Repudiamos o impedimento judicial ao uso desta denominação!
No recente setembro vermelho de sangue das mulheres que morreram em consequência de abortos clandestinos; das meninas estupradas antes mesmo de entender essas violências, por homens que gozavam de sua confiança e lhes deviam proteção; das mulheres todas, principalmente as negras e periféricas, que tombaram assassinadas pela força implacável da dominação nos seus territórios, NÓS que construímos o SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, no marco do Estado democrático de direito laico, REPUDIAMOS com toda a força de nossas vozes, a decisão da 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que impediu o legítimo direito da organização feminista Católicas pelo Direito de Decidir, de utilizar o nome que lhes dá sentido e identidade desde sua origem, há 27 anos.
Uma organização da sociedade civil que defende a democracia e os direitos humanos é um território público, porém, forjado num desejo livre e consciente de um coletivo particular, que se faz corpo porque se sabe sujeito de direito e de sua própria história. E o nome deste corpo é parte simbólica deste corpo. Está diretamente ligado a sua origem, natureza coletiva, missão e seu horizonte utópico, acolhido e perseguido pelas pessoas que a constroem cotidianamente.
Quando o Judiciário, órgão que deveria dizer o melhor direito com base no sentido de justiça, interdita uma organização social de direitos humanos que tem “o direito de decidir” no seu nome, a exercer a liberdade de escolha de sua própria identidade, está fazendo a pior política, atentando contra o próprio Estado democrático de direito e, conscientemente, atualizando o colonialismo. Dizer o que o outro é e lhe impor marcos a partir de sua própria e única visão é um ato profundamente colonial. E quando esse mesmo órgão define e encapsula esta organização feminista, capturando e estigmatizando sua identidade, está, nitidamente, exercendo o velho controle patriarcal sobre esses corpos femininos, ou seja, de novo, um ato colonial patriarcal.
No marco do setembro vermelho de luta pela Vida de Nós Mulheres, contra a criminalização de nossas causas e pela legalização do direito aborto, juntamos nossas vozes e capacidades de luta para reafirmar:
– a política precisa ser exercida no seu território mais legítimo, a arena pública, onde se disputa as narrativas e seus sentidos, e onde o debate de ideias é mais capaz de construir consensos coletivos, e não, através de mecanismos como a judicialização, onde um poder conservador e historicamente refratável à participação social, especialmente dos segmentos mais vulnerabilizados da sociedade como somos nós mulheres, é que decide monocraticamente os nossos destinos;
– nós mulheres, assim como as Católicas pelo Direito de Decidir, temos direito a nossos corpos e a nossos nomes. Eles são os nossos territórios existenciais, de onde emanam nossas escolhas e ação transformadora do mundo. Nele ninguém mexe – nem a família, nem as igrejas e muito menos esse Estado conservador, hierárquico, discriminador;
– os nossos direitos, assim como os das Católicas pelo Direito de Decidir, à auto-organização coletiva, à resistência contra as injustiças patriarcais, racistas e capitalistas, à defesa dos nossos direitos humanos e à laicidade do Estado, são partes imprescindíveis do Estado democrático de direito e da própria democracia;
– todas as pessoas, e as Católicas pelo Direito de Decidir, têm direito à experiência do sagrado nos seus próprios termos. Ao longo dos seus 27 anos elas vêm cumprindo um importante papel na democratização das relações sociais na sociedade brasileira ao “questionar e não aceitar o lugar subordinado das mulheres dentro e fora da igreja”, evidenciando que até numa instituição tão fechada como a Igreja Católica, existem formas diferentes de sentir, pensar e agir sobre suas próprias verdades.
– a laicidade do Estado é um princípio imprescindível à convivência democrática e à universalização dos direitos humanos para nós mulheres, ela é a possibilidade de enfrentarmos o fundamentalismo religioso que se expressa em poderes econômicos, políticos e culturais e impedem nossa possibilidade de existir como sujeitos de direitos na esfera dos iguais. As Católicas pelo Direito de Decidir, desde sua origem, se instituíram com a missão de enfrentar essas forças dentro da própria Igreja e, da sociedade, com isso, se constituindo num importante instrumento da democracia.
Seguiremos lutando pelo direito, mas em casos como este, em que o direito confronta o sentido da justiça, lutaremos pela Justiça.