivo. Também havia um espaço bem agradável para as crianças. Foi impressionante ver a quantidade de pessoas voluntárias trabalhando em todas essas tendas. Em diversos pontos havia lindos artesanatos trazidos para vender pelas mulheres. Na cozinha, muito peixe assado e beiju.

Performance “Corpo Território – Cabeça Bicho” realizada no acampamento da II Marcha das Mulheres Indígenas, Brasília, 2021. Foto: Patrick Raynaud

Uma tenda central era reservada para as plenárias  durante o dia e a noite, onde se apresentavam as caravanas dos estados. Este espaço agregava, permanentemente, muita gente para assistir a diversas apresentações e comunicações, como a respeito das medidas sanitárias Sempre éramos lembradas, como o uso das máscaras e do álcool gel. Quanto à aglomeração, foi difícil conseguir o distanciamento necessário.

Foi na tenda central que, na noite do dia 7, as organizadoras solicitaram aos  homens que tinham permanecido em Brasília (após longos dias de protesto contra o Marco Temporal e em defesa da demarcação das terras indígenas), e que também estavam no acampamento, que respeitassem o espaço que era das mulheres, lembrando que seria papel deles contribuir na limpeza e na segurança, cabendo às mulheres todas as decisões.

Nesta mesma noite estava programado o momento de apresentar as organizações que estavam apoiando a II MMI, mas não houve tempo.

A ideia inicial era que, no dia 8 de agosto, sairíamos em marcha até o Supremo Tribunal Federal (STF) para acompanhar a votação sobre o Marco Temporal. Com a tensão criada pelos bolsonaristas, mais uma vez foi necessário decidir por permanecer no acampamento, acompanhando de lá a votação.

O dia 9 era o dia da Marcha das Mulheres Indígenas em direção à Esplanada dos Ministérios. Entretanto, a preocupação constante em relação às ameaças bolsonaristas instalou, na coordenação, a incerteza sobre se seria possível a Marcha sair naquele  dia. O clima de tensão obrigou a programação a ser modificada constantemente e a maioria dos debates a esse respeito ocorreram na Tenda principal, sempre mesclada com apresentações das caravanas indígenas. No final da manhã do dia 9 houve uma audiência pública na tenda central, com a presença da Defensoria Pública e algumas deputadas, entre elas Erika Kokay, Joênia Wapichana e Talíria Petrone.

As programações da Tenda de cuidado e autocuidado também foram mudando. O acordo foi de que a programação fosse flexível, sempre em consonância com a programação da Marcha. Mesmo assim conseguimos fazer rodas incríveis de cuidado. Massagens nos pés com alecrim, reflexologia, exercícios com a técnica de redução do estresse, roda de debate sobre o sentido de cuidar e se autocuidar para a luta e troca de saberes sobre cuidados ancestrais.

No dia 8 pela manhã recebemos a visita, na nossa Tenda, de duas companheiras da coordenação da MMI que, muito emocionadas, agradeceram o apoio que a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) e o SOS Corpo, afirmando como era importante ter o movimento feminista apoiando politicamente a II Marcha das Mulheres Indígenas. Lembraram de todo o apoio que a AMB também deu na primeira marcha.

Nesta segunda marcha, a AMB se articulou diretamente com a coordenação da mobilização indígena e nosso apoio foi seguindo as orientações e prioridades que nos eram apresentadas pela coordenação da MMI. Desde as primeiras reuniões, anteriores ao evento, nossas parceiras indígenas explicitaram a dificuldade que estava sendo para fechar a programação, por conta da incerteza do contexto político. Foi por decisão estratégica que a programação precisou ficar bastante flexível.

