27 de abril- Dia da Trabalhadora Doméstica- “Não queremos ser da família”, diz Luiza Batista, presidenta da FENATRAD
Publicado originalmente no Portal UOL no dia 27 de abril de 2021
Hoje é Dia da Trabalhadora Doméstica e, pela segunda vez, a data acontece em meio à crise da covid-19 no Brasil. Para Luiza Batista, presidente da Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas), não há o que comemorar: a categoria, formada principalmente por mulheres negras, segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho), é uma das mais afetadas pela pandemia.
Isso porque parte dessas trabalhadoras se expõe ao vírus no transporte público para chegar à casa dos patrões, parte sofre com o desemprego e a fome. Há, ainda, um grupo que é obrigado a dormir no trabalho para evitar o deslocamento durante a pandemia e fica sem ver a família, à disposição dos patrões 24 horas.
Em entrevista a Universa, Luiza também fala sobre a “relação de servidão” entre trabalhadoras e empregadores que perdura por décadas e rebate a ideia de que elas são “quase da família”: “Não somos e não queremos ser. Nós temos a nossa família. O que queremos é que nossos direitos sejam respeitados”.
UNIVERSA: De que maneira o agravamento da pandemia de covid-19 impacta as trabalhadoras domésticas?
Luiza Batista: Esse agravamento acontece agora não só no sentido da pandemia, da saúde, mas também no da vida das pessoas. E as trabalhadoras domésticas, como sempre, por serem de uma categoria que a sociedade insiste em não reconhecer o valor, sofrem mais. São mais de 1,5 milhão de trabalhadoras domésticas desempregadas durante a pandemia, é a terceira categoria mais afetada pela crise.
“Muitas de nós estão em situação de fome — as pessoas inventaram uma expressão menos chocante, insegurança alimentar, mas elas estão passando fome mesmo”.
As diaristas também foram muito afetadas. Para tentar amenizar, estamos fazendo arrecadação de cestas básicas e distribuindo entre os sindicatos filiados. No ano passado distribuímos 4,5 mil cestas para trabalhadoras domésticas desempregadas.
No início da pandemia em 2020, uma parcela dos empregadores dispensou as trabalhadoras domésticas e manteve seus salários. Hoje, com o cenário ainda mais grave, esse movimento voltou a acontecer?
Mesmo no ano passado, quando fizemos campanha para que os empregadores deixassem as trabalhadoras domésticas em casa pagando salário, pouquíssimos aderiram. Tem casos de trabalhadoras que ficaram em casa três, quatro meses, recebendo salário, mas é um número muito pequeno. Hoje ainda menos. Alguns estados, quando decretaram quarentena, consideraram o trabalho doméstico serviço essencial [caso do Pará e de Pernambuco, por exemplo]. Pode ser classificada como essencial uma cuidadora de idosos ou babá que trabalha numa família que atua na linha de frente, por exemplo, mas fora dessas circunstâncias, o trabalho doméstico não é essencial. É importante, necessário, mas não essencial.
“Existe uma contradição muito grande: no dia a dia, não somos valorizadas, mas na pandemia, quando muita gente ficou sem o nosso trabalho, as pessoas perceberam que limpar banheiro, lavar roupa, fazer comida não são tarefas tão simples e que nosso trabalho é necessário”.
Acredita que a pandemia pode mudar a forma como as pessoas enxergam o trabalho doméstico? Vamos valorizar mais essa atividade?
Por enquanto, não mudou muito a forma como as pessoas tratam as trabalhadoras. Minha mãe dizia que pau que nasce torto nunca se endireita, então, quem tem essa característica de se sentir superior aos outros, de não respeitar os direitos dos trabalhadores, não deve mudar. Mas isso a gente só vai poder dizer no futuro. Ainda estamos muito longe de dizer que não vivemos mais uma pandemia, ainda mais com essa política do presidente Bolsonaro de estimular a aglomeração, de não incentivar o uso de máscaras.
