Direito ao Aborto Legal em risco: o que muda com o decreto 10.531/2020 do governo federal

NOTA DA FRENTE NACIONAL CONTRA A CRIMINALIZAÇÃO DAS MULHERES E PELA LEGALIZAÇÃO DO ABORTO EM REPÚDIO AO DECRETO 10.531/2020

A Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto vem a público manifestar repúdio ao Decreto 10.531/2020, que institui a “estratégia federal de desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031“, e alertar sobre as graves consequências dessa estratégia para a saúde e a vida das mulheres e meninas.

Este Decreto, coerente com os objetivos do governo Bolsonaro, aprofunda os ataques às conquistas democráticas, que resultaram da luta do povo brasileiro nos últimos 30 anos, em especial a luta das mulheres, no sentido da realização de seus direitos humanos e do reconhecimento de sua autonomia, enquanto cidadãs deste país.

Denunciamos a violação do princípio do Estado laico, preconizado pela Constituição Brasileira de 1988, que respeita a pluralidade de crenças, mas também distingue os papéis da religião e do Estado. Denunciamos o conjunto de medidas presentes no Decreto 10.531, e mais especificamente o item 5.3.5 do eixo Social que propõe “efetivar os direitos humanos fundamentais e a cidadania”, e que orienta toda a gestão pública a “promover o direito à vida, desde a concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro, por meio de políticas de paternidade responsável, planejamento familiar e atenção às gestantes”.

Esta orientação do Decreto – que, como ato do executivo, deveria ter natureza normativa, funções limitadas e puramente administrativas – evidencia a pretensão do pensamento conservador e fundamentalista do governo federal de regular a vida das mulheres e meninas, propondo em um ato administrativo uma diretriz que fere a Constituição Federal e as leis vigentes, ultrapassando suas funções enquanto poder executivo. O governo assume por definitiva a postura autoritária e fundamentalista, desconsiderando a realidade que cerca a vida de mulheres e meninas nesse país em que, segundo dados do Fórum Nacional de Segurança Pública, a cada 8 minutos uma mulher sofre estupro no Brasil. Dos quase 70 mil estupros, registrados em 2019, mais da metade foram cometidos contra meninas de menos de 13 anos. Como pode o Estado, por decreto executivo, pretender negar o direito de acesso ao Aborto Legal?

Repudiamos a cultura do estupro e a tolerância de parte da sociedade e do sistema de justiça com os estupradores, em fragrante desrespeito aos direitos sexuais e aos direitos reprodutivos de meninas e mulheres no país. Os casos noticiados nessa semana, de 2 meninas de 13 anos, ambas do Pará, só reforçam os descaso e falta de proteção com nossas meninas e mulheres como se suas vidas não importassem. Com gravidez avançada, a menina de Santarém teve negado judicialmente o direito a abortar. O estuprador é o próprio pai, preso em 21 setembro, que abusava da filha há 3 anos. A outra menina, de Uruará, com 31 semanas de gravidez, morreu no parto. Há cerca de um ano ela convivia com um homem de 41 anos, com consentimento da família. Pelas leis brasileiras não importa se há ou não consentimento: a atividade sexual com menores de 14 anos é estupro de vulnerável.

Denunciamos a grande ameaça que este Decreto representa ao direito das mulheres e meninas, assegurado desde 1940 pelo Código Penal, de realizar o aborto nos dois permissivos, ou seja, quando não há outro meio para salvar a vida da gestante ou se a gravidez resulta de estupro, além da gravidez de feto anencéfalo, permissivo acrescentado pela decisão do STF, em 2012, na ADPF 54. Ao pretender promover o direito à vida desde a concepção, o Decreto expõe, ilícita e inconstitucionalmente, o intento do atual governo de colocar no centro de sua política os valores morais que defende e de impor sua visão a milhões que pensam diferente.