Pela manhã do dia 9, na Tenda Central, houve a abertura oficial da II Marcha das Mulheres Indígenas, quando foi feita uma homenagem às duas meninas indígenas assassinadas: Daiane e Raissa. Esta homenagem começou com uma apresentação da MC Anaranda, rapper indígena, e em seguida Célia Xakriabá fez uma fala, da qual cito um trechinho:

“Mãe terra, mãe semente, mulheres que são sementes e não são só mulheres, somente… Enquanto não existe remédio, só o amor é o que cura [trecho da música cantada pela MC Anaranda, música em memória de Raissa, que não é somente Raissa]. É a raiz de tantas meninas violentadas e Daiane Kaigang, que foi morta e esquartejada, como este governo genocida tem feito também com as terras indígenas. Nós subimos no palco para denunciar, mas precisamos descer pra fazer justiça no chão. Quando mataram Raissa e Daiane mataram todas as indígenas. Enquanto II Marcha das Mulheres Indígenas, nós  precisamos sair com um compromisso de que não permitiremos a violência sobre o corpo das nossas meninas e mulheres…”

Performance “Corpo Território – Cabeça Bicho” realizada no acampamento da II Marcha das Mulheres Indígenas, Brasília, 2021. Foto: Patrick Raynaud

Assistíamos à votação do dia 8, no Supremo Tribunal Federal pelo telão quando a votação foi suspensa. O impasse aumentava com relação à Marcha, prevista para o dia seguinte pela manhã. A polícia, em diálogo com o apoio jurídico da MMI, chegou a dizer que não garantiria a segurança da mobilização, alegando que seria perigoso, pois bolsonaristas continuavam na Esplanada também aguardando a votação do Marco Temporal, remarcada para o dia 9 à tarde.

Nesse mesmo dia 8, à tarde, foi a data de abertura da nossa tenda do cuidado e autocuidado, e a primeira atividade foi com as benzedeiras. Muitas passaram pela tenda para se benzerem, inclusive algumas indígenas que estavam na coordenação. Foi um momento de muita beleza, com sensação de tranquilidade. No início da noite houve uma roda sobre o sentido de nos cuidarmos, de cuidarmos do nosso corpo e do nosso espírito, facilitada por Inara Nascimento que, enquanto massageava nossos pés com as ervas, uma a uma, solicitava que as companheiras se apresentassem contando como se cuidavam, contando experiências de cuidado que faziam nas aldeias, nas suas casas. Foram aprendizados ancestrais colocados ali, naquela roda.

Somos as originárias da terra. A luta pela mãe terra é a mãe de todas as lutas! (Sônia Guajajara)

Mais tarde, nessa mesma noite, houve outro momento bem especial, iniciado com as coordenadoras da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade – ANMIGA fazendo um jogral sobre a linha do tempo desta articulação e da luta das mulheres indígenas. Elas iniciaram este momento se apresentando: Somos guerreiras da ancestralidade. Somos mulheres sementes. Somos mulheres raízes, somos mulheres terra, somos mulheres água, somos mulheres ar e mulheres fogo. Somos de todos os Biomas. Somos as da Amazônia, somos as do Cerrado, somos as caatingas, somos as do Pantanal, somos as do Pampas, somos as Mata Atlânticas. Somos as mulheres indígenas deste Brasil! (Celia Xakriabá, Shirley Krenak, Sônia Jaraguá, Cris Pankararu, Josi Kaingang, Nyg Kaingang, Ana Xokleng, Lucimara Xokleng, Simone Karipuna, O- Kayapó, Mayalu Kayapó, Telma Taurepang, Val Terena, Kerexu).

Também nesta noite, algumas artistas indígenas se apresentaram, além de grupos de várias etnias. Uma beleza estonteante vinha das apresentações de cada estado, sendo que de cada um deles havia distintos povos se apresentando. Eram, portanto, muitas apresentações, muitas danças. Uma das coisas que me chamou particular atenção nas danças indígenas foi o aterramento. O Toré, com a batida dos pés, na maioria pés descalços, aterra, fortalece, centra e segue. As danças na sua maioria são circulares, seja com os braços entrelaçados em filas, ou filas de frente para outras filas, com a saída também aterrando.