Se a pandemia tivesse sido tratada da forma correta desde o início, com certeza a gente perderia muitas vidas, mas não nessa proporção. Mas as pessoas se espelham na liderança, né? Então tem empregador que pensa: “Estou pagando, então na minha casa não vou usar máscara e minha funcionária tem que continuar trabalhando” e expõe essas trabalhadoras ao vírus. Mas é uma doença que mata, que deixa sequelas, eu mesma tive covid-19 e até hoje sinto as pernas fracas, o cabelo caindo.
Que tipo de relato vocês têm ouvido das trabalhadoras domésticas durante a pandemia?
Muitas ouviram: “Ou você fica direto no trabalho, ou fica direto em casa, porque vai ser demitida”. E aí são obrigadas a dormir no trabalho durante a semana, porque o empregador tem medo de que ela se contamine e passe para ele. Essa mulher tem filhos, aluguel para pagar e precisa do emprego, então acaba se submetendo, mas isso é um cerceamento à liberdade da pessoa, dependendo do caso pode ser considerado cárcere privado.
O trabalho doméstico tem especificidades que outras categorias não têm: uma pessoa que trabalha como auxiliar de serviços gerais numa empresa, por exemplo, tem como denunciar abusos, irregularidades, mas no nosso caso, não. A residência é inviolável por lei, e isso dificulta a denúncia e a fiscalização. As trabalhadoras também não querem se comprometer. Muitas vezes elas ligam para o sindicato, relatam uma situação dessas, mas quando a gente pede nome, endereço para fazer a denúncia, pedir uma fiscalização, elas desligam. É angustiante saber que isso acontece, mas não ter como agir.
Com a PEC das Domésticas, as trabalhadoras passaram a ter acesso a todos os direitos estabelecidos na CLT — carga horária definida, FGTS, 13º salário, férias, entre outros. Na prática, isso acontece?
Não. Carteira assinada é lei no Brasil há quase 50 anos, mas pesquisas mostram que, entre trabalhadoras domésticas, nunca passou de 50% da categoria com registro. Por quê? Não tem penalidade para o empregador e a impunidade corre solta.
“Para você ter uma ideia, até 15 anos atrás, tinha empregador que descontava a alimentação da trabalhadora, descontava um percentual de aluguel se ela dormia no trabalho — quando, na verdade, deveria pagar hora extra”.
Aí, em 2006, o Lula sancionou a Lei 11.324, que proibiu esses descontos, garantiu férias de 30 dias (antes, eram apenas 20), entre outros direitos. Só depois, em 2013, conquistamos a PEC que nos incluiu na CLT, ao lado das outras categorias. A CLT existe desde 1943 e as trabalhadoras domésticas só entraram nas leis trabalhistas 70 anos depois. Nossos passos vêm de longe, e nosso trabalho é de formiguinha.
O que justifica essa demora?
Discriminação. O trabalho doméstico é herança direta da escravidão. Depois da Lei Áurea, o povo negro simplesmente foi expulso das casas, sem nenhuma reparação. Resultado: formaram-se os bolsões de pobreza, as comunidades periféricas. Não tinha emprego para todos. Por conta disso, muitos pediam para continuar nas casas-grandes e se tornaram escravos da gratidão, em troca de um lugar para dormir e de um prato de comida.
Esse conceito de “escravo da gratidão”, que você mencionou, ainda permeia a relação entre trabalhadoras domésticas e empregadores?
Sim, com esse conceito de “Você é quase da família”. A família da trabalhadora é uma, a do empregador é outra. O que tem que existir é uma relação de trabalho respeitosa dos dois lados. O empregador precisa respeitar a trabalhadora como um ser humano, não dar ordens aos gritos, cometer maus tratos, assédio moral. E a trabalhadora tem que entender que está ali como uma profissional, prestando um serviço.
“A gente precisa desconstruir essa fala de que somos “quase da família”, porque não somos. A gente tem a nossa família em casa. O que a gente quer é respeito aos nossos direitos”.