Denunciamos também a manipulação de preceitos morais realizada por fundamentalistas, como forma de controlar as mulheres. De violadores a justiceiros, com decretos e portarias que se sucedem, tentam retirar a verdade de nossas palavras, calar nossa voz, (re)domesticar nossos corpos para o cuidado exclusivo da família. Famílias que se encontram cada vez mais desamparadas, com redução das políticas de seguridade social, com menos proteção por parte do Estado Brasileiro, em um sistema capitalista que nega direitos e serviços às pessoas mais pobres, esquecendo também que quase 40% das mulheres são as chefes de família e principais responsáveis por seu sustento, segundo o IBGE.

O cenário que este Decreto descortina é agravado pelo recente “Consenso de Genebra”, em que o governo de brasileiro se aliou ao grupo de cerca de 30 países que mais negam direitos no mundo, no que diz respeito à vida das mulheres, das meninas, da população pobre, negra e LGBTQI+, e dos povos originários. Entre esses países estão Egito, Indonésia, Hungria, Uganda e EUA, notadamente aqueles em que mais houve retrocessos com relação aos direitos reprodutivos das mulheres.

Denunciamos que o governo federal se pauta pela promoção da mentira e pela alimentação de uma guerra ideológica que, entre diversas calamidades, promove o negacionismo e a ocultação de dados relativos à real situação da pandemia da COVID 19 no Brasil, banalizando as 160 mil mortes de brasileiras e brasileiros, e as mais de 280 mortes maternas, colocando o país como o primeiro do mundo nesse indicador de morte materna causada pela Covid-19.

Não podemos deixar de denunciar, também, que este Decreto propõe medidas econômicas que irão beneficiar os grupos e corporações representantes dos interesses do capitalismo mundial, associados aos grupos econômicos nacionais que apoiam seu projeto, que tem como consequência a dilapidação das nossas riquezas naturais, a privatização de serviços essenciais como saneamento, educação e saúde, que são responsabilidades do Estado, e ameaçam de morte o SUS, um patrimônio valioso do povo brasileiro. Constroem, assim, um futuro de privações e miséria para milhões de pessoas.

Reafirmamos que os movimentos de mulheres e feministas do Brasil sustentam há anos uma luta incessante em defesa de conquistas democráticas e em defesa da vida das mulheres e de sua autonomia reprodutiva, resultando em importantes políticas públicas – como a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher – PNAISM (2004), referência para o SUS no atendimento à saúde das mulheres e meninas. Mantemo-nos atentas e firmes em defesa dessas conquistas.

Lutamos e barramos no Congresso o PL 5069/2015 e a PEC 181/2016 que propunham que os direitos do nascituro se tornassem mais importantes do que o direito da mulher à vida, inviabilizando a realização do aborto legal, entre outros ataques já realizados pelo Legislativo Federal e tantos outros retrocessos que se acumulam.

Por fim, e enfaticamente, denunciamos que as diretrizes, os desafios, as orientações, os índices-chave e as metas-alvo propostas no Decreto 10.531/2020, não promovem o desenvolvimento do Brasil, e não irão “garantir direitos para todos”. O Decreto traduz interesses autoritários deste governo e dos vários setores nele privilegiados, que não aceitam o jogo democrático, abominam a liberdade das mulheres, desprezam o diálogo amplo e não valorizam o respeito às instituições constitucionalmente estabelecidas, como o Congresso Nacional e o Poder Judiciário.

Este Decreto é ato administrativo inconstitucional, que restringe a dignidade sexual, a autonomia e liberdade reprodutiva das mulheres, por definir a visão dos órgãos e entidades da administração pública sobre políticas e serviços de saúde reprodutiva, sobre o direito de acesso das mulheres à tecnologia médica necessária para exercer o direito ao aborto legal, sobre o direito à informação, à educação e aos meios que possibilitem o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos. Este Decreto inviabiliza o aborto legal!

Assim, chamamos a sociedade brasileira a manifestar-se contra essa arbitrariedade.

Por tudo isso, reafirmamos:

#revogaçãoimediatadecreto10.531

#revogaçãoportaria2561/2020

#PelaVidadasMulheres!

#NÃOaprivatizaçãodoSUS

#Porjustiçareprodutiva

#AbortoLegalédireito

#PelaVidadasMulheres

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