Depois deste momento lindo, as companheiras da coordenação da MMI permaneceram em reunião para avaliar coletivamente se haveria condições de saírem em marcha. A decisão seria tomada coletivamente, conversada com todas as regionais que, logo pela manhã, fizeram suas reuniões para decidir se iriam ou não marchar no dia 9 de agosto, como estava previsto na programação. 

Enquanto isso, na tenda e fora dela, muitas rodas, muitos círculos, cantando. Houve um momento, na tenda, muito emocionante. As indígenas entoaram um canto por mais ou menos 20 minutos. Um canto pelo qual evocavam forças espirituais para sustentá-las naquele momento difícil. Um canto que ecoava dentro dos nossos corações. Um mantra de evocação. Um canto com dança. Uma força tal que energizava todo o acampamento. Elas também relataram que estavam recebendo notícias dos seus povos, que também estavam em rezas e evocando espíritos que diziam para elas que não seria bom marchar no dia 9.

Chegou o momento da plenária para a decisão final. Neste momento, as coordenadoras de cada região, ou biomas, foram ao palco dizer qual tinha sido a decisão de seu grupo. E foi assim: a regional  Sul e Sudeste decidiram que seria mais prudente a marcha sair no dia 10 pela manhã. Avaliavam que se saíssem naquele dia poderia haver confronto. Depois falou Telma Turepang, pela Região Amazônica. Nesta região seis estados concordaram em sair só no dia 10 e três estados achavam que teriam que sair no dia 9. O Nordeste também se dividiu. A APOIMNE decidiu por marchar apenas no dia 10 de Agosto, e o estado do Piauí optou por marchar no dia 9. Várias mulheres Kaiapós falaram também, acenando para a marcha no dia 10. Uma delas, Indígena Kaiapó, falou na plenária em sua língua e mostrando as mãos. Uma companheira traduziu: “Com esses bolsonaristas que estão atrapalhando o nosso movimento, dizemos a Bolsonaro que  estamos aqui com as mãos limpas, viemos sem armas, nas minhas mãos não tem nada, não vim brigar com vocês, vim para defender nosso território. Vocês têm o seu território, vocês brancos têm o território de vocês, porque vocês insistem em querer nosso território? Viemos pra cá pra fazer nosso movimento, nós mulheres. Pra quê vocês ficam ameaçando a gente? Para que afrontar a gente, se a gente não está fazendo isso com vocês? Estamos bravas por não fazer a marcha hoje por conta do bolsonaro.”

Não dava, lógico, para saber o que estava sendo dito, mas dava pra sentir a revolta na voz, na expressão do rosto e nos gestos com as mãos. Dava para sentir a indignação com toda aquela situação. No entanto, a decisão de sair no outro dia demonstrava o cuidado com a segurança de todas ali.

No final da plenária, prevaleceu a decisão da maioria de não sair em marcha no dia 9, mas sair no dia 10 com um novo roteiro: caminhada em direção ao monumento do indígena Galdino, que foi morto queimado vivo, e lá fazer um ritual. A companheira Jozileia Kaigang fez uma fala forte colocando como foi todo o processo de discussão para chegar àquela decisão e disse também que sabia que todas ali tinham vindo para a Marcha, mas que ela já estava acontecendo desde a preparação, nos territórios, passando pela viagem de cada territórios até Brasília, e por todos os momentos no acampamento, na integração, na troca de experiências etc. A plenária se encerrou quase meio dia e à tarde já seria a votação no STF sobre o Marco Temporal. 