Muitas vezes, a gente recebe trabalhadores idosas, de bengala, tentando entender porque apesar de ter carteira assinada, o empregador não recolheu o INSS e ela não vai conseguir um auxílio-doença, por exemplo. Aí a gente oferece apoio jurídico, e elas dizem “Não, não vou colocar meu patrão na Justiça, ele é muito bom para mim”. Muitas vezes, ela só descobre que não é da família quando já está doente, quando envelhece e não pode mais trabalhar e não consegue se aposentar. Ganha um presentinho aqui, uma lembrancinha ali, e se sente lisonjeada, mas não fiscaliza o principal, que é o INSS, o FGTS. Quando ela decide levar o processo adiante, sofre constrangimento, ouve dos patrões: “Você trabalhou tanto tempo na minha casa, comeu da mesma comida”.
Recentemente, vimos pessoas públicas associando a contaminação de covid-19 às trabalhadoras domésticas. Como você responde a essas declarações?
É uma discriminação, uma forma da corda arrebentar para o lado mais fraco. Não foi a classe trabalhadora, que trabalha para receber menos de dois salários mínimos, que viajou para os países onde havia surto de covid-19. Lá no Rio de Janeiro a primeira morte foi de uma trabalhadora doméstica — os patrões sabiam que estavam contaminados e não tiveram a sensibilidade de deixá-la em casa. Ela se contaminou, tinha comorbidades e foi fatal, os patrões se curaram e, com certeza, já têm outra trabalhadora doméstica lá fazendo o mesmo serviço.
Não fomos nós que trouxemos o vírus, foi a classe média, que tem plano de saúde, acesso a hospital particular. Enquanto isso, a gente sabe que a maioria das pessoas internadas nos hospitais públicos são pessoas que dependem do transporte coletivo para trabalhar. Muitas vezes, eu fico esperando passarem três, quatro ônibus para não entrar na aglomeração, mas eu sou aposentada, faço meus horários. E as companheiras que precisam chegar cedo à casa dos patrões? Podem se dar ao luxo de esperar uma condução menos lotada? Não, elas vão amontoadas na primeira que passar.
No ano passado, o caso da Mirtes, que perdeu o filho, Miguel, após ele cair da janela do apartamento em que estava sob os cuidados da patroa dela, se tornou emblemático. O que essa história diz sobre a realidade das trabalhadoras domésticas no Brasil?
Quando a Mirtes foi trabalhar, no dia da morte do Miguel, a quarentena mais dura já tinha passado, mas ela trabalhou durante todo o período da pandemia. Ela inclusive teve covid-19 e trabalhou mesmo doente, sem repouso. A Mirtes não tinha com quem deixar o filho e, enquanto ela passeava com a cadela, a patroa [Sarí Côrte Real] não teve paciência com uma criança de cinco anos que queria ficar perto da mãe, colocou ela no elevador e acabou da forma que acabou. Ela foi presa, pagou R$ 20 mil de fiança e está respondendo em liberdade. Se fosse a Mirtes que tivesse colocado uma criança no elevador, ela estaria solta? Teria esse dinheiro? Com certeza não. Ela estaria num presídio feminino. Isso mostra que existem vários Brasis dentro de um único Brasil. Apesar da repercussão do caso, vai continuar sendo assim, a mesma relação de servidão de sempre.
“Quem paga, quem é branca, quem mora num condomínio de luxo à beira mar, acha que pode dispor da vida da trabalhadora doméstica e que não vai dar em nada.”
O Brasil é o país com o maior número de trabalhadoras domésticas do mundo, sete milhões. O que nos faz manter essa relação?
De um lado, a pessoa que tem um certo poder aquisitivo acha que lavar o copo em que bebeu água é uma atividade de menor valor. Se não tiver uma pessoa para fazer, a pia fica cheia de louça. Do outro, o país tem mais de 14 milhões de desempregados, fora as pessoas subempregadas, fazendo bicos, trabalhando por conta própria. Isso faz com que o trabalho doméstico se torne uma cultura.
É muito comum a patroa deixar a calcinha no box do chuveiro para a trabalhadora doméstica recolher. Os homens, então, nem se fala, deixam a cueca suja no chão mesmo. Essas pessoas estão acostumadas a ter mão de obra barata — infelizmente, o piso é o mínimo nacional, de R$ 1.102 — e a oferta é muito grande. Vão sempre buscar ter quem faça esse serviço considerado de menor valor. É um ciclo vicioso.
Fonte: UOL.