Para seguir em frente

O DESAFIO DAS FRENTES

Para seguir em frente

Por Silvia Camurça, para a Le Monde Diplomatique Brasil

A falta de tradição para formar uma frente de esquerda duradoura no Brasil vem de muito tempo

No debate sobre os caminhos de superação da catástrofe política na qual vivemos desde 2016, há algumas disjuntivas relevantes que dificultam constituir frentes com partidos e movimentos, em todos os sentidos. Uma dessas disjuntivas é sobre quem ou o que é o “inimigo principal”, se Bolsonaro, Bolsonaro e Mourão (a chapa) ou o bolsonarismo. Outra é o debate em torno de frente ampla e frente de esquerda. E ainda se o golpe de 2016 abriu ou não o caminho para o governo bolsonarista. Tudo isso e muito mais erige barreiras desafiadoras no debate entre lideranças partidárias, sindicais, analistas políticos, no interior e entre diversas organizações políticas dos movimentos sociais, e expressa-se até mesmo num debate sobre eixos do 8 de Março, em que se espera unidade forte. Na perspectiva de onde vejo, situada no movimento feminista, o dilema tem origem nas práticas e na cultura política das esquerdas, mas também há questões programáticas: o escopo do programa necessário e os modos de construção e pactuação desse programa e da frente.

Em minha opinião, o tempo da frente ampla era a eleição de 2018; esse tempo já passou. Já vivenciamos os efeitos das medidas ultraliberais lideradas pela ultradireita, com a conivência de muitos setores – mídia, parlamentares e partidos do chamado “centro democrático”. Já vimos a cooptação de integrantes de partidos autoproclamados de centro e centro-esquerda nas eleições recentes das mesas diretoras da Câmara e Senado. O programa Ponte para o Futuro, ultraneoliberal, foi abraçado pela frente ampla que isolou as esquerdas e impôs o golpe, sustentou os 97% de desaprovação do Temer, não bloqueou a candidatura do admirador declarado de torturador e insuflou antipetismos nas eleições de 2018. Essa frente ampla deu suporte pleno e agora dá “apoio crítico” ao governo Bolsonaro. É improvável uma frente ampla simplesmente. Não é possível fazer frente programática com quem tem outra opção, outras prioridades e outros compromissos, já demonstrados no passado recente e no presente. Portanto, há que ter escalas de programas para gerar a unidade possível e desejada, tática e estratégica, de curto e longo prazo. 

Talvez devêssemos pensar numa frente de esquerda que se localize dentro de uma frente ampla, esta com programa rebaixado, certamente. Contudo, as razões apontadas fartamente para dificultar a formação de uma frente no Brasil também existem na esquerda, o que amplia as barreiras. A falta de tradição para formar uma frente de esquerda duradoura no Brasil vem de muito tempo e esteve presente no fim da ditadura quando da saída de alguns partidos da clandestinidade. O próprio MDB, uma frente ampla, não foi duradouro como, por exemplo, a Frente Ampla uruguaia e nunca teve uma frente de esquerda duradoura e organizada dentro. Além disso, as vaidades pessoais são fortes em dirigentes partidários. Os homens seguem com controle dos partidos e, para piorar, as instâncias de democracia interna nos partidos, onde havia, estão fragilizadas. O mesmo pode-se dizer do não lugar de negros e negras, indígenas e trabalhadores/as informais (grande massa da classe trabalhadora hoje) nos partidos e no movimento sindical.

Mas, no feminismo, que não se movimenta pelo calendário eleitoral, muito além do governo Bolsonaro como inimigo, apontamos para o bolsonarismo. Pois, se o governo Bolsonaro está sustentado pela burguesia, os militares e os fundamentalistas religiosos, o país está sob o comando político do bolsonarismo, um movimento de características neofacistas. Esse movimento concretiza seu projeto pela apologia a violações de direitos, à violência política, ao racismo e ao machismo, promovendo perspectivas neocoloniais nas políticas econômicas, fortalecendo o fundamentalismo cristão e formando quadros: oferecem cursos na modalidade EAD (Educação a Distância) voltados para a formação “de militância conservadora” na internet. Para completar esse caráter neofacista, o bolsonarismo conta com base armada, com as polícias no interior do Estado e com força paramilitar miliciana. 

Os representantes do bolsonarismo emergiram à luz do dia na coalizão que combateu fortemente os termos do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), de 2009, no Congresso Nacional. Ali confrontaram tudo, da Comissão da Verdade aos termos do direito à terra; do aborto à educação pública e liberdade de cátedra; igualdade de gênero e todas as pautas de direitos econômicos ambientais. A Associação Brasileira de Rádio e TV (Abert) questionava a premissa da comunicação como direito humano. De lá para cá, próceres, quadros e lacaios do bolsonarismo enraizaram-se nas instituições do Estado e nos três poderes, Judiciário, Executivo e Legislativo, em todos os planos da federação, e ampliaram seu aparato midiático pela concessão de rádio e TV às igrejas neopentecostais e tradicionais, gerando as condições de doutrinação diária nas redes da internet junto a suas bases sociais – muito dos contornos de um movimento neofacista.

(Crédito: Vitor Flynn)

O feminismo está entre os inimigos do bolsonarismo. Inimigo político a ser destruído, como é próprio do fascismo, seja pela repressão e desmantelamento das organizações, seja pela violência política contra as mulheres feministas. O movimento negro também, assim como os movimentos indígenas, as organizações da agroecologia, da economia solidária, das lutas por terra e territórios nas cidades e no campo. A população negra está sob ataque genocida redobrado; a população indígena está atacada para fins de extermínio, a “solução final”. Mas as mulheres vivem e viram crescer, além do enorme desemprego e da fome, a violência sexual e o feminicídio em seus territórios, moradias e espaços de trabalho.

Para além do gravíssimo problema do desmonte do Estado democrático de direito está o esgarçamento do tecido social e da sociabilidade minimamente democrática e a reestruturação das relações e instituições sociais em bases autoritárias e absurdamente violentas: do modelo de família patriarcal aos presídios, passando pelas escolas e serviços básicos de saúde. Muito pior que propagar a ideologia das “belas, recatadas e do lar”, o bolsonarismo projeta sobre nós seu desejo de dominação total e sua necropolítica.

Talvez por isso, entre setores do feminismo, haja a defesa de uma frente autonomista de movimentos e coletivos, que possa construir um programa desde as margens políticas e fronteiras partidárias, renovando a prática de construção de programas: fazê-lo em espaços e processos participativos e transformadores das subjetividades, hoje hegemonizadas pelo liberalismo individualista e consumista, como sabemos.  

Além do método, a própria perspectiva crítica de um programa numa frente autonomista precisaria acolher e valorizar novos referenciais de leitura da realidade brasileira, para além da ortodoxia marxista, mas nem por isso antagônicas a ela. Uma frente autonomista, se inscrita dentro de uma frente de esquerda duradoura, poderia estar dentro de uma frente ampla, pelo menos nas eleições, mas iria enfrentar e destruir o bolsonarismo fazendo essa luta pelo tempo que for necessário.

*Silvia Camurça é educadora popular, mestre em Sociologia pela UFPE, integrante do SOSCorpo Instituto Feminista pela Democracia e militante feminista da Articulação de Mulheres Brasileiras.

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