ulheres Indígenas, ato dia 11 de setembro 2021, Brasília/DF. Foto: Alass Derivas

Depois de almoçar, com uma fila imensa para a cozinha central, todas retornaram para a tenda principal. A tarde foi de expectativas. Foi colocado um telão no local para assistir a votação sobre o Marco Temporal. A tenda ficou lotada e fora dela também, todas estavam muito apreensivas e atentas à fala do relator. Foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida, o momento em que o relator votou contra o Marco Temporal. Muitos gritos em línguas diferentes, muitos abraços, muito choro e eu, vendo aquela alegria toda, cheguei a pensar que se tratava do resultado final, mesmo sabendo que era apenas o voto do relator. Era tanta alegria, com danças, gritos, discursos fortes! Colocaram a música “demarcação já” a toda altura. As coordenadoras da Marcha subiram ao palco para fazer discursos e as mulheres seguiram dançando e cantando. Formaram diversas rodas no terreiro, eram grupos dançando em filas fazendo caracóis e eu assistindo tudo aquilo e chorando. Meu corpo respondia a tudo aquilo com muita emoção. Estava junto a Guacira, e nos abraçamos e eu perguntava: “É o final????”. Eu sabia que estava iniciando a votação, mas a festa era tanta que era como se a vitória fosse ali. A esperança brotou em cada coração ali presente. Eram as mulheres gritando: “Demarcação Já! Fora Bolsonaro!!!”. E rapidamente, no auge da emoção, coloquei no grupo de zap da AMB forte: “Ganhamos!!!!!”. Estava convencida de que já era uma vitória. Depois entendi que a comemoração era porque tendo o relator votado contra o Marco Temporal, abria-se um lastro de perspectivas positivas para a não aprovação. Aprendi também que temos que comemorar a vitória, mesmo que ainda seja parcial. São comemorações necessárias para continuarmos na luta. Foi bonita a festa!

Sônia Guajajara, neste momento, fez um belo discurso dizendo que:

 “Somos nós, povos indígenas do Brasil, somos nós, mulheres indígenas, que continuamos aqui dizendo que nós continuamos sendo a resistência neste país. Nós não vamos desanimar, vamos continuar em marcha. Estamos há 500 anos marchando em defesa dos nossos direitos… e vamos todas numa só voz a gritar:  Não ao Marco Temporal! Não ao Marco Temporal! Demarcação Já!!!!! Fora Bolsonaro! Fora Genocida!!!!”. 

À tarde, ainda continuamos na plenária para assistir à retomada da votação. Mas infelizmente um Ministro pediu vistas e a votação só seria retomada na semana seguinte. Naquela noite, na tenda de autocuidado, a AMB realizou uma roda de conversa sobre o Fórum Social Panamazônico e, mais tarde, na plenária, houve o desfile das delegações. Esta noite não posso descrever por que não estava lá.

Nós somos a resistência que a colonização não conseguiu MATAR! (Jack Guarani Kaiowá)

II Marcha das Mulheres Indígenas, ato dia 11 de setembro 2021, Brasília/DF. Foto: Alass Derivas

Finalmente chegou o dia da Marcha das Mulheres Indígenas!  “Bahia, terra do coco e do azeite de dendê. A água do coco é doce, eu também quero beber. Vamos dançar e balançar o Catimbó, trazer o Bolsonaro amarrado no cipó!”. Este foi um dos cantos que acompanharam a II Marcha das Mulheres Indígenas.

Ao todo, foram mais de quatro horas de Marcha. A todo momento eu agradecia por estar vivendo aquele movimento, desta vez presencialmente. A secura, a quentura, nada disso importava. A energia que emanava ao nosso redor era imensa.

As mulheres estavam tão ansiosas para marchar que antes das nove horas já estavam saindo do acampamento, com a companheira no microfone pedindo que esperassem para que todos os biomas estivessem prontos. Era muita alegria, muita energia! Crianças, jovens e mulheres mais velhas, as anciãs, como elas chamam. Todas ansiosas para sair, cantando e dançando. Uma marcha de danças como eu nunca tinha visto. Recordei-me da marcha que participei em Nairóbi, do Fórum Social Mundial, em que também as mulheres negras não andavam, mas dançavam o tempo todo. Vivi isso novamente.

Nós, da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), estávamos no meio da Marcha com a nossa linda Bandeira demonstrando nosso apoio, nossa aliança à luta das mulheres indígenas. Nossas companheiras indígenas integrantes da AMB estavam com suas delegações e de vez em quando chegavam junto da nossa bandeira.

Companheiras não indígenas da campanha contra o feminicídio do Distrito Federal também se fizeram presentes, juntando-se à enorme ala que trazia uma faixa contra o feminicídio das mulheres indígenas. 

Eram muitos cantos em meio aos quais despontava o “Fora Bolsonaro genocida!”,  sempre presente. “Demarcação Já!”, “Nosso corpo, nosso espírito!”, “O Território é nosso!”. 

As mulheres das águas e da floresta estavam lá! Muitas cores! Corpos pintados, muitos colares, brincos e adereços indígenas que deixavam todas muito belas. A vontade era de registrar todas as alas, gravar todos os cantos, filmar todas as danças. Eram muitas mulheres de todo o Brasil.

E em vários momentos todas cantavam a música que “trazia Bolsonaro amarrado no Cipó”.  Na chegada à praça nomeada em memória do indígena Galdino foi feito um lindo ritual de cantos e círculos, com danças em homenagem a ele. Naquele momento, naquela praça, o boneco com Bolsonaro amarrado no cipó foi queimado e todas cantavam a música tema da marcha: “Bahia, terra do coco, do azeite de dendê. A água do coco é doce, eu também quero beber. Vamos dançar e balançar o Catimbó, trazer o Bolsonaro amarrado no cipó!”. 

Ainda na praça Galdino, tivemos outro momento das falas das companheiras indígenas. Segue um trechinho da fala de Sônia Guajajara:

“Vamos continuar marchando aqui pra dizer que nós vamos lutar contra o feminicídio indígena. Não queremos mais ver nossas jovens meninas e mulheres assassinadas em nome do patriarcado que entrou nos nossos territórios. A segunda marcha é somente a segunda, porque nós vamos continuar marchando em 2023. Nós estaremos de volta a Brasília. Estamos hoje em três mil mulheres; nós seremos seis mil, seremos dez mil, seremos vinte mil apenas aqui. São todas as mulheres em marcha contra o preconceito, contra o racismo, contra o fascismo e contra o machismo e a nossa luta aqui é em defesa dos nossos territórios porque defendendo nossos territórios nós estamos também defendendo a democracia nesse país.”   

Célia Xakriabá, continuou dizendo na forma poética de seu discurso que “Nós não ficamos sós; O povo que queimou Galdino jamais vai queimar nossa voz. São cinco séculos de resistência, este ano completa 521. Bolsonaro e seus ministros são os novos cabrais do século 21. Nós somos os povos que resistem pela força do brotar. Nós vamos continuar passando urucum em Brasília, mas a boiada em nossos territórios, as mulheres indígenas, não vai deixar passar”

Somos as filhas da terra. As nossas VOZES são à prova de bala. (Alessandra Munduruku)

ulheres Indígenas, ato dia 11 de setembro 2021, Brasília/DF. Foto: Alass Derivas

Por mais que eu queira, não consigo colocar no papel esta experiência tão forte que vivenciamos. Seguimos de volta para o acampamento, com a mesma energia do início da Marcha. Um sol escaldante e uma secura, no entanto a Marcha não perdeu seu pique inicial. Passamos ao lado da Esplanada e voltamos para o acampamento com a certeza de que esta luta das mulheres indígenas é a nossa luta. Que cada vez mais precisamos aprender com elas, com esta força de articulação, de organização. Como disse Célia Xakriabá, são 521 anos de luta e de resistência. E elas continuaram nesta luta. Uma luta contra o capitalismo que desmata e mata, contra o racismo e de preservação das suas culturas. Chegamos ao acampamento cansadas, mas com uma alegria interior imensa. Passando pelo que estamos passando, com o pandemônio que caracteriza o governo atual deste país, com o bolsonarismo que tentou atrapalhar a Marcha, com a pandemia que ceifou a vida de tantas pessoas (só dos povos indígenas foram mais de mil mortes pela pandemia), com tantos feminicídios de mulheres e meninas indígenas (tão denunciados ao longo da Marcha!), com tantas lideranças perseguidas, viver este momento de revolta, de tristeza transformada em luta e sentir que o medo não paralisa as mulheres indígenas me fez novamente reafirmar, para mim mesma, que a luta com alegria e com prazer de lutar faz a diferença.

Passamos o resto do dia no acampamento, conversando e sentindo a alegria por estarmos ali: nós e as mulheres indígenas. Muitas daquelas mulheres precisaram pegar dois e até três barcos para chegar ao lugar onde pegaram os ônibus e prosseguir para Brasília. Muitas mulheres trouxeram suas crianças, que estavam lá participando ativamente no espaço criado para elas, mas seguiram nos braços das suas mães e de suas companheiras durante toda a Marcha. À tarde algumas delegações começaram a desmontar o acampamento para iniciar a viagem de retorno. Mas ainda se esperava a última atividade coletiva que se realizaria à noite. Foi o lançamento do projeto Reflorestando a Mente! Um projeto que visa reflorestar mentes com sonhos, cura, afetos, soma, solidariedade, ancestralidade, coletividade e história.

Foi também um momento de um ritual poderoso. Todos os biomas trouxeram sementes, que foram plantadas no acampamento. Nas falas, presenciamos afirmações de que atualmente a população indígena mundial é de 5% do total, e que é esta população que protege praticamente 83% da sociobiodiversidade. Este projeto quer transmitir a mensagem para toda a humanidade, de que assumam também a responsabilidade coletiva, e entrem na luta pela demarcação das terras indígenas. Isto porque demarcar as terras indígenas é garantir a respiração da humanidade. A ideia é mapear nacional e internacionalmente os movimentos e órgãos que promovem a justiça ambiental porque:

Quando nós falamos de semente, nós estamos falando não somente de uma semente, de uma comida pra encher a barriga, mas principalmente não somente de soberania mas, sobretudo, de soberania alimentar; a semente também que sustenta a nossa identidade” (Trecho da fala da Célia Xakriabá)

“Quem somos nós? Somos as que retomamos a terra roubada. Somos a terra, pois a terra se faz em nós. Nós somos filhas, somos sementes, somos tias e só quem sabe ser semente pelo grito da terra nunca mais vai permanecer em silêncio. Porque a terra tem muitas filhas e essa mãe chora quando vê o seu próprio território ser sequestrado… Mas ainda dá tempo. Precisamos reinventar o tempo. Ainda dá tempo porque o nosso tempo não é o do relógio e eles ainda nos dizem que nós somos uma ameaça pro capitalismo, mas na verdade é o contrário. É o capitalismo que representa o iminente risco para nós, povos indígenas. Nós somos o povo que resiste com a força ancestral. Pare de tentar matar os povos indígenas! Muitas mentes estão  enfermas. Colonizou muitos corpos e também muitas mentes. E a colonização até tentou nos enterrar, mas mal sabia que éramos sementes. Por isso vamos também reflorestar mentes”. (Trecho da fala da Célia Xakriabá)

Foram feitas diversas rodas e, no meio delas, indígenas de cada bioma plantaram as sementes embaladas por cantos e saudação à terra. Já era noite. A ideia era ter feito este lançamento durante o dia, mas só conseguimos organizar à noite. Foi outro momento muito lindo e muito significativo. Depois deste ritual, aconteceu ainda o momento de apresentações culturais. Este não posso relatar porque não consegui ficar até o final. 

Então, companheiras, tentei relatar para vocês esta vivência ao longo dos cinco dias em Brasília. No entanto, acho importante lembrar que a AMB construiu todo um processo com as coordenadoras da MMI e com as companheiras indígenas que são militantes da AMB. Iniciamos esta conversa na Coletiva Nacional pelo fim do Racismo e pelos Direitos das Mulheres Indígenas e seguimos nesta construção com a coordenação da AMB. Nos reunimos com as companheiras algumas vezes, primeiro para colocar a importância da construção dessa Marcha e para nos colocar, enquanto AMB, à disposição para fortalecer as alianças com o movimento de mulheres indígenas e somar com elas. Esta construção já tinha se iniciado na I Marcha das Mulheres Indígenas, mas queríamos apoiar com recursos e politicamente, e foram elas que nos disseram quais seriam as necessidades. O nosso apoio, que inicialmente era para a Marcha das Mulheres, resultou também no apoio às indígenas que estavam em Brasília acompanhando a votação do Marco Temporal, marcada para o dia 25 de agosto. Estive nesta articulação como militante da AMB e como integrante do SOS Corpo, que também mobilizou recursos para a Marcha. Na primeira reunião elas trouxeram a necessidade de apoio com passagens, com alimentação e solicitaram que fizéssemos atividades de cuidado e autocuidado coletivo. Por isso, construímos com o apoio e participação do Cfemea a tenda de cuidado e autocuidado. Tenho certeza que saímos desta II Marcha das Mulheres Indígenas tendo reforçado a aliança com os movimentos de mulheres indígenas. Repetindo o que foi dito na primeira Marcha: nossa aliança se concretizou, reafirmada na plenária da AMB e na reunião da Coletiva Nacional pelo fim do Racismo e pelos Direitos das Mulheres Indígenas.

Como disse Verônica Ferreira:

“Com um passo à frente, com o pé esquerdo, juntas, em nossa plenária de Maio, firmaram o compromisso de fortalecer a luta das mulheres indígenas dentro da AMB, e em aliança com suas organizações próprias nas suas lutas”. 

Durante estes dias, quando passaram pela tenda de cuidado e autocuidado, várias integrantes da coordenação da MMI ouvimos delas agradecimentos pelo apoio, tanto da AMB quanto do SOS Corpo e, por vezes, se emocionaram e deixaram muito nítido a importância desse apoio político ter possibilitado levar a Brasília mulheres que, de outra forma, não teriam como participar da Marcha. Com a tensão e a necessidade de mudança de programação não foi possível que fizessem, como na outra Marcha, um momento especial com as parceiras, como um ato político que havia sido pensado para a noite do dia 7 de setembro.

Mais uma vez constatamos que a construção coletiva é eficaz. A equipe que tomou a frente desta construção pela AMB – comporta por Schuma (Redeh); Nilde; Eunice; Inara; Marinete; Edilene; Florismar; Rivane e Verônica Ferreira (SOS Corpo); Masra, Jolúzia, Amara e Guacira (Cfemea); Cristiane Odara; Cris Gomes; Ana Lúcia; Kátia; Lilian; Louise; Conceição Amorim; Merlanie; Socorro Papoula; Maria Gavião… algumas participaram das reuniões virtuais, mas não conseguiram chegar à Marcha. Outras participaram dos dois momentos, e outras ainda chegaram bem juntinho, apenas durante a Marcha. Foi um momento fortalecedor para nós, enquanto militantes da AMB, e também para nosso movimento e nossas organizações. O que eu conto aqui para vocês foi a partir do meu olhar. Outras que estiveram na Marcha podem por certo contar como foi a partir das suas vivências. 

Chamaaa! Chamaaa que elas vem!!!

Para encerrar, trago esta fala de Nilde Souza: “Como Puyr Tembe fazia o tempo todo na Marcha, com o grito “Chaama”, eu também digo “Chaaama!” a todas para que continuemos com essa energia feminista, com a força e sabedoria ancestral de nossas irmãs indígenas, fortalecendo cada vez mais nossa articulação, lutas e resistências. As mulheres são como as águas, crescem quando se juntam!”

Fora Bolsonaro e Mourão! 

Vidas indígenas importam! 

Não ao Marco Temporal! 

Nosso Território é nosso corpo e o nosso espírito!

Analba Brazão Teixeira

14 de setembro de 2021

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